Texto publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 04/12/2004
‘Tudo sobre minha mãe’
Em 1999, Pedro Almodóvar rodou seu 13º filme. Com este drama
novo e pessoal, o cineasta fez sucesso em todo o mundo
Por Juan Cueto
A melhor reflexão sobre Tudo sobre minha mãe foi um comentário
espontâneo que ouvi na saída da estreia do filme no festival de Cannes de 1999,
feito por Catherine Deneuve, que deixava a sala do Palais du Festival altamente
emocionada pelo filme que tínhamos acabado de ver: “Pedro tem razão, os homens
não são necessários”. E durante o jantar, cercada de cinéfilos franceses ou
afrancesados, a grande dama do cinema europeu nos confessou que, sem que ela
soubesse muito bem por que, Tudo sobre minha mãe, de Almodóvar, a fez pensar em
Cidade das mulheres, de Fellini, que, num dia do final dos anos 1960, levou o
pai de sua filha Nadia, Marcello Mastroianni, a atravessar como gato escaldado
em direção à grande derrota machista ocorrida no final do século passado.
Creio que Deneuve, que naquela época estava filmando com
Lars von Trier (Dançando no escuro), estava com ciúmes da dedicatória final de
Almodóvar em Tudo sobre minha mãe: “À Bette Davis de A malvada, à Romy
Schneider de l’Important c’est d’aimer e à Gena Rowlands de Noite de estreia,
de Cassavetes”. Deneuve, que tinha sido várias vezes a inspiração de Buñuel,
também desejava a atenção de Pedro Almodóvar. Porque, antes de mais nada, esse
13º filme de Almodóvar é também, ao mesmo tempo, a melhor homenagem que se pode
fazer às grandes atrizes do cinema. Os homens não são necessários, sim, mas as
mulheres, e não apenas as mulheres de La Mancha da infância de Almodóvar, têm
que sobreviver ao machismo representando, fingindo, ocultando e procurando a
bondade de desconhecidos.
Mulheres sós que, por acidentes cotidianos, precisam ser
atrizes magníficas para conseguir ser donas de sua própria solidão, e atrizes
como a Huma do filme, a tremenda Marisa Paredes, que fingem ter companhia para
melhor representar nas telas a ideia fundamental da solidão feminina. Assim se
vai desenhando o projeto de Tudo sobre minha mãe, um melodrama sem complexos
intelectuais que expulsa o homem redundante da cidade das mulheres
almodovarianas e recria um gênero cinematográfico clássico a partir da transgressão
de absolutamente todos os tabus fabricados sobre o amor, o sexo, o casal, a
maternidade e a família burguesa. Desde Douglas Sirk, que há meio século
inventou as cores do melodrama, não tínhamos visto uma reinterpretação do
gênero tão brilhante, atualizada e emocionante quanto esse filme de Almodóvar.
Trata-se de chorar e fazer chorar (aos personagens, às atrizes, ao público),
mas com os materiais vivos do presente e do futuro da condição humana. Alguns
críticos escreveram sobre a pós-modernização do melodrama a propósito desse
filme, aplicando a Almodóvar o estigma pós-moderno da agitação madrilenha. Mas,
ainda que seja o caso de continuar a aplicar prefixos redutores, creio que
aqui, nesta hora e pouco, trata-se exclusivamente do prefixo “trans”: transexualidade,
transplantes, transmissão de sentimentos e de vírus, transtextualidade.
Definitivamente, o melodrama transgressor como transmodernidade.
O filme começa com a morte acidental do filho (Eloy Azorín)
de uma enfermeira de transplantes de órgãos chamada Manuela (Cecilia Roth), por
culpa de um autógrafo não conseguido de uma atriz que ambos admiravam, Huma, na
saída de uma apresentação madrilenha chuvosa de Um bonde chamado desejo, de
Tennessee Williams. Marcela retorna a Barcelona para procurar o pai (Lola, um
travesti interpretado por Toni Miró) e lhe dizer que seu filho morreu. Em
Barcelona, ela encontrará sentido para sua solidão profunda através de uma
série de mulheres com quem vai conviver e entre as quais rapidamente se cria
uma solidariedade espontânea e se concretiza a ideia da bondade de
desconhecidos, tão querida por Almodóvar.
São elas: Agrado (Antonia San Juan), um transexual que
exerce a prostituição e é todo sentimento, risos e silicone; Rosa (Penélope
Cruz), uma freira de família burguesa (Rosa María Sardá e Fernando
Fernán-Gómez) que engravidou de Lola e dela contraiu Aids; Nina, a amante
junkie de Huma (Marisa Paredes), viciada no tabaco, o teatro e o papel de
atriz. Depois de percorrer a cidade das mulheres de Barcelona (às vezes
explicitamente fellinianas, como na magnífica sequência da prostituição a campo
descoberto), Manuela, que chega a viver momentos de grande intensidade
solidária (a festa memorável com Agrado, Rosa e Huma, à base de Freixenet,
confidências e amendoim), acaba aceitando a maternidade do bebê soropositivo
que Rosa, que morre no parto, tem com o travesti Lola, o pai letal do filho que
morreu por culpa do não autógrafo de Huma, desencadeando a aventura.
Almodóvar estica as cordas teatrais do melodrama, que sempre
foi um gênero realista, sim, mas contaminado pelo delírio e que busca os
artifícios extremos, até inverossímeis da imaginação e sobretudo do próprio
gênero cinematográfico. Assim, a partir desses materiais radicalmente femininos
e transmodernos, nos oferece uma história contemporânea e emocional que procura
apenas ser um “oceano de dor”. Foi o próprio Almodóvar quem disse um dia em
1993 na saída de um filme de John Cassavetes com Gena Rowlands: “Ontem vi Noite
de estreia e o recebi como a confidência de que participo plenamente de uma
emoção ativa. (...) Foi uma das emoções mais intensas de minha vida, e vou
sentir orgulho se algum dia puder fazer um filme assim. Ele tem todos os
elementos que eu gosto no cinema: uma atriz, uma obra teatral, a relação com o
diretor, o amante que é um ator e um incomensurável oceano de dor.”
Ele o conseguiu e até o superou. Não esqueçamos que o início
de Tudo sobre minha mãe, com o acidente do filho de Manuela, debaixo da chuva,
na busca de um autógrafo na saída do teatro, é uma recriação expressa daquela
sequência inicial de Noite de estreia, em que a jovem fã de Myrtle/Huma (Gena
Rowlands/Marisa Paredes) também tem 17 anos e esperava aquela manhã como um dos
melhores dias de sua vida.
Mankiewicz, Cassavetes, Tennesse Williams, Fellini e o
delírio de l’Important c’est d’aimer. Para que não reste a menor dúvida quanto
às intenções melodramáticas e transgressoras de Almodóvar na hora de desatar
esse imenso oceano de dor trans em que o manchego corrige aquele grande erro da
Bíblia assinalado por Deneuve na saída da estreia do filme em Cannes. Deus não
criou primeiro o homem, mas Eva.
PERDOAR TUDO
Feito em 1999, Tudo sobre minha mãe é estrelado por Cecilia
Roth, Marisa Paredes, Candela Peña, Antonia San Juan, Penélope Cruz, Rosa María
Sardà, Fernando Fernán-Gómez, Toni Cantó e Eloy Azorín nos papéis principais.
Roteiro e direção: Pedro Almodóvar. Roteiro: Pedro Almodóvar. Produtor
executivo: Agustín Almodóvar. Produtor associado: Michel Ruben. Diretora de
produção: Esther García. Música original: Alberto Iglesias. Fotografia: Affonso
Beato. Som: Manuel Rejas. Montagem: José Salcedo.
Guillermo Cabrera Infante escreveu sobre o filme no EL PAÍS:
"Tudo sobre minha mãe poderia ter como divisa uma frase famosa de uma
mulher, Madame De Stael, que disse: ‘Tudo compreender é tudo perdoar’. Essa é a
filosofia de Pedro Almodóvar.”
Texto reproduzido do site: brasil.elpais.com
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