quinta-feira, 17 de julho de 2014

O Cinema Guarany

Foto reproduzida do blog aracajuantigga.blogspot.com.br


Publicado originalmente no Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.


O Cinema Guarany.
Por Petrônio Gomes. 

Meu velho e querido cinema Guarany! Quais os teus companheiros no tempo, hoje também desaparecidos? Desponta-me a lembrança alguns nomes, imagens desencontradas de um passado que ainda tenho por recente. Por exemplo, a “Casa Yankee”, A Casa de Dalvo Leal, a sorveteria Primavera, o hotel de Rubina, os bilhares do bar Apolo, enfim, uma Aracaju que mora hoje nos corações grisalhos e que os acompanhará até o fim.

Pois bem, a Avenida Pedro Calazans tinha, então, outro nome: era a rua do Rosário, como bem o pode atestar a Igreja que ainda existe, fincada no alto. E a rua do Rosário era, simplesmente, o fim do mundo. Com ela, ia encontrar-se a rua de Estância, confundindo-se, ambas, no mesmo areal.

Mas havia um bonde heroico que ia dar naquelas paragens distantes, e que sofria tanto em seu trajeto quanto os passageiros que lá desembarcavam, principalmente em dias de chuva. Esse bonde era o Circular, o de farol branco, um intrépido e balouçante bondezinho que ousava dar a volta inteira pela cidade, tangido pelo motorzinho do Serviço de Luz e Força (o 'pai' da Energipe) que roncava dia e noite, na Rua de Itabaianinha.

Precisamente no encontro da rua Rosário com a rua Estância, um senhor de faces rosadas e bem humorado, chamado Augusto Luz, resolveu instalar um cinema. Que coragem!
O cinema Guarany foi fundado em 1925, mas durou apenas 3 anos essa fase inicial, por uma simples razão. Chegara o cinema falado, e com ele a despedida de uma era romântica em todos os cinemas do mundo, pois as pequenas orquestras que os cinemas empregavam desapareceram de repente. E é claro que o povo não iria se abalar para a rua de Estância, onde era exibido um filme mudo, quando tinha o Cinema Rio Branco, de Juca Barreto, já falado! Foi a pausa forçada que entrou na vida do Cinema Guarany.

Mas Augusto Luz não desistiu. Tinha no sangue a veia de publicitário. Tanto assim, que seria ele muito mais tarde o escolhido para dar um impulso formidável à Rádio Aperipê, nossa primeira emissora. Augusto Luz fechou as portas do Guarany, mas era uma retirada temporária, um descanso breve de lutador nato.
E no dia 7 de julho de 1937, eis que o Guarany reabre suas portas para o triunfo, com a estreia sensacional de “O jardim de Allah”, protagonizado por Charles Boyer.
Juca Barreto estava com a 'Fox', isto é, com Tyronne Power, Alice Faye, Betty Crable; Anísio, do Cinema Rex, estava com o 'Leão da Metro', ou seja, com Robert Taylor, Clark Gable, James Stewart, Spencer Tracy, Lana Turner, Mickey Rooney; Mas Augusto ficou com a Universal Pictures, a Paramount, com nomes como John Hall, Dorothy Lamour, Bing Crosby, Bob Hope, Buster Crabbe... Precisamente os ídolos da mocidade de então. Pode fracassar quem conta com o oceano prodigioso da juventude?

Dono de rica imaginação, Augusto comprou um Chevrolet 1939 e inaugurou o carro publicitário em Aracaju. Mas não foi fácil, pois a época era difícil em matéria de técnica. Imaginem um carro com uma vitrola, alimentada por bateria, tocando discos de 78 rotações, trafegando pelas ruas de uma cidade que seria das últimas capitais do Brasil a conhecer o asfalto? É claro que o carro do Guarany trazia em seu encalço uma multidão de garotos, entusiasmada, vibrante. E o carro do trio elétrico, atualmente, não provoca o mesmo? Só que os discos repisavam os chorinhos e valsas, mas tudo era novidade.

O carro do Guarany foi criado para divulgar os espetáculos do cinema, naturalmente. Mas aceitava anúncios das lojas, que logo viram nele um excelente meio de publicidade. E lá na Rua Estância, Augusto Luz esfregava as mãos, sorridente, vitorioso.

Outras ideias lhe surgiram. Como por exemplo, a “Matinée para todos”, em certo dia da semana, com o preço do ingresso mais baixo. Mas o ponto forte do Guarany residia nos seriados, os filmes em 12 episódios, o feitiço da meninada. Ora, um filme em 12 capítulos, exibindo dois por domingo, como complemento ao espetáculo principal era uma garantia de bilheteria e quando calhava acontecer um bom filme com o final de um seriado, aí a casa ‘pegava fogo’.

Foi o que aconteceu com “O Furacão”, protagonizado por John Hall e Dorothy Lamour, terminando com o final da série “Flash Gordon no Planeta Mongo”. Poucos sabem que Augusto Luz era um pintor nato. E foi ele mesmo quem pintou os cartazes do Furacão, como tantos outros. No dia da estreia, o Guarany ficou enfeitado de ponta a ponta, com folhas de palmeira, só para lembrar uma ilha dos mares do sul.

Era um domingo, naturalmente. No meio daquela multidão que subia a rua de Estância depois do meio dia, enchendo os sapatos de areia, eu também seguia, dentro da minha roupa domingueira, o pensamento fixo em Flash Gordon. Como poderia ele escapar do foguete em chamas?
Ora, talvez mais quente que o foguete de Flash estava o Cinema Guarany. Muito mais disposição do que o herói louro de Yale tinham os garotos de Aracaju que haviam comprado ingressos para a geral. Ali, os que se levantassem bateriam com a cabeça no teto.

Quando entrei, todos os lugares já estavam ocupados. Faltavam 15 minutos para começar a primeira sessão, isto é, 1 e meia da tarde! Espremi-me de encontro a uma das portas laterais, cruzei os braços e preguei os olhos na tela, já imaginando o desfecho. Um guarda ia e vinha pelo corredor, levando estrepitosas vaias da plateia durante seu amargurado trajeto. Naquele tempo, guarda levava mais vaia do que doido. O baleiro, requisitado por mil assobios, era a única pessoa tranquila.

13 e 30 finalmente. Soa o prefixo do Cinema Guarany. Apagam-se as lâmpadas, seguindo os primeiros acordes da música imortal de Carlos Gomes. Mergulho, outra vez, no meu mundo de fantasia, um mundo criado por Augusto Luz. Como são felizes os garotos de 12 anos! Como se transportam, lépidos, nas asas do sonho! Deixei de ser eu e passei a ser o namorado de Dorothy Lamour, o rapaz intrépido que a salvou do furacão! Levei-a nos braços, escapando entre as palmeiras que o vento furioso derrubava. Depois, inteiramente esquecido dela, assumi a pele do atlético Flash Gordon, olhos fixos no misterioso painel de instrumentos do foguete espacial, enquanto a belíssima Dale Arden, desmaiada, completava o ponto alto do seriado.

Muitos anos depois, fui ao mercadinho onde funcionava o Cinema Guarany. No mesmo lugar da tela, fora instalado um balcão de frios. Por onde passava o baleiro, a quem eu comprava bombons de hortelã, havia agora um caminho entre prateleiras altas. Onde ficava seu Augusto e Dona Yayá, na bilheteria, apenas o som de uma registradora, cobrando, agora, de quem saía. Pagávamos para entrar, entrávamos para sonhar.

Ainda existe, não sei por que motivo, uma atmosfera diferente em torno do local, talvez feita pelo meu coração. Tirei o asfalto da rua, virei as costas para o mercadinho e vi novamente a Rua do Rosário empoeirada, cheia de cadeiras de vime na calçada. Uma casinha aqui, outra ali, mas todas unidas pela algazarra da criançada, pelas cadeiras dos velhos. Um Jardim de Allah em sua quietude de bairro pobre...

Adeus, velho cinema Guarany. Adeus bondoso Augusto Luz, um abraço, Dona Yayá.

Foto e texto reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.

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