Legenda da foto: No set de A Fraternidade é Vermelha com Irène Jacob e Jean-Louis Trintignant.
Publicação compartilhada do site PERSONA CINEMA, de 19 de abril de 2016
Por Leandro Costa
Opolonês Krzysztof Kieslowski é um dos diretores mais importantes da história do cinema. Basta dizer que, num período de oito anos, escreveu e dirigiu quinze filmes dos mais emblemáticos que a sétima arte conheceu. Filmes que são verdadeiras obras-primas como O Decálogo, A Dupla Vida de Véronique e a famosa Trilogia das Cores (A Liberdade é Azul, A Igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha).
No período entre os anos de 1991 e 1993, um pouco antes de sua morte aos 54 anos, o diretor concedeu uma série de entrevistas à sua amiga Danusia Stok. O resultado dessas entrevistas foi a publicação do livro Kieslowski on Kieslowski. Transcrevo abaixo a tradução que fiz de alguns trechos, no intuito de sugerir o conhecimento da filmografia e da personalidade desse grande artista.
Admiração
“Muitos filmes ficaram na minha memória simplesmente porque eles são bonitos. Lembro-me deles porque sempre pensei que nunca seria capaz de fazer algo do tipo em minha vida (sem dúvida esses são os filmes que sempre deixam a maior impressão); não devido à falta de dinheiro ou porque eu não possuísse os meios ou os técnicos, mas porque eu não tinha a imaginação, a inteligência nem o talento suficientes. Eu sempre disse que nunca quis ser assistente de ninguém, mas, se Ken Loach, por exemplo, me solicitasse, eu faria café para ele com prazer. Eu vi Kes na escola de cinema e então eu soube que gostaria de fazer café para ele. Eu não queria ser um assistente nem algo do tipo — eu apenas faria o café de modo que eu pudesse ver como ele faz a coisa toda. O mesmo se aplica a Orson Welles, ou Fellini, e, às vezes, a Bergman.
Já houve diretores maravilhosos, mas agora eles estão todos mortos ou aposentados. Está tudo no passado — o período das grandes personalidades. Assistindo aos grandes filmes, eu não ficava nem com inveja porque você só pode ter inveja daquilo que, teoricamente, está ao seu alcance. Você pode invejar isto, mas você não pode invejar o que está completamente além de você. Não havia nada errado com os meus sentimentos. Pelo contrário, eles eram bastante positivos; certa admiração e certo deslumbramento de que algo daquele tipo fosse possível — e de que estaria sempre fora do meu alcance.
Tarkovski foi um dos grandes diretores dos últimos anos. Ele está morto, como a maioria deles. Ou seja, a maioria deles está morta ou parou de fazer filmes. Ou ainda: em algum momento do percurso, eles perderam algo de modo irreparável. Algum tipo individual de imaginação, de inteligência, ou uma maneira de narrar uma história. Sem dúvida Tarkovski foi um dos que não perderam nada disso. Infelizmente, ele morreu. Provavelmente porque ele não podia mais viver. Geralmente é por isso que as pessoas morrem. Pode-se dizer que é câncer ou ataque cardíaco ou que a pessoa foi atropelada, mas geralmente as pessoas morrem porque elas não podem continuar vivendo.
Nas entrevistas, sempre me perguntam quais diretores me influenciaram mais. Eu não sei responder a isso. Provavelmente foram tantos, por tantos tipos diferentes de motivos, que não há nenhum padrão lógico. Quando os jornais perguntam, eu sempre respondo: Shakespeare, Dostoievski, Kafka. Eles ficam surpreendidos e me perguntam se estes são diretores. “Não”, eu digo. “Eles são escritores”. E isso é tanto ou senão mais importante do que os filmes.
A experiência da arte
A verdade é que eu assisti a uma quantidade enorme de filmes — principalmente na escola de cinema — e gostei de muitos deles. Mas você pode chamar isso de influência? Acho que, hoje em dia, exceto por algumas exceções, assisto filmes como um membro do público e não como um diretor. É um modo completamente diferente de olhar para as coisas. É lógico que, se alguém me pede conselhos ou algo do tipo, daí assisto com um olhar profissional. Mas se vou ao cinema — o que acontece muito raramente — , tento assistir filmes do mesmo modo que o público o faz. Ou seja, tento me permitir ser tocado, me render à mágica, se ela estiver lá, na tela, e acreditar na história que alguém está me contando. E por isso tudo é difícil falar de influência.
Basicamente, se um filme é bom, e seu gostar dele, então o assisto de um modo muito menos analítico do que se eu não gostasse. Dificilmente os filmes ruins têm influência; são os bons filmes que nos influenciam. Assisto aos bons filmes com o espírito em que eles foram feitos. Não tento analisá-los. Na escola de cinema também era assim.
Assisti “Cidadão Kane” uma centena de vezes. Se você insistisse, eu poderia sentar e provavelmente desenhar ou descrever takes individuais, mas não é isso que era mais importante para mim. O que era mais importante era o fato de que eu participei do filme. Eu o experienciei.
Continuo dizendo aos meus colegas mais jovens para quem eu dou aulas de escrita ou de direção para que examinem suas próprias vidas. Não pelos propósitos de nenhum livro ou roteiro, mas para eles mesmos. Sempre lhes digo: tente imaginar o que te aconteceu, que foi importante e te levou a estar aqui sentado nessa cadeira, neste dia exato, entre estas pessoas. O que houve? O que realmente te trouxe aqui? Você tem que saber isso. Esse é o ponto de partida.
Os anos em que você não trabalha em si mesmo são, na verdade, perdidos. Você pode até sentir ou compreender algo de modo intuitivo, mas, consequentemente, os resultados serão arbitrários. É apenas quando você fez esse trabalho de análise que você pode ver uma ordem nos fatos e nos seus efeitos.
Eu também tento compreender o que me trouxe até esse ponto da minha vida, porque sem uma análise completa, autêntica e impiedosa, você não consegue contar uma história. Se você não compreende a sua própria vida, então acho que você não pode compreender as vidas dos personagens nas suas histórias, você não consegue compreender as vidas das outras pessoas. Os filósofos sabem disso. Os trabalhadores sociais sabem disso. Mas os artistas também tinham de saber disso — pelo menos aqueles que contam histórias.
Para mim, um sinal de qualidade ou de classe na arte é quando eu leio, vejo ou escuto algo e, de repente, eu tenho um sentimento claro e preciso de que alguém formulou algo que eu já experienciei ou pensei. Exatamente a mesma coisa, mas com o auxílio de uma frase, de um arranjo visual ou de uma composição de sons muito melhores do que eu jamais poderia imaginar. Ou quando, por um momento, algo me dá um sentimento de beleza, de alegria ou algo do tipo. É isso que diferencia a grande literatura da média literatura. Quando você lê grande literatura, você encontra uma ou duas frases que você pensa já ter dito ou ouvido. É uma descrição, uma imagem que está profundamente relacionada com você, que te emociona profundamente e é a tua imagem. Em alguma página, você continua se imaginando na mesma situação, ou encontra alguém completamente diferente, mas que pensa o que você alguma vez já pensou ou que vê o que você alguma vez já viu. É sobre isso que fala a grande literatura. E o grande cinema também é sobre isso — se é que existe algo desse tipo. Por um breve momento, você se encontra lá; mas se você se encontra lá e começa a tratar isso emocionalmente ou começa argumentar intelectualmente, ou comparativamente, ou analiticamente, na verdade não importa.
Os documentários
Naquela época [início da carreira], eu estava interessado em tudo que pudesse ser descrito pela câmera de documentário. Havia uma necessidade, uma ânsia — o que era muito entusiasmante para nós — de descrever o mundo.
O mundo comunista havia descrito como o mundo deveria ser e não como ele realmente era. Nós — havia muitos de nós — tentamos descrever esse mundo e era fascinante descrever algo que ainda não havia sido descrito. É um sentimento de dar vida à alguma coisa, porque é um pouco assim mesmo. Se algo ainda não foi descrito, então ainda não existe oficialmente. De modo que, se começamos a descrevê-lo, nós lhe conferimos vida.
Nem tudo pode ser descrito. Esse é o grande problema do documentário. Ele acaba caindo em sua própria armadilha. Quanto mais ele quer se aproximar de alguém, mais essa pessoa se afasta dele. E isso é perfeitamente natural. Não há solução para isso. Se estou fazendo um filme sobre o amor, não posso ir a um quarto se pessoas reais estiverem fazendo amor ali. Se estou fazendo um filme sobre a morte, não posso filmar alguém que está morrendo porque é uma experiência tão íntima que não deve ser perturbada. Percebi, enquanto fazia documentários, que quanto mais perto eu quisesse chegar de um indivíduo, mais o assunto do qual eu queria tratar o distanciava.
O Comunismo
A realidade muda e as pessoas não se importam mais com ela. Elas esquecem que ela alguma vez tenha existido. Elas não se lembram como era a realidade. Elas não se lembram do porquê de ela ter sido tão dolorosa. Em vez disso, elas tentam lembrar-se de tudo o que era prazeroso naquela realidade. Talvez seja por isso que em todos os países comunistas há uma nostalgia inexpressa — e provavelmente ninguém irá expressá-la — pelos tempos passados, embora eles fossem terríveis.
O caos e a desordem governavam a Polônia em meados de 1980 — em todo lugar, em tudo, praticamente na vida de todo mundo. Tensão, um sentimento de desesperança e um medo das coisas piores que ainda viriam eram coisas óbvias. Por esse tempo, eu já tinha começado a viajar para o exterior e observava uma incerteza geral no mundo como um todo. Não estou falando aqui sobre política, mas sobre a nossa vida ordinária, cotidiana. Eu sentia uma indiferença mútua por trás dos sorrisos polidos e tinha a impressão esmagadora de que, cada vez com mais frequência, eu estava assistindo pessoas que não sabiam o porquê de estar vivendo. Então pensei que Piesiewicz estava certo, mas que filmar os dez mandamentos seria uma tarefa bastante difícil [referindo-se à sugestão do amigo Krzysztof Piesiewicz de que Kieslowski era a pessoa certa para fazer um filme sobre os dez mandamentos].
Na Polônia, todo mundo daqueles dias do comunismo está escrevendo memórias ou dando entrevistas. Há livros por toda parte. Políticos, artistas e personalidades da televisão estão todos escrevendo sobre o quanto foram maravilhosos.
Você simplesmente não sabe mais quem era mau. Você não consegue mais encontrar uma única entrevista ou ler apenas um livro no qual alguém admite algum grau de culpa. Todo mundo é inocente. Os políticos são inocentes, os artistas são inocentes. Quando você se expressa publicamente, você sempre está certo do seu ponto de vista. Mas é uma questão diferente se você pode se sentar em frente do espelho ou encarar a si mesmo e admitir os vários erros que cometeu na sua vida. Mesmo assim eu nunca vi ninguém escrever publicamente que algo foi culpa sua, que eles fizeram alguma estupidez ou foram incompetentes.
Muitas conversas aparecem nos jornais, nos livros e na televisão com pessoas que, você pensaria, foram responsáveis por aqueles quarenta ou pelo menos pela maior parte daqueles quarenta anos de comunismo. Ninguém diz “eu sou culpado”; “eu fui o motivo de…”; “graças à minha ineficiência, devido à minha estupidez, à minha incompetência, aconteceu isso e mais isso”. Não, ao contrário. Todo mundo diz “eu salvei isso”; “graças a mim, nós conseguimos…”. Como um resultado disso, ninguém sabe onde estão as pessoas que são de alguma forma culpadas. Onde estão as pessoas que dizem “sim, sou eu. Fui eu quem causou injustiça, dor, pobreza”? Não há nenhum tipo de pessoa assim. Além disso, é esse o motivo pelo qual eles escrevem livros, é claro, para justificar a si mesmos. Seria interessante saber se eles escrevem para justificar a si mesmos aos olhos dos outros ou aos seus próprios olhos. Foi isso que sempre me interessou. Mas nós nunca descobriremos. É uma questão fundamental sobre o mal. Onde, em essência, reside o mal? Onde ele está senão em nós? Porque não está em nós, é claro que não. O mal está nos outros. Sempre.
Não estou certo se estas pessoas estão mentindo. Foi assim que aconteceu, de acordo com o seu ponto de vista. Ou talvez eles simplesmente pensem que foi assim que aconteceu. Talvez a memória deles acentue apenas aqueles fragmentos, situações e ações em que eles tentaram, de algum modo, ser melhores ou mais decentes do que os outros. E esse é o problema do relativismo. Existe um critério absoluto? Essa é uma questão fundamental hoje em dia porque tudo está se tornando tão relativo, não está?
O comunismo é como a Aids. Ou seja, você tem que morrer com ele. Você não pode se curar. E isso se aplica a qualquer um que tenha algo a ver com o comunismo, independente do lado em que estava. É irrelevante se eles eram comunistas ou anti-comunistas ou completamente indiferentes a qualquer lado político. Isso se aplica a todo mundo.
Se eles foram expostos ao sistema enquanto moravam na Polônia — ou seja, durante aquele período de quarenta anos — então o comunismo, seu modo de pensar, seu modo de vida, sua hierarquia de valores, permanece com eles e não há modo de expelir isso de seu organismo.
Eles podem tirar isso de sua mente, é claro, eles podem dizer que não estão mais doentes. Eles até podem dizer que foram curados. Mas isso não é verdade. Ele permanece dentro. Ele existe, ele permanece e não há modo de livrar-se dele. Particularmente, isso não me perturba. Apenas sei que eu tenho isso e que terei de morrer com isso, e é tudo. Não morrer disso, morrer com isso. Isso só desaparece quando você desaparece. É como a AIDS.
O sentido da vida
Todos os meus filmes, desde o primeiro até os mais recentes, são sobre indivíduos que não conseguem encontrar seu ponto de apoio, que não sabem como viver, que não sabem realmente o que é certo e o que é errado e estão procurando saber desesperadamente. Procurando por respostas para questões básicas do tipo: Para que serve tudo isso? Por que levantar de manhã? Por que ir para cama de noite? Por que levantar de novo? Como passar o tempo entre um despertar e outro? Como empregá-lo de modo a estar apto para se barbear ou se maquiar de manhã estando em paz comigo mesmo?
Durante a lei marcial, percebi que a política não era realmente importante. De certo modo, é claro, ela define quem somos e o que nos é ou não permitido fazer, mas ela não resolve as questões humanas realmente importantes. Ela não está numa posição capaz de fazer algo para responder qualquer uma de nossas questões essenciais, fundamentais, humanas e humanísticas. Na verdade, não importa se você vive num país comunista ou num próspero país capitalista no que diz respeito a essas questões. Questões do tipo: “Qual é o verdadeiro sentido da vida? Por que levantar de manhã?”. A política não responde isso.
Mesmo quando os meus filmes falavam sobre pessoas envolvidas na política, eu sempre tentei descobrir que tipo de pessoas elas eram. O ambiente político apenas formava o pano de fundo. Até mesmo os documentários de curta-metragem sempre foram sobre pessoas, sobre como elas eram. Eles não eram filmes políticos. A política nunca foi o assunto.
Acredito que realmente existe um ponto de referência absoluto. Embora eu deva dizer que quando eu penso em Deus, frequentemente é mais o Deus do Velho Testamento do que o do Novo. O Deus do Velho Testamento é um Deus autoritário, cruel; um Deus que não perdoa; que determinantemente requer obediência aos princípios por ele estabelecidos. O Deus do Novo Testamento é um velho homem piedoso e de bom coração, com uma barba branca, que apenas perdoa tudo. O Deus do Velho Testamento outorga-nos muita liberdade e responsabilidade, observa como usamos essa liberdade, e então recompensa ou pune, e não há apelo ou perdão. É algo que é duradouro, absoluto, evidente e não relativo. E é assim que deve ser um ponto de referência, especialmente para pessoas como eu: que são fracas, que estão buscando alguma coisa, e que não sabem.
Se alguma coisa está te importunando constantemente por você ter feito algo errado, isso significa que você poderia ter feito a coisa certa. Você possui os critérios, uma hierarquia de valores. Acho que é isso que prova que possuímos um sentimento do que é certo e do que é errado; e que estamos numa posição de ajustar nossos próprios compassos interiores.
Mas, com frequência, mesmo quando sabemos o que é honesto e qual é a coisa certa a ser feita, nós não podemos escolher. Creio que não somos livres. Sempre estamos lutando por algum tipo de liberdade e, em certa medida, essa liberdade, especialmente a liberdade externa, foi atingida — pelo menos no Ocidente, numa escala muito maior do que no Oriente. No Ocidente, você tem a liberdade de comprar um relógio ou um par de calças se você quiser. Você tem a liberdade de escolher onde você vive. Você é livre para escolher as condições nas quais vive. Você pode escolher viver num círculo social em vez de outro, entre um grupo de pessoas em vez de outro. Contudo, acredito que nós não somos senão prisioneiros de nossas próprias paixões, de nossa fisiologia, e certamente de nossa biologia, como éramos há milhares de anos. Prisioneiros da mais complicada, e com frequência relativa, divisão entre o que é melhor e o que é um pouco melhor, e entre o que é ainda um pouquinho melhor e um pouquinho ainda pior.
Sempre estamos tentando encontrar uma saída. Mas somos constantemente aprisionados por nossas paixões e por nossos sentimentos. Você não pode se livrar disso. Não faz diferença nenhuma se você tem um passaporte que te permite entrar em todos os países ou se você está apenas num país e permanece sempre aí. É um ditado tão velho quanto o mundo: a liberdade está dentro de nós. E é verdade.
Texto e imagens reproduzidos do site: personacinema.com.br


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