sexta-feira, 10 de junho de 2022

"Buñuel e o enigma do copo vazio", por Luiz Carlos Merten

Legenda da foto: Imagem reproduzida do site [nacion.com] e postada pelo blog par ilustrar o presente artigo.

Texto publicado originalmente no BLOG DO MERTEN, em 10 de junho de 2022

Uma geleia geral a partir do cinema.

Escrito por Luiz Carlos Merten

Meu Sonho de Cinema (13). Buñuel e o enigma do copo vazio

Na sexta da semana passada, estava em Paris, imerso nas 1001 ofertas de cultura e lazer proporcionadas pela capital francesa. Por lazer, entendam os encontros, almoços e jantares, com amigos queridos. Por cultura, as múltiplas possibilidades de filmes e programações especiais proporcionadas pelos cinemas de arte-ensaio localizados no 5ème, ao redor da Sorbonne, onde gosto de ficar hospedado. Como não havia lugar no Atmosphères, nem no Sorbonne Design, fiquei pela primeira vez num hotelzinho simpático, o French Theory, na Rue Cujas, onde havia, ao lado, um cinema que frequentei muito, o Accatone, o único que fechou naquela vizinhança. Com tanta coisa para pensar e fazer, resolvi ‘pular’ o que já está virando, para mim, a viagem das sextas-feiras, resgatando velhos textos meus reunidos no livro Meu Sonho de Cinema.

Havia visto o filme de Luis Buñuel, Ensayo de Un Crimen, de 1955, também conhecido como La Vida Criminal de Archibaldo de La Cruz, e que é uma das obras maiores do grande diretor. (Parei para ver, no Bom-Dia Brasil, as imagens de agressões a transexuais e a uma mulher paraguaia, aqui em São Paulo, todas manifestações da cultura de ódio que esse maldito – Zé do Caixão é fichinha perto do verdadeiro merecedor do título – legitimou no País. Isso tem de acabar.) Volto a Meu Sonho de Cinema, e a Dom Luís. O texto que vocês poderão ler é longo, tem quase 40 anos. A muitos parecerá interminável. Para mim é quase uma necessidade resgatá-lo. A morte de Buñuel – naquele ano, 1983 – e a proximidade do seu Fantasma da Liberdade me levaram a encarar o autor como o fantasma da minha geração. Não me lembrava desse texto. Foi um reencontro, com o cinema que amo, e comigo mesmo.

BUÑUEL, O FANTASMA DA LIBERDADE

Duas cenas apenas, que podem não resumir o melhor de Luis Buñuel – afinal, foram 33 filmes em quase 50 anos de carreira -, mas que ajudam a entender o que era o cinema para o diretor que morreu no último dia 29 de julho, aos 83 anos. Não vamos falar do famoso corte de olho com uma navalha na abertura de Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou) de 1928, nem da Santa Ceia profana de Viridiana, de 1961, Palma de Ouro no Festival de Cannes. Viridiana mesmo: Francisco Rabal vê passar uma carroça com um cachorro preso. O carroceiro judia do animal, a prima Sílvia Pinal (Viridiana) se penaliza e Rabal compra o cachorro para soltá-lo. Imediatamente, passa em sentido contrário, outro carroceiro com outro cachorro preso e Rabal não faz nada para minorar o sofrimento desse segundo animal. O Discreto Charme da Burguesia, de 1972, Oscar da Academia de Hollywood para o melhor filme estrangeiro: Fernando Rey não resiste a um Gigot d’Agneau, que consome com evidente prazer debaixo de uma mesa, apesar de ameaçado por terroristas. Nenhum outro cineasta filmaria essas cenas. E, se por acaso, elas aparecessem em filmes não dirigidos por Buñuel, os críticos assinalariam logo a influência. São toques típicos da irreverência de Buñuel, do seu incomparável senso de humor.

Buñuel foi um dos fantasmas da minha geração cinematográfica, talvez o maior de todos. No início dos anos 60, éramos jovens, entusiasmados, cheios de teoria. dividíamos os cineastas em dois grandes grupos: os que acreditavam na realidade e os que acreditavam na imagem. Os grandes mestres da época pertenciam ao primeiro grupo, Buñuel se encaixava no segundo. Seu cinema descendia das experiências de montagem de Eisenstein (O Encouraçado Potemkim), se bem que seguindo uma trilha original, por seus elementos surrealistas. Buñuel fazia um cinema de trucagens, dizíamos nós, os jovens críticos, para arrematar: o fascínio dos seus filmes dura somente o tempo da projeção. Importantes, por isso mesmo, eram os mestres que acreditavam na realidade e faziam um cinema contra ela, no sentido de transformá-la. Importante era, para escândalo dos críticos das gerações anteriores, o hoje esquecido Riccardo Freda, que sabia utilizar tão bem o cenário (vide Maciste no Inferno). Hoje, muitos desses pequenos mestres foram desmontados da história e caíram no esquecimento, até injustamente. O tempo terminou sendo favorável a Buñuel.

Os períodos

Dramalhão – É difícil falar sobre Buñuel, tentar reduzi-lo a uma ideia ou conceito, porque, na realidade houve vários Buñuel. O primeiro período europeu, o período mexicano, o segundo período europeu, o período especificamente francês – todos se caracterizam pela coerência, mas são extremamente diversos entre si. Paulo Francis escreveu outro dia que Buñuel talvez tenha sido o único gênio da história do cinema, que não levava o cinema a sério – a estética cinematográfica, pelo menos. Isolado no México, depois que Hollywood lhe negou trabalho, Buñuel não se importou de ter que usar o formato de novelão de rádio do cinema mexicano para continuar produzindo. Reprisados em Nova York, os 17 filmes do período mexicano ganhariam um elogio em bloco do crítico Vincent Canby, que acha que Buñuel nunca se deixou limitar pelo dramalhão, pelo contrário. Comentando Viridiana, que não é exatamente do mesmo período, mas um pouco posterior, Walnice Nogueira Galvão observou o significado intrínseco do aspecto grosseiro e tão evidente do melodrama, e que equivale a uma denúncia das convenções do gênero, desde o interior.

Surrealismo

Também é curioso que Buñuel tenha realizado O Cão Andaluz com Salvador Dali à margem do clã surrealista e só depois tenha sido por ele adotado. O surrealismo de Buñuel, de resto, nunca foi aprofundado e sim colocado como crítica dos absurdos entre teoria e prática da Igreja e do Estado contra o ser humano – como observou Francis. O próprio Buñuel considerava surrealista somente O Anjo Exterminador, de 1962, mas é evidente que há elementos surrealistas ao longo de toda sua obra. A caixa de música do chinês em A Bela da Tarde, de 1967, o tinteiro que o médico masoquista precisa no mesmo filme, o misterioso saco de estopa que atravessa as imagens de Esse Obscuro Objeto do Desejo, de 1977, entre muitos outros detalhes que poderiam ser lembrados, são desafios à lógica habitualmente empregada para narrar filmes. O mais notável é que, mesmo tendo assistido ao surgimento de várias escolas durante meio século de carreira, Buñuel jamais abandonou a ótica surrealista.

“Ateu, graças a Deus”

Com ele não aconteceu o que houve com Paul Éluard ou Louis Aragon, que superaram o surrealismo e se tornaram marxistas. É aqui que outro crítico, Luiz Izrael Febrot, busca explicação para outra importante faceta da personalidade do cineasta. Para ele, Buñuel foi sempre mais antiburguês do que anticapitalista, mais anticlerical do que ateu absolutamente convicto (o próprio Buñuel definia-se como “ateu, graças a Deus”). E mesmo Febrot vê um peso desigual entre a repugnância de Buñuel pelo homem conformista e conformado, respeitador de títulos e posições, reverente ao poder e ao dinheiro (o “burguês-burguês” de Mario de Andrade) e a sua definitiva convicção de que não há solução numa sociedade que tem por fundamento a produção coletiva e a apropriação individual, considerada a matriz geradora de todas as misérias. A primeira é evidentemente mais forte, se bem que isto não significa uma adesão de Buñuel ao reformismo. Explica, quem sabe, a sua não-transformação em artista marxista. Explica a discutida constatação de que, na hora do perigo em Viridiana, os personagens são salvos da fúria destrutiva dos mendigos justamente pela Guarda Civil de Franco – atitude inadmissível para um antifranquista notório como Buñuel.

Última fase

Velho Bach – o próprio Buñuel considerava Viridiana o filme mais próximo da síntese do seu pensamento cinematográfico anticonvencional e antiburguês. O tema é a denúnicia da caridade numa sociedade competitiva e repressora. O Buñuel mais elegante, porém, o mais sereno e bem humorado, foi o da última fase francesa, que encontrou, enfim, as condições que nunca teve no México, por exemplo, O Discreto Charme da Burguesia, O Fantasma da Liberdade (desde o título, uma homenagem discreta a Karl Marx e ao “espectro” que percorre a Europa e que se chama comunismo, na abertura do Manifesto) e Esse Obscuro Objeto do Desejo, são os filmes que dão vazão plena ao humor de Buñuel. O cineasta solta-se, solta sua câmera e quem vai fazer isso depos dele, em tom menor, é o Robert Altman, de Cerimônia de Casamento, o discreto charme de uma burguesia americana. São esses filmes, mais do que Tristana, de 1970, que dão razão a Jean-Luc Godard, quando ele dizia que ” Buñuel realizou filmes como Bach tocava na velhice”. São também esses filmes que mostram aquilo que Glauber Rocha considerava o melhor de Don Luis, a sua marca realmente característica de filmar os travellings laterais, as panorâmicas que acompanham o movimento do ator e cortam retomando outros travellings e panorâmicas de igual medida.

A respeito da polêmica “cinema da realidade versus cinema da imagem”, Buñuel declarou, num debate com Cesare Zavattini, colaborador de Vittorio De Sica em Ladrões de Bicicleta e outros clássicos, que o incomodava nos filmes neo-realistas de imediato a visão, o compromisso com aquilo que se convencionou chamar de de “realidade objetiva”. Na tela, aparece um copo vazio e nada mais, quando para Buñuel era preciso lembrar, pelo menos, que ele está cheio de ar. “Um copo visto por pessoas diferentes pode ser mil coisas diferentes, porque cada pessoa joga uma dose de afetividade no que vê e ninguém vê as coisas como são, e sim, como os desejos e os estados de espírito o fazem ver”. Coerente com essa definição, Buñuel usou o cinema como uma janela aberta para o prolongamento dessa realidade que descobrimos com a experiência do cotidiano – uma janela aberta para dentro de nós mesmos, conforme observou José Carlos Avellar.

O cinema como sonho

O homem que não sonha, costuma dizer Buñuel, citando André Breton, é um ser asqueroso. Os sonhos, ele gostava de explicar, são uma forma de conhecimento, que devemos aceitar tal como ela nos chega, sem tentar aprisioná-las com explicações racionais, com tentativas de interpretação dos símbolos. Quando lhe perguntavam o que há dentro da caixa de música que o chinês mostra à Sevérine (Catherine Deneuve), em Bela da Tarde, Buñuel gostava de dizer: “o que você quiser”. Não existem símbolos nem chaves para o entendimento das imagens, existem só as imagens e o que Buñuel faz é estimular o espectador a se perguntar sobre a maneira de ver as coisas. Como ele dizia: “Creio que não existe meio melhor que o cinema para nos mostrar uma realidade que não conseguimos tocar com os dedos. Pelos livros, pelos jornais, pela nossa experiência, conhecemos uma realidade exterior e objetiva. O cinema, como o sonho, por seu mecanismo próprio, nos abre uma pequena janela para o prolongamento dessa realidade. Minha aspiração, como espectador de cinema, é descobrir, através do filme, alguma coisa que não se pode ver na realidade objetiva”.

Janela para dentro

Revolução do Olhar – Fazendo do cinema essa “janela para dentro”, Buñuel desenvolveu uma visão essencialmente antiburguesa do mundo, e essa, de acordo com Izrael Febrot, é a explicação para o fato desse homem visceralmente político ter se recusado, sempre, a fazer cinema político como o praticaram e praticam Eisenstein, Pudovkin, Gillo Pontecorvo ou Costa-Gavras. Crítico da sociedade, Buñuel manteve a análise no plano do relacionamento social, sem sugerir explicações, causas e soluções. Buñuel foi sempre socialmente engajado, porém, não partidariamente faccioso. É esse o elemento de unidade das várias fases do cineasta, o chamado “ponto de vista da liberdade” em Buñuel, a que se refere Febrot.

A qualidade desigual

São 33 filmes em 50 anos de carreira. Não é muito, quantitativamente. Ingmar Bergman realizou um pouco mais em menos tempo e John Ford realizou mais de cem filmes num período aproximado. A quantidade, porém, não é o que importa. A própria qualidade é desigual, com altos e baixos. O que importa é a unidade. Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro (L’Age d’Or), de 1930, parecem hoje datados: são filmes para exibições em cinematecas, pertencem à pré-história de Buñuel e do cinema. Os Esquecidos, de 1950, considerado um dos clássicos da fase mexicana, é esteticamente insatisfatório, não pela pobreza de recursos com que Buñuel filma a infância abandonada, mas pelo seu realismo, que não se sustenta, justamente por ser estranho ao autor. Mas o espectador sempre poderá escolher o Buñuel da sua preferência. Poderá ser o da trilogia mais declaradamente anticlerical (Nazarin, de 1959; Viridiana e O Anjo Exterminador) ou da outra trilogia, mais declaradamente antiburguesa (O Discreto Charme, O Fantasma da Liberdade e Esse Obscuro Objeto do Desejo), essa última, de longe, a minha preferida.

Há muito mais. Há o Buñuel estudioso de psicologia de El, de 1952 (o filme também é conhecido como Essa Estranha Paixão), que conta uma história de ciúme: ao levar a obsessão machista pela virgindade da mulher aos limites da paranoia, o cineasta denuncia a insanidade do comportamento latino. Lacan considerava El um filme perfeito e gostava de exibi-lo para os seus alunos. Mais discutidos são dois filmes com Catherine Deneuve, atriz que deve seu mito a Buñuel (e ao Polanski de Repulsa ao Sexo): A Bela da Tarde e Tristana. Não estou muito de acordo com Sergio Augusto quando ele diz que Buñuel se interessa menos pela patologia em A Bela da Tarde e segue o caminho mais difícil das inovações de linguagem, reduzindo forma, conteúdo e estrutura à colocação das posições relativas do mundo e do espectador, isso é, do real e do imaginário, nivelando todos os signos da fantasia e da realidade. Também não concordo muito com Raymond Durgnat, quando ele afirma, referindo-se ao mesmo filme, que Buñuel pode tratar um caso patológico à maneira de uma comédia de Ernst Lubitsch, porque as relações burguesas são mesmo psicopatológicas. De qualquer maneira, A Bela da Tarde é um marco: o primeiro grande êxito de público de Buñuel, além de ter recebido o Leão de Ouro no Festival de Veneza. E há, ainda, O Estranho Caminho de São Tiago, ou A Via Láctea, de 1968, que mostra um jovem e lindo Jesus Cristo, filmado com evidente simpatia, preocupado com a fome e o calor, com cortar ou não os cabelos e a barba, sem que por isso o cineasta abra mão de documentar dois mil anos de heresias, crenças, misticismos, dogmas e, sobretudo, violências, sendo essa a história do cristianismo, segundo Buñuel. Vendo esse filme, é possível entender porque Buñuel descartou desde cedo o ranço religioso: o totalitarismo e a tirania da Igreja Católica, enquanto instituição, o levaram a isso.

Este curioso cidadão do mundo

Formado em Filosofia, profundamente influenciado por Freud e pelo Marquês de Sade, Buñuel foi um curioso cidadão do mundo. Nascido na Espanha, espanhol por origem e formação, foi também o cidadão que escolheu o México como morada e viveu até o fim nesse país, com escapadelas para filmar na França suas devastadoras sátiras à burguesia. Intelectual, frio, avesso a qualquer sentimentalismo, Buñuel encontrou o parceiro ideal no roteirista francês Jean-Claude Carrière, com quem realizou seis filmes, neles aflorando o amor e o sexo, o erotismo, mas nunca a pornografia, numa colaboração que inclui, ainda, o importante (e delicioso) livro autobiográfico Meu Último Suspiro. Podem-se discutir momentos isolados e até concepções de Buñuel sobre a arte, o cinema, mas não há dúvida que esse homem foi um gigante – um daqueles raros gênios que marcaram a arte desse nosso século. Sua maior contribuição ao cinema foi uma espécie de “revolução do olhar”. Filmes se dirigem aos sentidos, basicamente ao olho humano, que Buñuel cortou com uma navalha em Um Cão Andaluz para estimular as pessas a verem melhor as coisas, a verem além da aparência, além da realidade objetiva que tanto nos condicionava em 1960. Como escreveu José Carlos Avellar, num meio de expressão que, com frequência, se vale de objetos e formas imaginadas para passar uma sensação de realidade. Buñuel seguiu o caminho inverso e procurou se servir de formas e objetos reais para passar uma sensação de irrealidade. Burgueses estão sentados à mesa, comendo. Nada mais banal do que a imagem de O Discreto Charme. Mas, de repente, abre-se uma das paredes da sala e estamos num teatro. A burguesia vive de representação, diz a cena. E essas coisas Buñuel mostrava através de uma maneira diferente de olhar as coisas reais.

A última irreverência

Poderia se chamar Confesso Que Vivi, como o livro de memórias do poeta chileno Pablo Neruda. Mas Buñuel é muito pudico em sua autobiografia: essa confissão de vida provavelmente lhe parecia exibicionista e assim ele preferiu o título muito mais sugestivo de Meu Último Suspiro. Inativo desde a realização de Esse Obscuro Objeto do Desejo, em 1977, quando alternou duas atrizes, Carole Bouquet e Angela Molina, para dar a dimensão de sensualidade e ambivalência da personagem Conchita, é no mínimo curioso que Buñuel tenha usado não a imagem e sim a palavra para cometer sua última irreverência. Não sendo um homem de letras, adverte ele no início de Meu Último Suspiro, recorreu ao roteirista Jean-Claude Carrière, seu colaborador em seis filmes. Seguindo fielmente o que Buñuel lhe dizia, Carrière ajudou-o a a escrever a obra que o próprio autor chama de semibiográfica.

No primeiro capítulo, Memória, Buñuel explica porque desviou-se da biografia tradicional para criar quase um romance picaresco, na grande tradição espanhola do gênero. “A memória”, afirma ele, “é permanentemente envolvida pela imaginação e pelo devaneio. E como existe uma tentação a acreditar no imaginário, acabamos por transformar nossa mentira em verdade. O que, aliás, só tem importância relativa, já que ambas são igualmente vividas e pessoais”. Meu Último Suspiro é o relato bastante livre dos primeiros anos na Espanha, seguindo-se as experiências em Paris na década de 1920, durante o surrealismo; a Guerra Civil espanhola, na década seguinte; a passagem por Hollywood; a velhice tranquila no México.

Buñuel talvez decepcione um pouco por falar rapidamente demais sobre seus filmes. Mas, de resto, o livro é exemplar como documento de uma vida extremamente rica. Buñuel fala com economia e senso de observação sobre seu país, a Espanha, que ele vê invertebrado como a viu o filósofo Ortega y Gasset, e também, sobre as personalidades que conheceu. Nesse sentido, é impressionante a sua lembrança de Garcia Lorca, quando ele critica a poesia e o teatro do autor andaluz para concluir, com grande encanto, que ele, Federico, é que era a obra-prima, a pessoa mais que o artista.

Lendo esse livro, não é difícil concordar com Glauber Rocha, quando ele afirma: “A história do cinema situa Buñuel como um autor e, para glória do cinema, será ele um dos poucos cineastas que, no futuro, terão citação destacada entre os pensadores da nossa época”. O Buñuel-pensador emerge dessas páginas impregnadas de serena ironia, falando sobre tudo, arte e vida, sexo e amor, surrealismo e marxismo, burguesia e igreja, expressando aquela dualidade fundamental, que foi o elemento motor da sua obra: o conflito entre a atração teórica pela desordem e a necessidade íntima de ordem e paz. O último capítulo chama-se Canto de Cisne e mostra um Buñuel tranquilo diante da morte que se avizinha.

Seu único pensar diante da morte era já não saber o que viria depois dele. É como “abandonar o mundo em pleno movimento, no meio de um folhetim”, ele dizia. Por isso, no livro, Buñuel faz a derradeira confissão. Apesar do seu ódio pela informação, gostaria de erguer-se entre os mortos, a cada dez anos, caminhar até uma banca de jornais e comprar alguns. “Não pediria mais”, ele conclui. “Com os jornais embaixo do braço, lívido, esbarrando nos muros, voltaria ao cemitério e leria os desastres do mundo, antes de tornar a dormir, satisfeito, na proteção tranquilizadora da sepultura”.

Zero Hora, Porto Alegre, agosto de 1983

Texto reproduzido do blogdomerten.wordpress.com

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