terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

FOCO: O Antigo e o Novo: entrevista com Éric Rohmer


Publicado originalmente no site ESTADO DA ARTE/ESTADÃO, em 29/06/2018

FOCO: O Antigo e o Novo: entrevista com Éric Rohmer

Por Jean-Claude Biette, Jacques Bontemps e Jean-Louis Comolli

Uma parceria com a Foco – Revista de Cinema

A entrevista que segue, publicada na edição nº 172 da revista Cahiers du cinéma (novembro de 1965), toca em algumas questões que ainda hoje nos parecem importantes.

A primeira delas envolve o que, no mesmo período, Pier Paolo Pasolini denominou “cinema de poesia”. A definição de Pasolini, elaborada numa série de textos, mostrou-se uma ferramenta útil para lidar com alguns dos produtos mais interessantes do cinema moderno europeu; nomes como Antonioni, Godard e Bertolucci são mencionados por ele, tomando parte numa argumentação sobre o uso do “discurso livre indireto”. Na entrevista, Rohmer questiona uma das bases do argumento: a ideia de que a modernidade seria caracterizada por uma presença cada vez maior do cineasta através de suas estratégias formais, num caminho oposto à transparência defendida por André Bazin. Avesso aos procedimentos que explicitam a manipulação da realidade pelo cineasta, Rohmer defende, em vez disso, um cinema de prosa em que o sujeito que filma permanece em segundo plano, dando ênfase ao objeto filmado. Frente aos redatores dos Cahiers, num momento de transição da revista, é uma interpretação vigorosa do problema que encontramos nas palavras do autor de A Colecionadora – uma interpretação perfeitamente alinhada com sua produção fílmica, e constituindo uma postura cética quanto à redução do contexto do cinema moderno. 

Outra questão diz respeito à ênfase desmedida no longa-metragem de ficção. Em seu livro mais recente, The Cinema of Poetry, P. Adams Sitney enfatizou o quanto Pasolini ignorava em seu texto toda uma tradição do cinema experimental. Sitney nos lembra que já em 1953 Maya Deren propunha discussões sobre “cinema e poesia”, e que a primeira geração de cineastas independentes que foram por ela influenciados (Stan Brakhage, Gregory Markopoulos, Jonas Mekas) levaram adiante estas preocupações. O comentário de Rohmer é naturalmente por um ângulo distinto; ele menciona a importância dos “filmes de informação”, obras de teor documental e que derivam seu mérito do tratamento temático, não de operações estilísticas, nem de colorações políticas ao gosto da época.

Algumas das linhas mais férteis do cinema nos últimos anos parecem situadas justamente na interseção entre essas abordagens. Cavalo Dinheiro de Pedro Costa, As Quatro Voltas de Michelangelo Frammartino, Já Visto Jamais Visto de Andrea Tonacci, Three Landscapes de Peter Hutton, Wolfram, a Saliva do Lobo, do casal Joana Torgal e Rodolfo Pimenta: filmes que negociam as passagens entre a ficção e o documentário, ou que absorvem estratégias do cinema experimental num regime documental ou narrativo, ou filmes experimentais que revelam seu potencial narrativo e documental. Rompendo de modo subterrâneo com as definições usuais dos gêneros, indo de encontro ao aspecto documental, esses filmes parecem retomar algo do que Rohmer propunha nos anos 1960. Seja como prosa poética, seja como poema em prosa, parecem interrogar, em forma de convergência, questões que antes se colocaram sob a forma de divergências.

(Bruno Andrade e Lucas Baptista)


É com um cineasta, Éric Rohmer, que queríamos há muito tempo conversar. Mas para nós, nos Cahiers, trata-se antes de devolver a Éric Rohmer uma palavra que, mesmo abortada na ocasião do abandono de uma forma de escrita por outra, jamais deixou de nos guiar. Pois, ao deixar o mármore dos Cahiers[1], ele não nos deu no celuloide suas melhores críticas? Assim sendo, após a mesa-redonda que precede[2] e a entrevista que nós tivemos no mês passado com Jean-Luc Godard, o que segue deve ser lido no mesmo sentido de um esclarecimento das nossas próprias posições críticas, acentuando a continuidade de uma linha dos Cahiers à qual Éric Rohmer e Jacques Rivette asseguraram (naquilo que tiveram de melhor) ao mesmo tempo a firme orientação e a flexibilidade (maior do que por vezes se contentaram em imaginar). O título que demos a esta entrevista ecoa esse anseio; com ele desejamos também, trazendo à mente a conjunção mais aditiva que explicativa, sugerir que o cinema moderno, na pessoa de um de seus melhores representantes, se reconhece como uma paisagem no domínio instaurado por Griffith, da mesma forma que a crítica não pode ser verdadeiramente nova sem encontrar em Maurice Schérer o segredo dessa novidade. E, vindo após o texto de Pier Paolo Pasolini (O Cinema de Poesia, cf. número precedente), é um tour de force teórico que conduz nesta entrevista o defensor de um “cinema de prosa”.

Éric Rohmer – Admiro que Pasolini possa escrever esse tipo de coisa sem deixar de fazer filmes. O problema da linguagem cinematográfica me interessa muito, apesar dessa questão ameaçar desviar do próprio trabalho de criação e de eu não saber se é um problema verdadeiro ou falso. Como esse problema é extremamente abstrato, ele exige a adoção de uma atitude frente ao cinema que não é nem a do autor, nem tampouco a do espectador. Ela nos interdita de gozar do prazer que a visão do filme proporciona. Dito isto, estou de acordo com Pasolini quanto ao fato de que a linguagem cinematográfica é na realidade um estilo. Não existe uma gramática cinematográfica, mas antes uma retórica que, ademais, por uma parte é extremamente pobre e por outra extremamente mutável.

Cahiers – O que também pode parecer igualmente interessante no ponto de vista de Pasolini é a distinção que propõe entre dois momentos do cinema: um que seria a era clássica e outro que seria a era moderna, a diferença entre eles sendo, grosso modo, que por um longo tempo o autor, o metteur en scène, empenhou-se em apagar de sua arte todos os sinais de intervenção, a suprimir-se por trás de sua obra, ao passoque agora manifesta cada vez mais sua presença…

Éric Rohmer – Nesse ponto, estou em completo desacordo com Pasolini. Não creio que o cinema moderno seja necessariamente um cinema no qual se deva sentir a câmera. Ocorre que atualmente há muitos filmes nos quais se sente a câmera, e antes também houve muitos, porém não creio que a distinção entre o cinema moderno e o cinemaclássico possa residir nesta afirmação. Não penso que o cinema moderno seja exclusivamente um “cinema de poesia” e que o cinema antigo seja somente de prosa ou de narrativa. Para mim, existe uma forma de cinema de prosa e de cinema “romanesco”, onde a poesia está presente, mas sem ser buscada de antemão: aparece por acréscimo, sem que seja solicitada expressamente. Não sei se conseguirei me explicar sobre esse ponto, na medida em que isso me obrigaria a julgar os filmes dos meus contemporâneos, o que me nego a fazer. De todo modo, parece-me que os Cahiers de uma parte, e oscríticos de outra, têm uma tendência excessiva a se interessar especialmente por esse cinema onde se nota a câmera, o autor – o que não quer dizer que esse seja o único cinema de autor – em detrimento de outro cinema, o cinema de narrativa, que se considera de saída como clássico, ao passo que no meu parecer não é mais que o outro. Pasolini cita Godard e Antonioni. Também poderia citar Resnais e Varda. São cineastas bastante diversos, mas que de um certo ponto de vista podem ser colocados no mesmo saco.

Quanto àqueles os quais não digo que prefiro a estes, mas que me parecem mais próximos daquilo que eu mesmo procuro, quem são? Cineastas em que se nota a câmera, mas onde isso não é o essencial: é a coisa filmada que tem umamaior existência autônoma. Em outras palavras, interessam-se por um universo que não é de antemão um universo cinematográfico. O cinema para eles é menos um fim que um meio, enquanto que em Resnais, Godard ou Antonioni, tem-se a impressão de que o cinema se contempla a si mesmo, que os seres filmados só têm existência no interior do filme, ou do cinema em geral. Para eles, o cinema é um meio para que possamos nos conhecer, um meio de revelar os seres, enquanto que para os “modernos” o cinema seria fundamentalmente um meio de revelar o próprio cinema.

São cineastas que rodaram poucos filmes, e os quais não sei se não mudarão, se não passarão para o outro lado. Tomo seus filmes como eles são, e, além disso, menos os filmes por inteiro que alguns de seus momentos: certas passagens, por exemplo, de Adieu Philippine (Jacques Rozier, 1962), em particular a cena das vespas, ou esse filme que vocês elogiaram com moderação e do qual gosto enormemente: La vie à l’envers (1964), de Alain Jessua. Ou ainda Chabrol no que tem de melhor – porque evidentemente em Chabrol há também um lado cinéfilo, mas é um lado mistificador e que não me parece o mais profundo. As personagens de Chabrol são interessantes independentemente do fato de que são filmadas. Eis aqui um cinema que não coloca a si mesmo em primeiro plano, mas que nos propõe situações e personagens, enquanto que no outro cinema aspersonagens e as situações me parecem menos interessantes na medida em que definem antes de tudo uma concepção de cinema.

Cahiers – Talvez ambas as categorias possam se confundir: em Bande à part (Jean-Luc Godard, 1964) há personagens interessantes em si mesmas e às quais o cineasta dá uma existência real, e, ao mesmo tempo, um cinema que se interroga a si mesmo.

Éric Rohmer – Uma coisa não exclui a outra. Mas, precisamente, eu fiz essas reflexões logo após a visão de Bande à part: o exemplo de vocês não é bom. Bande à part é um filme extremamente comovente, onde Godard nos emociona; mas não são as personagens que nos emocionam, em absoluto. É outra coisa. As personagens como tais, a garota e os dois garotos, são interessantes apenas pelo lugar que ocupam no interior do filme e por suas relações com o autor, ao passo que as personagens de Les godelureaux (Claude Chabrol, 1961) nos interessam independentemente da maneira que o autor se expressa e defende sua ideia de cinema através delas, embora elas também sejam fotogênicas.

Cahiers – Não se assiste hoje a uma espécie de evolução global da função das personagens, que cada vez menos são consideradas por si mesmas e em si mesmas, e desempenham cada vez mais o papel de pretextos, de máscaras para o autor?

Éric Rohmer – Nos filmes que cito as personagens não são pretextos. E, além do mais, isso não prova nada. Falo em meu nome, e digo que sinto mais afinidades com certos cineastas, apesar de tudo que me separa deles em outros planos. Tenho a impressão de que, cada vez mais, minha busca se orienta nesse sentido, e reivindico a modernidade da coisa. Um cinema onde a câmera é invisível pode ser um cinema moderno. O que eu gostaria de fazer é um cinema de câmera absolutamente invisível. Sempre é possível tornar a câmera menos visível. Há muito trabalho (ainda) a se fazer nesse domínio.

Moderno é, por sinal, uma palavra um tanto gasta. Não há por que tentar ser moderno, você é se merece sê-lo. E não se deve ter medo também de não ser moderno. Não é algo que deva se converter em uma obsessão.

Cahiers – Para nós, a reivindicação de uma modernidade tem um valor polêmico: os cineastas modernos são todos aqueles– incluindo os cineastas com uma longa carreira, como Renoir– que não somente deram existência ao seu mundo, mas que ao mesmo tempo redefiniram em cada ocasião o cinema em relação a si mesmos, que o orientaram a um novo sentido.

Éric Rohmer– Que sentido é esse? O que é admirável no cinema é que se pode fazer tudo, enquanto que na música ou na pintura há tabus, proibições. Na música é preciso escolher se situar antes ou depois da música dodecafônica; na pintura, antes ou depois da pintura abstrata. Mas no cinema, se é necessário optar por se estar antes ou depois do som, essa escolha é determinada unicamente pela técnica. Sempre que tentamos defender as novas técnicas, tínhamos razão, e a história, o tempo justificaram essa atitude. Inversamente, cada vez que alguém tentou defender uma posição puramente estética, ainda que parecesse estar ligada a inovações técnicas, acabou sempre se equivocando, por mais inteligente que fosse. Por exemplo, André Bazin: o que há de mais contestável na sua obra é precisamente sua defesa de um novo cinema fundado sobre a profundidade de campo. Isso não se sustentou em absoluto. E o mesmo acontece em relação a um cinema que seria puramente realista. Ou ainda um cinema que seria puramente “de poesia”; ou um cinema como o de Resnais, onde a cronologia desaparece, onde o subjetivo e o objetivo se mesclam. Abrem-se portas, mas são portas sem saída. Essas inovações não têm necessariamente posteridade. Ninguém jamais pôde dizer em que sentido o cinema poderia ir. Ocorre que cada vez em que se acreditou que ia numa direção, acabava indo numa direção completamente diferente.

O que há de melhor e de verdadeiro na Nouvelle Vague é a sua contribuição técnica, tanto no que se refere à realização quanto à produção. É o fato de rodar filmes baratos. É algo que se tornou parte dos costumes e não se pode voltar atrás.

Cahiers – A essas inovações técnicas, que obtiveram uma posteridade fecunda,não temos que adicionar a evolução de uma técnica mais geral, como a da narração, que conheceu inúmeras variações, que se fixou num certo número de convenções na época do reinado de Hollywood, e que agora reage contra essas convenções? A cronologia, por exemplo, não é uma técnica do mesmo modo que a câmera no tripé ou o campo-contracampo? E, enquanto técnica, ela não é suscetível a renovações?

Éric Rohmer – Sou favorável ao campo-contracampo e à cronologia. Não quero dizer que sempre seja necessário fazer o campo-contracampo e que sempre se deve respeitar a ordem cronológica, não penso que seja algo consubstancial ao cinema. Mas, enfim, se é possível raciocinar por analogias, a narração fragmentada a Dos Passos, bem como o monólogo interior a Joyce e a Faulkner não impediram que se voltasse à maneira de narrar tida como clássica, inclusive em obras que, no fim das contas, também são modernas. Veja as pessoas que quiseram imitar Faulkner ou Dos Passos: fizeram coisas da pior espécie, ou seja, o Sartre estilo Os Caminhos da Liberdade.

Mas é preciso se resguardar de raciocinar por analogias: o romance não está no momento na mesma situação do cinema. Penso que é respeitando a ordem cronológica que se irá o mais longe e que se será o mais moderno. É uma opinião puramente pessoal, não sou capaz de demonstrar sua verdade. Mas as experiências feitas na busca de um cinema não-cronológico demonstram que é um caminho pouco interessante. Observem também que a maioria dos cineastas que citei segue a ordem cronológica. Mesmo Godard não fez nada até agora de realmente não-cronológico.

Cahiers – Não é realmente quanto à cronologia que a técnica da narração evolui hoje. É antes na própria maneira de conduzir a história, de estruturar a intriga, que ela sofre as maiores mudanças: há muito mais elipses, do mesmo modo que se ignoram algumas coisas que durante muito tempo foram consideradas essenciais para se destacar outras…

Éric Rohmer – Nisso estou de acordo com vocês. Ou seja, o que antes era mostrado agora já não se mostra, e o que não se mostrava é mostrado. Mas o cinema poético não é o mais adequado para fazer isso. Acredito que, do ponto de vista das elipses, ele seria mais tradicionalista que o outro, na medida em que mostraria principalmente os momentos fortes da ação. O cinema poético é feito muitas vezes de morceaux de bravoure [pedaços de bravura]. É antes num cinema que não se pretende poético, que se pretende prosaico, que é possível encontrar uma tentativa de romper o modo tradicional de narração, mas de modo sub-reptício, não de um modo espetacular, sem apoderar-se de certas técnicas do romance. Quanto a este ponto eu não mudei de opinião em absoluto: creio que não se deve transplantar para o cinema certos procedimentos dos romancistas. Porque é preciso que a coisa seja espontânea e chegue ao cineasta pelas próprias necessidades de sua expressão, ingenuamente, sem referência alguma.

Cahiers – Tomemos o caso de Bresson…

Éric Rohmer – Mas Bresson, eu não sei em que categoria o colocar. Pode-se muito bem afirmar que está acima das categorias, mas não estou seguro disto. Atualmente, inclino-me mais a colocá-lo no cinema de poesia que no cinema de narrativa. É um cineasta em que se sente a presença da câmera, mesmo na sua ausência, se me atrevo a dizer. A câmera está eclipsada, mas é o próprio eclipse que indica que poderia estar presente. Em Bresson se sente enormemente o cineasta. Creio que o que lhe interessa é a maneira de mostrar as coisas, mais que a maneira de mostrar certas coisas. Em outras palavras, o cinema seria um fim para ele, e não um meio.

Falemos um pouco, se quiserem, da desdramatização. Não me agrada a palavra, nem a coisa em si. Quando perguntavam a um cineasta dos anos 1940, Jacques Becker, por exemplo: “Que filme você rodaria se pudesse verdadeiramente fazê-lo com toda liberdade?”, ele respondia: “Gostaria de fazer um filme sem história”. Há muitas pessoas que compartilham dessa opinião. No entanto, eu penso que um cinema pode ser moderno e contar uma história. Não vejo por que o fato de não contar uma história seria mais moderno que o contrário. Isto talvez possa ser verdade no romance moderno, mas é preciso considerar o cinema em si mesmo. Não somente se deve esquecer o que é a literatura moderna, como é necessário também esquecer o que é o cinema, e é por este motivo que não gosto mais de falar dele. Deve-se ir adiante, sem pensar no que quer que seja. Mas há cineastas que não podem; há cineastas que gostam de refletir sobre o cinema e partir dessa reflexão no momento da criação, de modo que o cinema contemple constantemente a si mesmo. Não sei em que categoria estou, não posso julgar-me, mas preferiria estar na segunda categoria, e cada vez que vejo um cinema bastante aberto ao mundo exterior, isto me seduz, talvez por considerar que atualmente o cinema não esteja demasiado aberto a esse mundo, esteja um tanto demasiadamente fechado em si mesmo. Seja expressamente, seja de maneira dissimulada.

Cahiers – Voltemos ao teu exemplo da cena das vespas em Rozier: seria, ao que parece, antes de tudo um momento poético…

Éric Rohmer– Sim. O que queria dizer é que, mesmo filmada de outra maneira, mesmo filmada por qualquer outro, seguiria sendo como é, igualmente poética. Isso não quer dizer que Rozier não tenha feito um trabalho de câmera muito importante, mas sim que ele deu ao espectador o sentimento de uma existência independente da cena. Pode-se distinguir um cinema de poesia de um cinema que filma a poesia. Pessoalmente, já que realizo documentários pedagógicos, gosto bastante de filmar a poesia, embora seja uma coisa quase impossível. O cinema é um meio para se fazer descobrir a poesia, seja a poesia de um poeta, seja a poesia do mundo. Mas não é o cinema que é poético, é a coisa mostrada que o é. Em La vie à l’envers, tem-se a impressão de que a poesia está no universo mostrado muito mais que na forma com que o cineasta a mostra. O que não poderia ser dito dos filmes citados por Pasolini: neles, não é o universo que é poético, é o olhar do cineasta que o poetiza. É algo que fica bastante claro em Alphaville (Jean-Luc Godard, 1965), que se torna fantástico tão-somente pela maneira com que Godard toma um universo banal e o torna fantástico.

Cahiers – Você pôs o dedo sobre uma definição mais séria do moderno: o cinema, hoje, é uma arte que se contempla, que se volta a si mesma. O primeiro objeto do cineasta parece ser a pergunta: o que é o cinema, o que ele foi até agora, o que pode ser? Esse não é o seu problema… Mas seria possível continuar fazendo cinema hoje sem se colocar esse problema prévio? Seria possível conservar ou reencontrar aquela espontaneidade, aquela ingenuidade dos grandes cineastas que não se colocaram o problema do cinema, mas o do mundo?

Éric Rohmer – Só posso responder-lhes a partir do meu caso. Para mim, está claro que, depois que comecei a rodar regularmente, sinto cada vez menos, por um lado, a necessidade de refletir sobre o cinema, e por outro, inclusive, de ir ao cinema. Vou muito pouco. Talvez seja uma questão de temperamento. Não sei se dissoé possível tirar uma regra geral. É possível que pessoas com a mesma ideia que a minha de cinema, ao contrário, sigam frequentando-o.

Cahiers – Um cinema que se volta para o mundo e que não toma a si mesmo por objeto é, certamente, o cinema americano que você defendeu nos Cahiers.

Éric Rohmer – Estou totalmente fora do jogo. A ponto de quase dizer que nem sei se um filme é americano ou não. Num certo momento, gostei muitíssimo do cinema americano, mas, atualmente, esse lado americano me interessa menos. Quando afirmo que pode existir um cinema moderno que não seja uma reflexão sobre o cinema, isso não implica que seja um cinema ingênuo. Eu distingo dois cinemas, o cinema que se toma por objeto e por fim, e aquele que toma o mundo por objeto e é um meio. Mas posso refletir perfeitamente sobre o cinema enquanto meio, e sobre o mesmo tenho muitas ideias. Os americanos eram muito ingênuos, sabe-se que nunca escreveram, nunca refletiram sobre o cinema nem como meio nem como fim. Quando abordados, quase todos (com exceção talvez de Hawks, que tem certas ideias sobre o cinema como meio, porém ideias muito simples) refletiram sobre o cinema como técnica ou então sobre o mundo como objeto, nada mais. Nós podemos refletir ao mesmo tempo o cinema como meio e como fim. Sinto que os choco ao dizer que o cinema é um meio e não um fim.

Cahiers – Não, em absoluto.

Éric Rohmer – Dou-me conta de que os críticos frequentemente admiram alguns dos filmes que citei, mas não sabem muito bem o que dizer deles, ao passo que quanto mais um filme toma o cinema como objeto, mais pode-se falar dele, e aí fala-se muito. Quando esse não é o caso, dizem coisas mais banais, mais convencionais: em poucas palavras, acaba-se por considerá-lo um bom filme clássico, o que a meu ver não é o caso.

Cahiers – Se muitos filmes hoje parecem mais complexos, mais abstratos, isso talvez ocorra porque o mundo que tentam descrever parece em si mesmo mais complexo, mais abstrato, mais indefinível. Isso talvez proceda do fato de que o mundo não pode ser reduzido a um roteiro linear.

Éric Rohmer – Não estou de acordo. Vocês dirão que sou reacionário, e não somente clássico: para mim, o mundo não muda, no máximo muito pouco. O mundo sempre é o mundo, nem mais confuso nem mais claro. O que muda é a arte, a forma de abordá-lo.

Cahiers – Isso quer dizer a mesma coisa.

Éric Rohmer – O problema que nos ocupa não é o de uma consciência maior ou menor dos meios de expressão, nem da passagem de um estado ingênuo a um estado intelectual: trata-se de opor uma arte que estaria fechada em si mesma, que se contempla a si mesma, e uma arte que contemplaria o mundo. Mas essa contemplação do mundo pode ser distinta, ainda que o mundo não mude, na medida em que temos meios de investigação diversos. É uma coisa que aprendo todos os dias, nem que seja apenas por estar fazendo documentários escolares para a televisão: tem-se um dado e tem-se um meio, mas esse meio pode nos fazer descobrir naquele dado coisas que não conhecíamos. Não se trata do fato de que o mundo muda; trata-se de descobrir no mundo coisas distintas. O que amo nos filmes de que falei é que nos fazem descobrir coisas distintas: o que há de interessante no cinema é que é um instrumento de descoberta. E essa descoberta pode ir extremamente longe. Observem que o mesmo ocorre com a arte: sempre é uma descoberta. Vocês me responderão que o cinema poético também é um meio de descobrimento do mundo. Talvez, mas não é isso que diziam. Essa propriedade que há em descobrir o mundo não é o que geralmente se destaca…

Cahiers – O cinema como meio de descobrir o mundo é, no limite, o cinema-verdade. Entretanto, seu itinerário está bem distante daquele do cinema-verdade.

Éric Rohmer – O cinema-verdade sempre me interessou na medida em que é uma técnica. Essa técnica, finalmente, eu não a empreguei, ainda que eu tenha desejo de fazê-lo. Mas é preciso distinguir o que se gosta e o que se faz. Em muitos pontos, sou bastante hostil ao cinema-verdade. Sempre sonhei – e eu o farei um dia provavelmente, provavelmente numa obra pedagógica ao invés de uma obra romanesca – em deixar os intérpretes improvisarem seu texto.

A verdade que me interessou até aqui é a do espaço e do tempo: a objetividade do espaço e do tempo. Tomemos por exemplo Place de l’Étoile… (1965): tentei reconstituir o lugar de maneira que aparecesse tal como é, pois, no cinema, frequentemente é muito difícil dar a ideia de um espaço, de um lugar, e o que me interessa é tentar apresentar esse lugar a partir dos seus elementos fragmentários. Não quis, com esses elementos, criar um lugar completamente distinto, o que fazem alguns cineastas quando filmam Paris e a convertem em Nova York, ou uma cidade de 1960 em outra do ano 2000. Pelo contrário, tenho a sensação de que é muito difícil apresentar a realidade tal como ela é, e de que a realidade tal como ela é será sempre mais bela que meu filme. Ao mesmo tempo, somente o cinema pode dar a visão dessa realidade tal como ela é: o olho não consegue. Portanto, o cinema seria ainda mais objetivo que o olho. Trabalhei de maneira que a Place de l’Étoile fosse apresentada tanto pela maneira de filmar como pela maneira de narrar: a narração está a serviço do lugar, foi feita para valorizá-lo. É isso o que chamo de busca da verdade: é essa verdade o que me interessa, ao passo que talvez não seja essa verdade do espaço a que interessa ao cinema-verdade, mas uma verdade psicológica, sociológica ou etnológica: existem milhares de verdades possíveis.

Da mesma forma, interessa-me a duração, a objetividade da duração. Apresentar uma duração não necessariamente real, mas que existe independentemente da maneira como a mostro. Não creio que o cinema dito clássico tenha chegado ao limite dessa reconstrução e descoberta simultânea do espaço e do tempo; ele permaneceu no meio do caminho. É preciso ir mais longe e, ainda que evidentemente não se chegue, é possível chegar a uma aproximação bastante considerável.

Cahiers – Paralelamente a essas preocupações, você ainda possui as de um moralista…

Éric Rohmer– Sim, já que o que me interessa é mostrar os homens, e o homem é um ser moral. Minhas personagens não são seres puramente estéticos. Possuem uma realidade moral que me interessa tanto quanto a realidade física. No que diz respeito aos meus Contos Morais, considero que estão compostos como numa máquina eletrônica. Na suposta ideia de “contos morais”, se coloco “conto” de um lado da máquina e a “moral” do outro, se desenvolvo tudo o que é implicado por conto e tudo o que é implicado por moral, a situação já estará praticamente estabelecida, pois não sendo um conto moral um conto de aventuras, será necessariamente uma história a meias-tintas, portanto uma história de amor. Numa história de amor, há necessariamente um homem e uma mulher. Mas se há um homem e uma mulher, não é algo muito dramático: em todo caso, teria de entrar em jogo os impedimentos: a sociedade etc. Por isso, é melhor que haja três personagens: digamos um homem e duas mulheres, já que sou homem e meus contos são narrativas em primeira pessoa. É assim que os temas dos Contos Morais decorrem da própria ideia de conto moral. Uma vez encontrado o tema, pode-se deduzir o conteúdo de cada uma das seis narrativas. No primeiro, a situação aparecerá na sua forma mais simples: a escolha não se projeta verdadeiramente em termos de moral, mas simplesmente de conveniência quase material. Um rapaz busca uma moça, enfada-se, encontra outra. E, dado esse lado material, o tema da alimentação terá importância: será, portanto, uma padeira. O segundo será o mesmo tema ao inverso: o rapaz não será atraído, mas rejeitado pela garota. O terceiro, que ainda não foi rodado, é aquele em que a escolha se projetará finalmente em termos de moral, e até mesmo de religião, já que a personagem principal é católica. E assim sucessivamente. Eu poderia perfeitamente ter usado uma máquina para encontrar esses argumentos, portanto minha intervenção nas histórias não implica em nada. Os problemas a que nos referíamos jamais me incomodaram ao fazer filmes.

Cahiers – Em que medida, então, a prática do cinema modificou as tuas ideias sobre o cinema?

Éric Rohmer– Pode-se dizer que adotei a visão oposta de minhas ideias. Inclusive, pergunto-me se cheguei a ter ideias. Após refletir um pouco, creio que Bazin, sim, teve ideias e que nós, nós tivemos gostos. As ideias de Bazin são todas boas, seus gostos são bem discutíveis. Os juízos de Bazin não foram ratificados pela posteridade, ou seja, não impuseram nenhum grande cineasta. Gostava de alguns que são grandes, mas não penso que o que ele disse realmente os impôs. Quanto a nós, nós não dissemos grande coisa sobre a teoria do cinema, não fizemos mais que desenvolver as ideias de Bazin. Em compensação, creio que encontramos os bons valores, e os que vieram depois de nós ratificaram nossos gostos: impomos cineastas que permaneceram e que, creio, permanecerão. Fui conduzido a atuar contra minhas teorias (se é que alguma vez as tive). Quais eram? O plano-sequência, a decupagem em prol da montagem. Essas teorias, em sua maioria, nós as tomamos de Bazin e de Roger Leenhardt. Leenhardt as havia definido num artigo que se chamava “À bas Ford, vive Wyler!”, onde dizia que o cinema moderno é um cinema não de imagem ou de montagem, mas de planos e de decupagem. Não obstante, fiz um cinema que é fundamentalmente de montagem. Até o momento, a montagem é a parte mais importante dos meus filmes. Em última instância, eu poderia deixar de acompanhar a filmagem, mas é necessário que eu acompanhe a montagem. Por outro lado, na filmagem, cada vez me interesso mais pelo enquadramento e a fotografia, até mais do que pelo plano. Creio menos no plano do que antes.

Outra ideia, que era comum a todos de minha geração: a direção de atores. Eu pensei que no cinema fosse a coisa mais importante, e sempre mantive certa apreensão quanto a isso. Tinha medo de não saber dirigir os atores. Agora penso que a direção de atores é um falso problema, não existe, não há com o que se preocupar, é a coisa mais simples que há no cinema. Portanto, minhas preocupações são exatamente o contrário do que eram, mas isso me parece natural.

Cahiers – Teus gostos em matéria de cinema talvez correspondam mais ao que fazes que às tuas teorias… Quais seriam as referências cinematográficas dos teus filmes?

Éric Rohmer – Não as tenho. Se as tivesse, acabaria provavelmente paralisado. Admiro as pessoas que podem dizer: “Pergunto-me o que Hitchcock faria em meu lugar?” Pessoalmente, não só evito a pergunta, como nem vejo sequer como poderia perguntar-me, já que não sei o que faz um Hitchcock: quando vejo um filme, não penso em absoluto na técnica, e seria incapaz de plagiar um filme. Conservo a lembrança do que se sucede, vejo momentos interessantes, um rosto que tem uma expressão extraordinária, mas a maneira com que me é mostrado, não a percebo nem na primeira nem na segunda ou terceira visão, e isso não me interessa. Quando filmo algo, penso naquilo que mostro. Se eu quero mostrar esta cadeira, isso me trará alguns problemas, é possível que titubeie, mas o fato de que Hitchcock ou Renoir ou Rossellini ou Murnau filmaram uma cadeira não me socorrerá. Quando fazia curtas-metragens mudos, eu certamente me inspirei em Murnau, enfim, eu acreditava que havia sido inspirado especialmente por ele, bem como por Fritz Lang ou por Griffith: são os cineastas bem antigos, aqueles em que posso encontrar o gênio do cinema, da mesma maneira que se pode encontrar o gênio do idioma nos clássicos. Quando escrevo, poderia chegar a pensar mais em Tácito, ou em Virgílio, do que em Marcel Proust ou em Jean Paulhan. Desse ponto de vista, oponho-me bastante à maioria das pessoas dos Cahiers que, ao contrário, gostam bastante de referências.

Cahiers – E das quais se poderia dizer, elas mesmas o disseram, que as críticas delas foram os seus primeiros filmes. Não foi o seu caso.

Éric Rohmer – Não creio. Rodei pequenos filmes amadores ao mesmo tempo em que escrevia. Creio que todos nós nos Cahiers começamos bem rápido, se não a filmar, visto que carecíamos de meios, pelo menos a querer fazer filmes. Fazíamos crítica interessada. Não somos críticos que passaram ao cinema, mas cineastas que fizeram um pouco de crítica para começar.

Quando filmo, reflito sobre a história, sobre o tema, sobre a maneira de ser das personagens. Mas a técnica do cinema, os meios empregados, são-me ditados pelo desejo de mostrar algo. Em outras palavras, se faço planos curtos, não é porque gosto dos planos curtos mais do quedos longos; é que, para aquilo que quero mostrar, o plano curto é mais interessante. Se me ocorre que só poderia mostrá-lo em planos longos, faria planos longos. Não tenho nenhuma forma a priori, isso é um fato.

Cahiers – Godard disse que existem dois tipos de cineastas: os que queriam fazer cinema a qualquer custo, e os que queriam fazer um certo filme. Você estaria mais enquadrado no segundo tipo. E, contudo, trabalha na televisão escolar, a partir de temas de encomenda…

Éric Rohmer – Não considero em absoluto a televisão escolar como um trabalho de subsistência. Trata-se, certamente, de um campo de experiências menos livre do que o cinema de autor que pretendo fazer com os meus Contos Morais. Há um lado de obra, se não imposta, ao menos circunstancial; um lado de obra proposta. Acomodo-me muito bem. Chega a ser mesmo estimulante, quando me propõem algo, perguntar-me: “Faço, não faço?” Quando talvez nunca me tivesse ocorrido a ideia de fazê-lo.

Cahiers – Há uma característica comum às suas críticas, nos seus filmes e nas suas emissões televisivas, que é a de um certo espírito didático.

Éric Rohmer – Não existe apenas o cinema narrativo, poético, ficcional, mas também o cinema outrora denominado documental, que agora preferem chamar por um termo que aprecio menos por ser pretensioso: informativo. Ou seja, didático. Nesse domínio, talvez haja mais a se fazer do que no cinema de ficção, e me dei conta disso graças à televisão escolar. Lá, é preciso exercer uma espécie de violência contra o próprio cinema, que, apesar de ter uma aptidão documental inata, nem sempre está capacitado para tratar de alguns temas, uma vez que estes não são visuais.

Em outras palavras, é preciso “visualizar”. Sinto certa repugnância pela coisa, e ao mesmo tempo sou interessado por isso: sinto repugnância em tornar visual algo que não o é, mas quando essa coisa pode vir a sê-lo, é extremamente interessante. É preciso intervir por um viés, é preciso encontrar esse viés. O que me interessa é conhecer pelo cinema coisas que se furtam ao conhecimento por esse meio de expressão. Seja porque me parece que a dificuldade recompensa a arte, seja porque esse modo de solicitar uma realidade que se esconde permite conhecer as coisas que um olhar mais direto ou mais imediato não poderia conhecer. Faço programas literários. Ora, a literatura e a poesia são as coisas menos filmáveis que existem. Não se poderá jamais filmar diretamente um texto, nem explicá-lo, nem ilustrá-lo. Todavia, penso que pode existir um conhecimento, pela televisão, desse texto, que pode ser interessante e que enriquecerá não só o cinema como a própria literatura. Isso significa que podemos nos atrair por aspectos que não são aqueles que mais atraem atualmente. Tomemos a pintura. É evidente que o cinema, quando se serve dos quadros para evocar o mundo em que foram pintados, convida-nos a uma concepção “impura” da pintura. Mas me pergunto até que ponto seria correto, hoje, considerar de um retrato unicamente a arte de Ticiano e não o modelo que posou. Quando vou ao museu, quando observo um quadro, cada vez mais observo aquilo que foi pintado, e isso me dá um conhecimento tão grande da pintura quanto se eu considerasse o toque do pintor. Quando filmei minha emissão sobre La Bruyère, fui ao Louvre unicamente com o intuito de saber como eram confeccionados os vasos do século XVII. Mas vi nesses quadros coisas que não teria visto se não as tivesse olhado unicamente do ponto de vista dos vasos. Não tentava distinguir os pintores entre si, nem julgar a cor, a técnica. E, todavia, isso me deu uma ideia ainda mais ampla da pintura. Por conseguinte, o cinema, inclusive na medida em que poderia parecer um pouco reacionário em relação às outras artes, um pouco anedótico, pode conduzir a um maior conhecimento das coisas.

O interesse em um cinema didático, em particular um cinema que se sirva de documentos, de obras de arte (em geral, o que mostramos do passado são suas obras de arte), é o de ligar mais estreitamente a estética às outras disciplinas. O amor pelo verdadeiro, o amor pelo belo estão ligados. Isso nos leva a descobrir o passado sob um ângulo forçosamente estético: a beleza das coisas que se mostram, ao mesmo tempo que a arte que se introduz a si mesma na forma de mostrá-las. No meu Les Caractères de La Bruyère (1965), o fato de buscar as coisas que são visuais, físicas, sobre as personagens, fez com que eu me interessasse por “características” que não são os aspectos mais evidenciados: em particular, o que eu poderia chamar o lado naturalista, e quase fisiológico, da sua descrição. A atitude corporal do homem não é a coisa que mais surpreende na sua leitura. Interessa mais as notações de ordem puramente psicológica ou de ordem social. Representar essas personagens na tela obriga a descobrir coisas que existem e que não poderiam ser notadas de outra forma. O mesmo ocorre com Perceval ou le Conte du Graal(1964), que é o que fiz de mais simples, de mais escolar, onde pude situar paralelamente a descrição dos combates que se admira na poesia da Idade Média e as miniaturas, que são uma arte decorativa extraordinária, coisas que em geral não foram percebidas por… Por quem? Porque as pessoas que se ocupam da literatura não se interessam muito pela ilustração, e as que se interessam pela ilustração não se interessam pela literatura. Existe no século XII uma arte extremamente importante e que inclusive é uma das maiores, a arte dos trovadores, a arte da civilização occitana. Se emprego a palavra arte é porque se trata da fusão de duas atividades precisas: a poesia e a música. A música era composta pelo poeta. O poeta era seu próprio músico. Mas as pessoas que estudam o poeta não pensam em absoluto no músico, e, na literatura, considerava-se esta poesia como bastante fria, na medida em que ela não é ouvida em forma de canto. Por outro lado, os que se interessam pela música não conhecem essa língua e, por conseguinte, escutam, mas não sabem o que ela significa. Bem, poder-se-ia, através desse filme, fazer com que o espectador gostasse ao mesmo tempo da poesia e da música. O cinema é uma espécie de conglomerado das outras artes. Permite estabelecer uma ponte entre elas, e creio que isso é uma coisa muito importante, inclusive em um nível muito humilde e pedagógico.

Cahiers – Por que não utiliza música nos filmes?

Éric Rohmer – Eu repreendo muitos filmes, principalmente os filmes “poéticos”, que são emendados pela música, frequentemente bastante banal e de forma alguma necessária. Não vejo a que a música possa servir, se não para ajustar um filme que é ruim. Um bom filme pode prescindir dela. E além do mais, não é moderno, é uma convenção que data do cinema mudo, quando se tocava piano na sala. O fato de associar uma música qualquer às folhas das árvores, às nuvens que passam, ou a alguém que abre sua porta, é a pior das convenções, uma etapa completamente superada. Nos meus Contos Morais, só há música real: quando as personagens ouvem discos ou rádio. Não existe absolutamente nenhuma outra música: nem sequer nos créditos.

Nas minhas emissões da televisão escolar, a música possui antes de tudo uma função documental, assim como um quadro, uma estampa, que permitem situar uma época, conhecê-la. Eu só a permito tocar durante os silêncios do comentário. Podem, é claro, existir algumas exceções à regra. Ocorre-me às vezes deixara música tocar junto ao texto. Não sou completamente sectário. É evidente que, num filme sobre documentos, é necessário buscar certo prazer, e que para tanto possamos recorrer à música. Mas, sobre um discurso verdadeiramente abstrato, digamos de matemática, aborrecer-me-ia profundamente ouvir música. Efetivamente, identifico a música, reconheço-a e, ao fazê-lo, não escuto mais o comentário; inversamente, se eu dedico toda a minha atenção ao comentário, já não ouço a música. É uma das duas censuras que faria a muitos documentários, e a outra seria relacionada ao fato de que jamais se ouve nenhum ruído, quando atualmente seria tão fácil registrar um som.

Cahiers – Teus Contos Morais parecem ligados uns aos outros um pouco à maneira das novelas de uma mesma coleção, e mesmo dos capítulos de um romance. Por outro lado, dão a impressão de se referir constantemente a esse gênero literário. Todavia, você escreveu que o cinema estava à frente da literatura…

Éric Rohmer – Se o escrevi, equivoquei-me. O que creio é que o cinema não tem por que se preocupar com a literatura. Dito isso, é possível partir de uma obra escrita. Que ela seja antiga ou moderna não tem verdadeiramente nenhuma importância, visto que o essencial é fazer um cinema moderno. Tudo que é bom é necessariamente moderno na medida em que não se parece com o que foi feito anteriormente. Eu prediquei certamente um cinema não-literário, e realizei os Contos Morais que são descaradamente literários, nem que seja pela medida em que o comentário desempenha um papel importante. Gosto de mostrar no cinema coisas que parecem contrariar a transcrição cinematográfica, expressar sentimentos que não são filmáveis, porque estão profundamente incrustados na consciência. É uma relação de si consigo mesmo que eu deliberadamente quis mostrar nos Contos Morais. É por esse motivo que estão na primeira pessoa e que possuem um comentário. Tratam do recuo que alguém pode tomar em relação aos seus gostos, desejos, sentimentos, em relação a si mesmo. A personagem fala de si e se julga; ela é filmada enquanto se julga. Portanto, meus Contos Morais não são literários: são adaptações cinematográficas de obras literárias, e, quando as rodo, tenho a nítida impressão de ser o metteur en scène de uma obra preexistente. Nesse sentido, estaria próximo de Leenhardt. Bazin dizia que Les dernières vacances (Roger Leenhardt, 1948) era um filme de um romance que não havia sido escrito.

Cahiers – Seu cinema seria, então, ao mesmo tempo introspectivo e objetivo: você mostra alguém que se coloca questões que habitam o seu interior…

Éric Rohmer – Eis o porquê. O que me irrita, o que não gosto no cinema moderno, é o fato de se reduzir as personagens ao seu comportamento, e de pensar que o cinema é apenas uma arte do comportamento. Na verdade, devemos mostrar o que está além do comportamento, ainda que sabendo que só se pode mostrar o comportamento. Gosto que o homem seja livre e responsável. Na maior parte dos filmes, ele é prisioneiro das circunstâncias, da sociedade etc. Não o vemos no exercício de sua liberdade. Liberdade que talvez seja ilusória, mas que existe mesmo dessa forma. Eis o que me interessa, eis o que evidentemente deve contrariar o cinema, arte física, materialista, não somente empírica, mas empirista, ainda por cima, já que o homem só se define por aquilo que faz. Creio que o gênio do cinema resida na possibilidade de ir-se além desse limite e descobrir outra coisa. Talvez os Contos Morais, que na verdade constituem um único filme, permitir-me-ão percorrer esse caminho, de ir além das aparências.

Cahiers – Algo que coincide com o que Pasolini disse dos grandes momentos do cinema moderno: ultrapassar a limitação naturalista do cinema para apresentar um certo caráter onírico da existência…

Éric Rohmer – A palavra “onírico” me interessa particularmente na medida em que meus Contos Morais têm certamente um lado onírico. Todos são sonhos. Os sonhos são construídos pelo cérebro, que é uma máquina eletrônica. Toda ficção é um sonho.

Cahiers – Mas como resolver esse paradoxo: um cinema que seria ao mesmo tempo de comportamento e de sonho?

Éric Rohmer– Não é um paradoxo. Só se pode mostrar o comportamento, e é mostrando-o que se pode ir além. Não posso aceitar a ideia de um cinema que seja outra coisa que um cinema do comportamento, que não seja objetivo. O estilo subjetivo no cinema me parece uma heresia. Uma heresia inteiramente condenável e pela qual não posso sentir piedade. Murnau ou Hitchcock só recorreram a ela por coquetismo e apenas de passagem ao longo de um filme. É impossível para mim confundir realidade e imagem mental. Não se pode confundir a torre Eiffel com a imagem que se tem dela. Caso contrário, tratar-se-ia de uma alucinação. Isso é outra coisa, é concebível mostrar alucinações. Mas a torre Eiffel tal como a imaginamos se distingue obrigatoriamente da torre Eiffel tal como a percebemos. É o que notou Alain a propósito do Pantheon, é lógico e evidente. A imagem mental é essencialmente diferente da imagem objetiva. Eu não vejo o que imagino, eu construo. Tudo que eu poderia encontrar na imagem mental, eu mesmo teria colocado. Ora, se algo é projetado na tela, isso me é dado, tudo procede do objeto, nada de mim. O espectador, portanto, não poderá de nenhuma maneira identificar uma imagem que seria uma imagem mental da heroína a uma imagem objetiva do que ela vê. É absolutamente impossível. Todavia, em alguns filmes, não se sabe se o que é apresentado é objetivo ou subjetivo. Por conseguinte, é necessariamente falso, já que na vida tal questão não se apresenta.

Cahiers – Existe todavia o caso de O Deserto Vermelho (Michelangelo Antonioni, 1964), onde a realidade é apresentada de maneira objetiva sem deixar de ser aquilo que a heroína vê.

Éric Rohmer – Tomemos o exemplo de O Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais, 1961). Há planos que presumimos ser objetivos e outros que presumimos ser subjetivos. Alguns que presumimos ser o mundo visto por uma personagem, outros o mundo visto pelo espectador exterior a essa personagem. Todavia, eu como espectador coloco tudo no mesmo plano. No caso de Marienbad, isso não tem importância alguma, na medida em que se trata de uma fantasia poética que não conta verdadeiramente uma história. Mas se a intenção é fazer-me acreditar nessa subjetividade, então não, já não sigo o jogo. Isso não me acrescenta nada e me parece de todo modo desinteressante de se fazer. Inclusive, é extremamente empobrecedor para o cinema, pois é muito mais interessante suscitar o invisível a partir do visível do que intentar inutilmente visualizar o invisível. É uma mentira ou um truque. Não é moderno, é arcaico. No lugar de um procedimento parecido, melhor seria recorrer à palavra. Se eu penso na torre Eiffel, eu o digo. No meu terceiro conto moral, haverá um sonho. Irei, portanto, mostrar a personagem dormindo e descrever o sonho no comentário. Observem que é possível mostrar um sonho, mas prefiro não o fazer. Creio que pode ser muito mais surpreendente partir da personagem enquanto dorme do que introduzir-me artificialmente em seu interior. Seria muito fácil escrever meus Contos Morais num estilo subjetivo, já que são reflexões sobre o passado. Ao final de A Carreira de Suzanne (1963), o narrador muda de ideia sobre Suzanne ao vê-la abraçada comum novo rapaz. Compreende então quais eram as suas relações com a primeira amante e porque ela lhe agradava. Poderia expressar isso através de um flashback. Poderia ter sobreposto duas visões eróticas dessa moça, uma em que aparecesse feia, outra em que aparecesse bonita, ao final. Preferi manter-me objetivo. O ponto de vista que se tem sobre ela é sempre o mesmo e a distinção só é expressa pelo comentário. Vocês me dirão que isso é literatura, eu responderei que não. O comentário não é uma coisa impura, ele só o seria se não tivesse nenhuma relação com a imagem. Quando profundamente ligado a ela, obtém-se, visto que a palavra e a imagem estão estreitamente unidas unicamente pelo fato do cinema ser sonoro, um conjunto palavra-imagem onde cada polo ilumina o outro. O conjunto é puro na medida em que só o cinema é capaz dele. Somente o cinema é capaz de unir a palavra e a representação visível do mundo.

Cahiers – Essa pureza cinematográfica deve ser compreendida em relação às outras artes?

Éric Rohmer – Sim, o cinema deve buscar uma certa pureza. Se dissessem que em meus filmes recorro à literatura, essa acusação me afetaria. Eu me defenderia. Se a ela recorro é somente para utilizá-la de outra maneira que nas obras literárias.

Cahiers – Mas o cinema, arte visual, sonora, literária, não é impuro por definição?

Éric Rohmer– É um erro conceber a pureza do cinema limitando-a a um de seus aspectos. Pensar que o cinema é puro unicamente porque é imagem é tão estúpido como crê-lo puro unicamente porque é som. A imagem não é mais pura que o som ou que outra coisa, mas, na união de diferentes aspectos, creio que possa se manifestar uma pureza própria do cinema. O que chamaria de impuro é uma certa maneira de concebê-lo que impede o descobrimento de suas próprias possibilidades e que, ao invés de seguir um caminho que só a ele cabe percorrer, avança por caminhos emprestados das outras artes. O que me incomoda acima de tudo é um cinema que se pretende excessivamente plástico, na medida em que essa plástica foi inspirada pela concepção plástica da pintura. O cinema é uma arte na qual a organização das formas é muito importante, mas é necessário que ela seja feita com os meios próprios ao cinema e não com outros, decalcados da pintura. Do mesmo modo, o cinema é uma arte dramática, mas é preciso evitar que essa dramaturgia se inspire na dramaturgia teatral. É igualmente uma arte literária, mas convém que seus méritos não residam unicamente no roteiro e nos diálogos. O fato de unir estreitamente a palavra à imagem cria um estilo puramente cinematográfico. Contrariamente, fazer com que sejam ditas certas coisas pelos atores, quando bem poderiam ser ditas num comentário, é algo que se torna teatral. Parece-me muito menos cinematográfico botar na boca de alguém algo que informe o espectador sobre determinado ponto do que fazê-lo num comentário. É menos artificial. Um problema análogo surgiu quanto ao emprego de legendas no cinema mudo. Elas também liberaram a imagem de uma função, a de significar. A imagem não é feita para significar, mas para mostrar. Seu papel não é o de dizer que alguém é algo, mas o de mostrar como ele é, o que é infinitamente mais difícil. Para significar, existe um instrumento excelente: a linguagem falada. Empregamo-la. Se se trata de expressar através de imagens o que poderia ser dito em duas palavras, é trabalho perdido.

Cahiers – Mas mostrar também é significar…

Éric Rohmer – Sim, ao mostrar se significa, mas não há por que significar sem mostrar. A significação deve vir por acréscimo. Nossa tarefa é mostrar. A significação deve ser concebida num nível estilístico e não gramatical, ou então num nível metafórico, enfim, num sentido mais amplo. O cinema simbólico é o que há de pior. De vez em quando se veem filmes atrasadíssimos nos quais a imagem quer desempenhar o papel exato da palavra ou da frase. Isso está completamente fora de moda. Não insistamos mais.

Cahiers – Você defendeu Bergman. Por conseguinte, não lhe faz a crítica de alguns que lhe tomam por um cineasta “literário”, que só se utiliza de “símbolos”…

Éric Rohmer – Não mudei de opinião. Não retifico de forma alguma minha obra de crítico. Sigo defendendo as pessoas que defendi, e sigo atacando as pessoas que atacava. Portanto, sigo pensando o mesmo que disse sobre Bergman. Gosto muito de seu trabalho. De todo modo, não tenho nenhum apriorismo. Ou seja, em relação ao cinema subjetivo que acabo de rejeitar, não está fora de questão que algum dia alguém muito bom acabe por me fazer admiti-lo.

Cahiers – Portanto, segue completamente fiel à política dos autores?

Éric Rohmer– Sim, não mudei de opinião.

Cahiers – Segue crendo na mise en scène?

Éric Rohmer– É possível dizer, como fez Godard, que a mise en scène não existe. Se for considerado que a mise en scène é a arte do cinema, a operação cinematográfica por excelência, então negar sua existência é o mesmo que negar que o cinema seja uma arte e o cineasta um artista. Agora, se a mise en scène for concebida como uma técnica finalmente muito próxima da técnica teatral, ou daquilo que na profissão se chama de “realização”, a ação de fazer valer, uma arte da execução, então é bem possível pretender que ela não existe. Se, pessoalmente, permaneço fiel ao termo mise en scène, é que não entendo por ele uma realização, mas uma concepção: a arte de conceber um filme. Essa concepção é posteriormente realizada pela equipe colocada à nossa disposição e que é composta por um operador de câmera, um editor etc. Poder-se-ia efetuar algo sem o montador e o operador, mas também se pode confiar neles sem deixar por causa disso de ser um metteur en scène. É por esse motivo que negar a mise en scène tal como, bem entendido, ela é concebida nos Cahiers, seria o mesmo que negar o cinema. Eu não creio que o melhor diálogo do mundo seja suficiente para se fazer um bom filme. E, todavia, a mise en scène pode estar inclusa nele de modo que o trabalho no set se torne inútil. Isso não quer dizer que a mise en scène não exista; isso quer dizer, no caso, que o roteiro já contém mise en scène. E se é verdadeiro que se pode deixar de assistir à rodagem das tomadas, também é certo dizer igualmente que a mise en scène pode ser feita na montagem.

Cahiers – Nos seus artigos, especialmente os mais antigos, seu posicionamento não era apenas estético, mas também político.

Éric Rohmer – Sim. E não menos conservador. Hoje o lamento. A política é inútil. Ela constituiria um desserviço à minha causa. Mas a situação não era a mesma em 1950. Releiam L’Écran français: o cinema americano encontrava-se condenado em bloco. Para denunciar a impostura da esquerda, era necessário pender a balança à direita, corrigir um excesso mediante outro excesso. Mas, há quase dez anos, a crítica de cinema na França jogou a política às urtigas. Isso fez com que ela se tornasse a melhor do mundo.

Dito isso, nada impede que um crítico ou um cineasta tenham suas próprias convicções. Atualmente, sou bastante indiferente à política – ao menos se tomada no seu sentido literal –, mas eu não mudei. Eu não sei se sou de direita, mas o que é certo, em todo caso, é que não sou de esquerda. Por que eu haveria de ser de esquerda? Por qual motivo? O que me obriga a isso? Sou livre, ao que me parece! Todavia, as pessoas não o são. Hoje, deve-se primeiro fazer seu ato de fé na esquerda, após o qual tudo é permitido.

A esquerda não tem, que eu saiba, o monopólio da verdade e da justiça. Eu também sou – quem não o é? – partidário da paz, da liberdade, da extinção da pobreza, do respeito às minorias. Mas não chamo a isso ser de esquerda. Ser de esquerda é aprovar a política de alguns homens, partidos, ou verdadeiros regimes que assim se denominam, e que não hesitam em praticar, quando lhes convêm, a ditadura, a mentira, a violência, o favoritismo, o obscurantismo, o terrorismo, o militarismo, o belicismo, o racismo, o colonialismo, o genocídio. Por outro lado, equivoco-me em seguir falando disso. Todo mundo sabe que essas velhas categorias de direita e esquerda já não significam nada hoje – se é que alguma vez tenham significado algo –, ao menos na França e entre os “intelectuais”.

Nada nos determina politicamente de maneira profunda, nem nossa origem, nem nossa fortuna, nem nossas necessidades, nem nossa profissão, nem sequer nossas crenças religiosas ou filosóficas. O que às vezes nos faz passar de um extremo ao outro é o acaso, uma leitura, uma frase, uma mulher, um amigo, o amor pela novidade ou o senso da oportunidade. Eu vi pessoas mudarem de ideias mais frequentemente que de sobretudo. Era o único luxo delas. Um luxo que nada custa. Enquanto que um sobretudo…

E depois por que aquele que escreve, que pinta ou que filma teria opiniões mais justas sobre o governo da sociedade do que aqueles que são encarregados por prover suas necessidades, e não, como nós, os seus prazeres? Cada vez que um artista se mistura com a política, em vez de aportar o que seria justo esperar dele – a saber, uma visão mais serena, mais vasta, mais conciliadora das coisas –, ele se encerra na posição mais limitada, mais tacanha, mais excessiva. Incita o encarceramento, o massacre, a destruição; ignora o perdão, a tolerância, o respeito pelo adversário. É normal, como dizia Platão: aquele que nasce para exaltar as paixões dos homens não pode ser mais do que um medíocre moderador.

Cahiers – Você acha, então, que o cineasta deve mostrar-se indiferente ao seu tempo?

Éric Rohmer– Não. Em absoluto. Muito pelo contrário. Eu diria inclusive que pode e que deve se engajar, mas não politicamente no sentido literal e tradicional do termo. O que a arte oferece aos homens? O prazer. É à organização desse prazer que o artista deveria se consagrar. E como nós entramos, diz-se, na era do ócio, talvez encontre nela um papel importante, apaixonante e completamente à sua altura.

Mas, aqui novamente, eu não lhes darei carta branca. Não há nada mais iconoclasta e ao mesmo tempo pior profeta do que um criador. Permitam-me abrir um pequeno parêntese que não está demasiado distante do que digo, e que provará que o amor pelo antigo e o amor pelo novo não são – longe disso – incompatíveis. O sentido do passado, o gosto pela história, são características essenciais da nossa época. Eu já o disse em Le celluloïd et le marbre. Não só o passado alimenta parte dos ócios do homem, mas também seu trabalho: a indústria do livro, do disco, da rádio, da televisão (e, portanto, as do papel, da matéria plástica, da eletrônica), mas também a do automóvel e do avião. Se não, por que se toma o carro ou o avião? Para visitar os Castelos do Vale do Loire ou as Pirâmides…

Gosto de Paris e queria criar algo para sua salvaguarda. Mas o fato de que Jess Hahn, em O Signo do Leão (Éric Rohmer, 1959), caminha pelas margens do Sena certamente não impede que um dia elas venham a ser substituídas por uma rodovia, que não somente desfigurará a margem direita como não servirá estritamente para nada, uma vez que o trajeto mais curto de Boulogne a Vincennes não é o cais – que faz uma curva –, mas o anel! Em Métamorphoses du paysage industrielle (1964), em Nadja (1964), mostro coisas que a meus olhos devem ser salvas. Só que, é claro, não possuo uma audiência, mas outros podem fazer como eu e a união faz a força.

Uma coisa me chocou em Le Corbusier. Lamentava não ter construído no centro das cidades. Estranha ideia! Godard deplora que seus filmes não são projetados em francês e que Molière não é tirado do repertório? Há um lugar para tudo, e espaço é o que menos falta. Quanto mais se respeita o passado, mais se abre o caminho para o moderno. O extremo conservadorismo e o extremo progressismo são irmãos. Se as casas de Paris forem demolidas de pouco em pouco, se as ruas forem gradualmente aplainadas, nunca será construído nada verdadeiramente novo. Ao contrário, se fosse absolutamente proibido destruir o que quer que seja, se colocassem um freio na hipertrofia do subúrbio, talvez chegasse a hora, como dizia Alphonse Allais, de construir as cidades no campo. Parece-me muito mais sensato, normal, racional. Vocês não acham?

Quero dizer que se veem hoje tantas coisas absurdas que a ideia mais louca será menos louca que tudo o que se diz, se faz ou se projeta nesse momento. E o que há de mais louco, mais custoso, mais difícil de se fazer? Aplastar aglomerações concebidas à escala de pedestres e de uma população restrita pelo gás do escapamento e o cimento dos grandes conjuntos, ou então fazer surgir ex nihilo, à maneira dos romanos ou dos pioneiros do Oeste, uma cidade nova (não qualquer novo Sarcelles nem sequer uma Brasília, mas uma cidade viva, imensa, industrial, alegre, consagrada à ciência, aos jogos, aos esportes, às festas, aos congressos, ao ócio), fazê-la surgir em alguma parte do deserto francês que não seja, no entanto, uma Tebaida, sobre a costa de las Landas, por exemplo, e que nos dará essa segunda metrópole (Los Angeles, Milão, Barcelona) que tanta falta nos faz.

Tranquilizem-se, não tenho intenção de ocupar o posto de comissário geral do Planejamento, mas por que qualquer francês não deveria ter suas ideias, mesmo que idiotas, sobre o planejamento territorial quando as tem sobre a reforma eleitoral ou o conflito indo-paquistanês? Curiosamente, são as pessoas que exercem as profissões artísticas as que se mostram mais indiferentes a esse problema, ao passo que se lançam a assinar petições e apoiar partidos políticos. Interessam-se pelo social – que não é realmente de sua competência – e não dão a mínima, aparentemente, ao cenário de sua vida. Não percebem que a existência do cenário é ligada a coisas tão claramente vitais como o ar que respiramos, a terra que nos alimenta, a água que bebemos. De que nos servirá sermos iguais e livres se a água tornou-se intragável, a terra estéril, o ar envenenado? É ótimo que cada trabalhador possa passar, caso queira, um mês de cada ano à beira do mar. Mas que o mar pelo menos seja mar e não betume.

Não sou pessimista. Quero dizer apenas que esses problemas, que certamente encontrarão uma solução, são muito mais atuais e importantes que os da política clássica. Quero dizer também que oferecem ao cineasta um campo muito mais vasto e bem mais ao seu alcance. Um filme político, especialmente na França, só pode ser uma exceção. Nada me irrita mais do que ver alguns pagarem de maneira grotesca seu tributo à política por meio de alguma alusão incongruente e forçada à atualidade. O cenário da vida, ao contrário, nenhuma arte pode mostrá-lo melhor do que o cinema. O único problema – problema maiúsculo – é que na França não se encontra um cenário verdadeiramente moderno, e quanto a isso só podemos invejar os americanos e os italianos. Mas há, além dos filmes de ficção, um ramo muito importante – embora se fale pouco dele – e que espera apenas o nosso “engajamento”. É o filme de informação, financiado pelo Estado ou pelas empresas e que trata principalmente de todos esses problemas do desenvolvimento econômico, do acondicionamento, da construção, no qual conviria ao cineasta intervir de forma mais ativa, mais séria, mais apaixonada que o habitual. Eu sei que é um trabalho encomendado e que não se é livre, mas enfim, vimos filmes antimilitaristas encomendados pelo Ministério do Exército. O que me surpreende e me deixa triste é que as pessoas que tratam desse tipo de assunto parecem se desinteressar pelos méritos da questão, colocando-se sem pudor ao serviço da tecnocracia e dos slogans mais estúpidos. Ao invés de se reconsiderar a coisa que é dada a tratar, de trazer um olhar novo sobre ela, enxergam apenas mais uma oportunidade para um exercício de estilo. Não será pelos seus travellings ou pelos seus enquadramentos esmerados que merecerão o nome de artistas: é pela vontade de tratar o tema e de sobrepor o ponto de vista da arte ao da técnica.

Há uma espécie de renúncia do cineasta frente à evolução do mundo moderno, que é muito mais censurável que o desinteresse pela política. Cada um tenta tirar uma vantagem do jogo e nenhum parece minimamente afetado pela infinita platitude, infinita vulgaridade –eu sei, há exceções –da imprensa, do rádio, da televisão, do cinema, que lhe serve, é certo, como sustentação. É muito bom às vezes pertencer ao seu tempo. Mas também é necessário saber ir contra a corrente. A arte não é um reflexo do seu tempo: ela o precede. Não deve seguir os gostos do público, mas ultrapassá-los. Deve permanecer surda às estatísticas e aos gráficos. Deve principalmente afrontar como a uma praga a publicidade, mesmo a mais inteligente. A publicidade é o vírus número um do cinema. Ela falseia tudo, deteriora tudo, inclusive o prazer do espectador, o juízo dos críticos. É preciso negar-se a fazer parte do seu jogo. Dir-se-á que é impossível ou que a única saída é rodar filmes de amador. Bem, é o que faço, ou quase.

(Cahiers du cinéma nº 172, novembro de 1965, pp. 32-43+56-59. Traduzido por Felipe Medeiros)

Notas:

[1] Referência a um famoso e polêmico artigo de Éric Rohmer, Le celluloïd et le marbre, publicado originalmente nos Cahiers du cinéma. [N.T.]

[2] Vingt ans après: le cinéma américain, ses auteurs et notre politique en question, por Jean-Louis Comolli, Jean-André Fieschi, Gérard Guégan, Michel Mardore, André Téchiné e Claude Ollier. [N.T.]

Texto e imagens reproduzidos do site: estadodaarte.estadao.com.br 

Nenhum comentário:

Postar um comentário