segunda-feira, 18 de maio de 2020

Como se atreveram a rodar estes 12 filmes...


Quando hoje alguém se escandaliza por algo que viu em um filme, convém lembrá-lo que há 45 anos Pasolini já havia levado ao máximo o que podia ser visto em uma tela de cinema em ‘Salò ou os 120 Dias de Sodoma’.

Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 17 de maio de 2020 

Como se atreveram a rodar estes 12 filmes que quebraram todas as regras nos anos 30?

Abordam tabus sexuais, escândalos políticos, imagens explícitas e linguagem inaceitável. E também são obras-primas. Toda vez que você ficar escandalizado diante da tela, não se sinta mal: estas doze obras fazem isso desde a década de 1930

Por Ianko López 

Sexo, drogas, violência, blasfêmia, sexo outra vez. Estes são os componentes básicos de qualquer escândalo, como acontece desde que existem registros. Algo que também caracteriza o escândalo é que sempre consegue se cercar de um halo de novidade, como se cada vez fosse a primeira e nada tivesse avançado desde a anterior. Mas quem tem memória sabe que quase tudo já foi dito e que cada novo escândalo nada mais é do que uma atualização dos precedentes. Se olharmos para a história do cinema, por exemplo, veremos que existe uma longa tradição de representar coisas que ofenderam o público, e diante de muitas delas hoje continuamos exclamando: “Mas como fizeram isso!”. Selecionamos alguns casos representativos para ilustrar essa ideia.

Uma das controvertidas cenas de ‘A Idade do Ouro’

A Idade do Ouro (1930), de Luis Buñuel

Quando os riquíssimos e elegantes viscondes de Noailles convidaram seus amigos para lhes mostrar este filme que tinham financiado e demonstrar o quanto eram modernos, o resultado foi que ficaram sem amigos. Também sem sua assinatura no Jockey Clube, e por milagre o Papa não os excomungou. Depois tudo piorou porque na estreia oficial houve atos de vandalismo da extrema direita e o filme foi proibido por mais de cinquenta anos, até —atenção— 1981. E o que acontece ali que despertou tanta confusão? De tudo: blasfêmia, sexo em locais públicos, sadismo, maus-tratos a deficientes, infanticídio e outras modalidades de assassinato, e também vacas passeando em festas da alta sociedade. O argumento é difícil de descrever, mas inclui uma série de episódios em que as instituições da sociedade burguesa são dinamitadas pela força do amor e do desejo. Uma das poucas linhas de diálogo do roteiro escrito por Buñuel e Dalí dá uma ideia bastante aproximada da coisa: “Que felicidade ter assassinado nossos filhos!”. Por tudo isso o filme é uma obra-prima absoluta que antecipa e resume o melhor da filmografia posterior de Buñuel.

Hedy Lamarr em ‘Êxtase’.

Êxtase (1933), de Gustav Machatý

Certamente ninguém se lembraria desse drama romântico tcheco hoje se não fosse pelo detalhe de que foi o primeiro filme (não pornográfico) a mostrar um orgasmo feminino. A protagonista era Hedy Kiesler, uma belíssima atriz austríaca de dezoito anos à qual ainda faltavam algumas reinvenções para se tornar Hedy Lamarr, deusa de Hollywood e criadora da tecnologia que antecipou o Wi-Fi. Hedy aparecia nua no filme e dizia que ninguém a havia avisado quando assinou o contrato. Mas foi a cena do orgasmo a que mais alvoroço provocou, apesar do fato de que, quando isso acontece com ela, só se vê o rosto. Parece que, para alcançar o efeito desejado, o diretor fez com que ela fosse espetada nas nádegas com um alfinete, um método que, logicamente, hoje seria considerado inadmissível e renderia ao diretor uma queixa como um caminhão de bombeiros. De volta àqueles dias, todas as coisas previsíveis aconteceram: o Vaticano vaticaneou, o filme não foi exibido na Itália, na Alemanha só passou com cortes e nos Estados Unidos foi condenado pela Legião Católica pela Decência, o que implicou na proibição de os fiéis o assistirem sob a ameaça de incorrer em pecado mortal. Obviamente, isso serviu apenas para aumentar o sucesso.

Frank Sinatra em ‘O Homem do Braço de Ouro’

O Homem do Braço de Ouro (1955), de Otto Preminger

A luta de um indivíduo para superar seu vício em heroína continua nos incomodando hoje, mas em 1955 era quase infilmável. Pois essa é a história que conta um filme em que o viciado em heroína é interpretado por Frank Sinatra e sua sofrida companheira por Kim Novak, em uma ousada decisão de elenco que foi apenas um dos muitos riscos que os produtores assumiram. Para compensar, o nome da droga não é pronunciado em momento algum, embora seja evidente até para o espectador mais desinformado. Chama especialmente atenção a longa cena em que Sinatra atravessa a síndrome de abstinência com um realismo que era insuportável para muitos na época e ainda hoje provoca arrepios. Como consequência disto, a MPAA, a associação que representava os grandes estúdios de Hollywood, teve de revisar seus próprios códigos internos e abrir a torneira para questões relacionadas a drogas e prostituição em suas produções posteriores.

Dirk Bogarde em ‘Vítima’.

Vítima (1961), de Basil Dearden

Em 1961, as relações homossexuais eram proibidas no Reino Unido. E quem desrespeitasse a proibição tinha de se sujeitar à punição: é bem conhecido o caso do cientista Alan Turing, que sofreu castração química por fazer sexo com outros homens e que se suicidou pouco depois. Portanto, o fato de ter sido lançado um filme em que a homossexualidade do protagonista não era vista como uma doença ou um perigo social era um gesto quase revolucionário. Vítima conta as tribulações de Melvin Farr, um advogado casado que atravessa um inferno quando uma rede de extorsão de homens homossexuais faz dele uma de suas vítimas. O filme de Dearden descrevia de maneira muito precisa o clima de medo e vergonha e o perigo a que um gay britânico estava exposto na época. Quando o grafite “FARR IS QUEER” (“Farr é bicha”) aparece na tela, a imagem provocava um efeito catártico no público que talvez hoje seja difícil de entender. Felizmente.

Bibi Andersson e Liv Ullmann em 'Persona'.

Persona (1966), de Ingmar Bergman

O filme que foi um ponto de inflexão na carreira de Bergman, mas também na história do cinema. O argumento é simples: a renomada atriz Elisabeth Vogler perdeu a fala como consequência de uma crise nervosa e está confinada em sua casa de campo com uma jovem e ingênua enfermeira chamada Alma. As duas mulheres iniciarão um processo de mútua transferência de personalidades repleto de ecos vampíricos e psicanalíticos.

Tudo no filme é ousadíssimo, das decisões formais até o desenvolvimento da trama. Mas há uma cena que na época deve ter incomodado bastante e que hoje ainda pode levantar uma sobrancelha ou outra. Depois de tomar algumas doses, Alma confessa a Elisabeth que em um verão traiu o namorado fazendo uma orgia ao ar livre com outra garota e dois rapazes, e depois de ter engravidado, abortou. A crueza de sua linguagem (palavras como “ejacular” ou “aborto” simplesmente não eram pronunciadas no cinema comercial na época) criava um trauma no espectador, que dessa maneira estabelecia uma empata com o próprio trauma da narradora. É claro que na primeira sequência do filme Bergman já havia inserido um plano subliminar de um pênis em ereção, outra coisa para a qual as pessoas que então pagavam um ingresso de cinema não pornográfico não estavam preparadas.

Lea Massari e Benoît Ferreux em 'Sopro no coração'.

Sopro no Coração (1971), de Louis Malle

O incesto é um dos grandes tabus que ainda restam. Louis Malle dizia que quando começou a escrever este filme autobiográfico sua intenção não era que a mãe e o filho adolescente acabassem se deitando juntos, mas tudo levava a isso, e é claro que teve de sucumbir ao ditado de sua própria narração. Ah, o fantástico clichê dos personagens que têm vida própria, o quão batido pode chegar a ser. E principalmente o quão ilustrativo é aqui sobre certas fantasias pouco confessáveis do homem heterossexual. Talvez o aspecto mais marcante deste caso não seja a relação mãe-filho (que também foi pintada, com tons mais sombrios, em La Luna de Bertolucci e Minha Mãe de Christophe Honoré), mas a leveza com que é retratada. A mãe, cheia de sabedoria, apesar de sua juventude —e, principalmente, apesar de ter acabado de cometer o que pode ser considerada uma grave imprudência—, tenta aliviar a consciência do filho dizendo a ele que não deve ter remorso pelo encontro sexual que acabam de compartilhar. Ele não deixa que o conselho entre por um ouvido e saia pelo outro, e faz o que se espera dele: se deita com outra mulher, porque a mancha de uma amora se remove com outra verde.

Pôster comemorativo do 25º aniversário de ‘Pink Flamingos’,
que destaca como a crítica recebeu o filme.

Pink Flamingos (1972), de John Waters

A dupla John Waters (diretor) e Divine (intérprete) proporcionou alguns dos momentos mais cintilantes, descarados e francamente grosseiros do cinema norte-americano (e existe concorrência). A própria Divine, personagem público do ator e cantor Harris Glenn Milstead (Baltimore, 1945-Los Angeles, 1988), era uma provocação ambulante. Com seu excesso de peso indisfarçável e sua indumentária com uma peruca assentada sobre um crânio calvo, maquiagem de palhaça e voz em falsete, foi batizada de “a drag queen do século” pela revista People. E para honrar semelhante título de nobreza, demonstrou a coragem de mil cavaleiros medievais. Dos nove filmes que interpretou sob as ordens (é uma figura de linguagem) de seu descobridor entre 1966 e 1988, o ponto culminante é possivelmente Pink Flamingos.

Divine encarna uma mulher considerada oficialmente a pessoa mais imunda do mundo, causando inveja em vizinhos que decidem competir com ela em depravação. Começa então uma escalada de consequências imprevisíveis. Exibicionismo, venda de heroína a menores, maus-tratos a animais e vários atos sexuais não muito dentro das normas vão nos preparando para o grande final, no qual, de maneira clara, Divine pega um punhado de excrementos de cachorro recém-expelidos e os leva à boca entre sorrisos e náuseas. Sua própria mãe, que esteve na rodagem do filme em algum momento, disse ter ficado surpresa pelo filho ter suportado as “lamentáveis condições” do set, dados seus gostos caros em roupas, móveis e comida. É provável que depois de assistir ao filme sua estranheza tenha sido ainda maior.

Cena de ‘Salò ou os 120 Dias de Sodoma’.

Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), de Pier Paolo Pasolini

Pasolini adaptou um romance do marquês de Sade mudando completamente seu contexto histórico e político. O que na literatura era o século XVIII visto por um libertino, aqui é o fascismo italiano visto por um comunista desesperançado. Nos tempos da república de Mussolini, um duque, um bispo, um político e um banqueiro sequestram um grupo de jovens e, com a cumplicidade de quatro prostitutas, os submetem a humilhações que incluem impensáveis atos de sexo e violência até sua total aniquilação. Essa alegoria sobre a sociedade capitalista e os modos ocultos de fascismo que a sustentam é, apesar do horror que mostra, atravessada por uma poesia trágica e doída. Mas quando ainda hoje alguém se escandaliza com algo que viu em um filme, convém lembrá-lo que há 45 anos Pasolini já havia levado ao máximo o que podia ser mostrado em uma tela de cinema.

Imagem promocional de ‘O Império dos Sentidos’.

O Império dos Sentidos (1976), de Nagisha Oshima

Nagisha Oshima se inspirou em uma história real para escrever este roteiro sobre um homem e uma mulher que vivem uma história sexual tão intensa e obsessiva que, a certa altura, a única saída que encontram passa pela mutilação e o assassinato. Quando foi lançado, teve que enfrentar a ação da censura, uma vez que inclui várias cenas de sexo explícito e não simulado entre os dois protagonistas. A cena em que ele introduz um ovo na vagina dela para depois comê-lo dificultou a distribuição, mas talvez o mais perturbador seja o final. Aí é mostrado de maneira frontal o resultado do ato de violência cometido por um dos amantes no corpo do outro, e não é raro que quem o contemple tenha que desviar o olhar. O filme é, certamente, uma das mais belas e lúcidas reflexões sobre as interseções entre o amor e a morte de toda a história do cinema.

Pôster de 'A pele'.

A Pele (1981), de Liliana Cavani

Nos estertores da Segunda Guerra Mundial, Nápoles foi tomada pelas tropas norte-americanas e sua população está empobrecida e disposta a fazer qualquer coisa para sobreviver. Esse qualquer coisa você pode imaginar, mas, em todo caso, Liliana Cavani o mostra em detalhes através dos olhos (cheios de cinismo) do escritor e diplomata Curzio Malaparte. Cavani já havia dirigido filmes escândalo como O Porteiro da Noite (nazismo + sadomasoquismo) e Além do Bem e do Mal (ou Nietzsche, Paul Rée, Lou-Andreas Salomé), mas aqui parece seguir uma estratégia deliberada de ofender e enojar o espectador encadeando as cenas de depravação e sugerindo que o ser humano merece a extinção. Talvez fosse a única maneira de expressar essa ideia. Apenas talvez.

Mas o pior chega ao final: durante um desfile militar com tanques, os soldados norte-americanos jogam caramelos para os italianos que foram aplaudi-los. Um homem com uma criança nos braços se pede em meio à festa, tropeça e seu corpo é esmagado pelas rodas do veículo blindado. Cavani não gosta nem um pouco de elipses, então nos oferece uma minuciosa demonstração visual do efeito de trocentas toneladas de aço sobre um corpo humano. O longo plano do resultado é tão insuportável que permanece no subconsciente durante dias.

Enrique San Francisco e José Luis Manzano 
em uma cena de ‘El Pico’

El Pico (1983), de Eloy de la Iglesia

A face menos amigável de nossos loucos anos oitenta era a de uma grave crise sociossanitária (a explosão descontrolada do consumo de heroína) e uma ameaça terrorista (os anos de chumbo do ETA). Ambas as realidades pairam sobre este filme ou intervêm decisivamente em sua trama. É uma história de amizade e queda de dois jovens de diferentes origens sociais e políticas em uma Bilbao que não existe mais, pois em algum momento foi substituída pelo gigantesco holograma irradiado pelo efeito Guggenheim. Com filmes como Los Placeres Ocultos, La Creatura e El Diputado, Eloy de la Iglesia já havia tratado assuntos difíceis para a sociedade da época, mas aqui o coquetel entre juventude, heroína, Guarda Civil, esquerda nacionalista e brutalidade policial era ainda mais forte do que esperado. É claro, há cenas de sexo e seringas hipodérmicas injetando sua carga letal em primeiro plano, no entanto o potencial ofensivo do filme não se limita a isso, mas se expande como uma mancha de óleo na superfície de sua ambiguidade moral e política.

Cristina Sánchez Pascual e Mary Carrillo 
em ‘Maus Hábitos’.

Maus Hábitos (1983), de Pedro Almodóvar

Quem diria à católica Espanha que em 1983 um filme nacional contaria a história de um convento de freiras dirigido por uma madre superiora viciada em heroína, lésbica, fã de bolero e de extorquir marquesas. Quando se fala da suposta indiferença política de Almodóvar não é demais lembrar que, naquela época, conceber um filme como este era mais do que uma simples provocação e adquiria a consistência de um manifesto político: como tal, o filme apareceu na recente exposição do Centro de Arte Reina Sofía Poéticas da Democracia – Imagens e Contraimagens da Transição. A cena em que a superiora (Julieta Serrano) e sua protegida (Cristina Sánchez Pascual) se injetam droga em uma sala cheia de imagens religiosas conserva, ou assim nos parece, toda sua carga explosiva.

Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com

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