Painel de Carybé que ficava na sala de espera do antigo
cinema Guarany em Salvador.
Cinema e Atmosfera.
Por André Setaro.
Os complexos de salas (Multiplex. Cinemark, Cinépolis,
Aeroclube), uma nova modalidade no campo da exibição para superar a crise do
mercado, que surgiram na Bahia a partir de junho de 1998, se, por um lado,
oferecem conforto e segurança, por outro descaracterizam o cinema enquanto casa
de espetáculos. As salas, uniformizadas, todas iguais, produzem o aniquilamento
do sentido atmosférico que existia, no passado, com os chamados cinemas de rua.
Nestes, cada um tinha o seu estilo, a sua personalidade, proporcionando ao
espectador uma sensação de estabelecimento, pois a arquitetura, a decoração, o
tamanho da tela, a disposição das poltronas, entre outros fatores, predispunham
o contemplador de filmes, ajudando-o no carregamento da emoção.
O amante do cinema atual não mais sabe, passado algum tempo,
em que sala viu determinado filme ou, mesmo, pode confundir o Iguatemi com o
Aeroclube. O que antes não acontecia. Sabia-se que Os Dez Mandamentos, por
exemplo, teve a sua estréia no cine Tupy. A visão do filme e o estar-no-cinema
se interligavam como numa espécie sui generis de simbiose. A influência do
ambiente na psicologia do espectador é fundamental, pois este o associa ao
filme. Quem viu, por exemplo, O Manto Sagrado, o primeiro filme em cinemascope,
no Guarany, na década de 50, jamais esqueceu que o assistiu neste cinema. As
características particulares de cada sala de exibição cinematográfica
produziam, por conseguinte, uma influência avassaladora na contemplação do
filme. Mesmo em se tratando de cinemas de segunda categoria, os poeiras, há,
nítida, uma sensação particular. A imensa tela do Pax proporcionava um impacto
surpreendente que se aliava à atmosfera pesada do ambiente. Até a cortina
sebosa do cine Aliança tem um sentido para aqueles que o frequentaram na Baixa
dos Sapateiros. Fazia-se de tudo para não se encostar a ela, mas era um
empreendimento impossível. E o que teria a cortina com a percepção do filme?
Ela, por determinar a sensação de se estar num lugar, envolvendo a ambiência,
influenciava, sim, o espectador.
Díspares, os cinemas de Salvador possuíam estilos. O que faz
a diferença da contemplação atual nos complexos padronizados, que tiram,
inclusive, do cinema, seu caráter de função - no sentido da função teatral,
musical. Havia, ainda, uma postura hierática por parte daqueles que recebiam os
espectadores, fossem os porteiros, os gerentes, os lanterninhas, sempre
vestidos, uniformizados. Comprando o ingresso, o espectador, ao entregá-lo ao
porteiro, sempre em pé, quase como um soldado de sentinela, tinha a sensação de
acesso, de ter entrado num lugar atmosférico cuja senha, o ingresso, marcava a
sua admissão. Da sala de espera à sala de projeção propriamente dita havia
certo impedimento, pois ninguém podia adentrá-la se a sessão já estivesse
começada ou faltando quinze minutos para terminar. A corrente na porta
sinalizava o interdito proibitório. Há nisso tudo, portanto, nesta
característica do cinema como função, um espaço imaginário perdido nos dias
atuais pela completa desordem na condução dos espectadores ao ritual da
projeção.
Com o desaparecimento das salas mais populares e das
situadas nos bairros, a classe menos aquinhoada deixou de ir ao cinema. Os
complexos de salas, muitos concentrados, cobram muito caro pelos ingressos. Mas
o propósito é falar da atmosfera, do estilo de certos cinemas que, ainda vivos
na memória, desapareceram em conseqüência da decadência do centro da cidade e
do alargamento do espaço urbano. A velha província, calorosa e mais agitada
culturalmente, expandiu-se numa metrópole desordenada e enfartada. Quem já
tomou uma cerveja gelada, 'a las cinco de la tarde', no Restaurante e Bar
Cacique (que ficava à Praça Castro Alves), sabe do que se está falando.
Vindo de dentro do cine Guarany, o cheiro do ar condicionado
dessa sala o identificava, pois característico, único. A sala de espera, com
dois enormes murais de Carybé esculpidos nas pareces, representando índios com
suas armas, de tonalidade vermelha, era, desde já, um convite ao imaginário do
espectador. Não havia, para alegria dos verdadeiros cinéfilos, máquinas de
fazer pipocas e doidos. Apenas uma discreta bombonière num cantinho ao lado das
poltronas com as guloseimas postas em ordem hierática, os dropes enfileirados
como numa parada militar. Quem adentrasse a sala de exibição tinha que passar
por uma corrente e por portas que se abriam ao manejo de dois funcionários que
ficavam à espreita do espectador a olhar pelos dois únicos quadrados não
fechados que as compunham. Nas paredes desta sala, peixinhos desenhados pelo
artista citado, assim como, do outro lado, índios multiplicados.
Foto e texto reproduzidos do blog: http://setarosblog.blogspot.com.br/
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