terça-feira, 1 de outubro de 2013

Nos Anos 70 ou 80, Quando Glauber Rocha Esteve em Aracaju...

Glauber Rocha.

Pra não dizer que não Falei:
Livre adaptação de uma conferência sobre o cinema de Glauber Rocha.

Acho que foi lá pelos idos dos anos 70 ou 80, quando Glauber Rocha esteve em Aracaju, no então Cine Vitória, no centro da cidade, mais ou menos onde é hoje a sede das Lojas Americanas. Casa lotada, o filme que o polêmico cineasta veio lançar em terras de Serigy era Terra em Transe. No elenco, só de Paulos tinham três de peso: o Gracindo, o Autran e o César Peréio. Ainda tinha Darlene Glória, Danuza Leão, Hugo Carvana e José Lewgoy, tudo para abrilhantar a mostra do filme e lotar ainda mais o Cine Vitória.

Clima de entrega do Oscar!

O jornalista e crítico sergipano de cinema, Ivan Valença, era um dos que aguardavam a chegada de Glauber Rocha ao Cine Vitória, para iniciar a exibição do filme. Como o atraso foi ficando pra lá de qualquer tolerância (na época, o Cine Vitória não tinha ar condicionado, só ventiladores laterais!), Ivan Valença resolveu ir até a sala de projeção pra ver se estava tudo ok, para que, quando chegasse o Glauber, o evento começasse imediatamente. Para surpresa do Ivan, segundo seu próprio depoimento em uma conferência anos depois, a agonia era ainda maior na sala de projeção. É que os rolos (latas) dos filmes haviam chegado sem numeração – três ao todo. A dúvida atroz era: qual é o rolo número 1, o número 2 e o número três? Para que o filme fosse mostrado na “sequência lógica”, era preciso saber a ordem das latas, sem o que seria muito difícil “acertar” na projeção. Bem que tentaram colocar um pedacinho do filme de cada lata contra a luz, mas não adiantou muita coisa; o negócio, então, era esperar o Glauber chegar.

Agonias aumentando, a essa altura já além do limite, quando finalmente chega Glauber Rocha! Chega na tranqüilidade de sempre, aquele jeito meio zen, meio “acordei agora” ou “ainda estou pra lá de Bagdá”, e pergunta: Cadê o filme? Não chegou?

Todo mundo sobe correndo as escadas da sala de projeção e, na subida, vai o Ivan explicando:

- Glauber, é o seguinte... o pessoal tá aqui há mais de uma hora esperando, o calor tá insuportável, e a gente estava aflito pra você chegar, para nos dizer qual é a lata ou o rolo de filme que deve ser colocado primeiro na projeção.

- Então o filme chegou? Por que não começaram a projetar ainda? Estavam me esperando? Vocês não me conhecem mesmo, não é? Não é pra me esperar!

- Não, Glauber, não se trata disso. Estávamos esperando por você sim, mas não apenas pela sua presença. É que ninguém sabe qual rolo de filme colocar primeiro, só isso! Como é você o cineasta, estamos aguardando para você nos dizer; aí sim começamos a projeção.
Glauber Rocha, entre um sorriso e uma cara feia, completou:

- Gente, isso não tem a menor importância! Se estão esperando um filme com começo, meio e fim, e com uma história bonitinha para que o mocinho devore a mocinha, ou que o José Lewgoy mate o Paulo Gracindo a golpes de facão, desistam! Eu não faço cinema com enredo marcado, nem cinema por encomenda. Meu cinema é para sentir o que o cinema tem de sensação, de emocional, de som, de imagem sem foco, por aí vai. “Já vi que vocês não entendem porra nenhuma de cinema!”, no arremate típico de Glauber.
Diante da pequena platéia na sala de projeção, olhando para ele ainda sem entender direito, veio a finalização:

- Ah, querem mesmo saber qual é a ordem dos rolos de fita? É a seguinte: peguem a primeira que estiver à mão e coloquem para projetar. Depois uma outra qualquer e, por fim, a última. Se tiverem tempo, invertam a ordem e apresentem o filme de novo. Vocês vão ver que não faz a menor diferença!

Foi difícil entender de primeira. Mas algumas vezes depois de ver o filme em várias ordens, deu pra entender o que é que o cineasta estava mesmo querendo dizer. O cinema de Glauber Rocha não é o de Hollywood, nem é o cinema indiano, nem o francês. É o cinema de Glauber, talvez uma das maneiras mais próximas de entender, no mundo psíquico, o que quer dizer cinema! Não é para ter um enredo bonitinho; é para ter uma sensação direta e profunda.

Mário Celso N. Andrade - UFS/DPS.

Texto reproduzido do blog: caminhosdepesquisa.blogspot
Foto reproduzida do site: marinamara.com.br

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