Donald Sutherland e Julie Christie mostram a intimidade
de
um casal no filme ‘Inverno de Sangue em Veneza’.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
22 de agosto de 2020
Sexo real ou arte cinematográfica? A verdade sobre a cena
erótica mais controvertida da história do cinema
A lenda que cerca o cultuado clássico ‘Inverno de Sangue em
Veneza’ aponta que Julie Christie e Donald Sutherland, bons amigos e
companheiros de baladas, deixaram-se levar pela situação e acabaram fazendo
sexo na frente das câmeras
Por Miquel Echarri
A versão oficial não mudou em 47 anos: a cena de sexo de
Inverno de Sangue em Veneza (Don’t Look Now, 1973), uma das mais expressivas,
convincentes e controvertidas da história do cinema, é pura simulação. Arte
cinematográfica de alto quilate, capaz de traduzir para a tela a vertigem, a
paixão e a desordem do sexo real. Mas não sexo real. Não “pornografia sublimada
e elevada ao cubo”, como insistiu em descrevê-la Claire Fagan em um artigo
recente na revista Vinyl Writers.
No entanto, a teimosa lenda que persegue o filme desde sua
estreia aponta para outra direção. Uma atriz e um ator que tinham trabalhado
juntos em várias ocasiões, que eram bons amigos e companheiros habituais de
baladas nos libertinos, narcóticos e promíscuos anos setenta, rodam uma cena
íntima de uma intensidade praticamente sem precedentes sob o comando de um diretor
inovador (Nicolas Roeg), deixam-se levar pela situação e acabam fazendo sexo na
frente das câmeras.
Ele comete inclusive a indiscrição de admitir isso em uma
entrevista, achando que essa confidência atrevida pode ser uma ótima promoção
para o filme, que é magnífico, mas também modesta, e talvez precise de um
empurrão. No dia da estreia, assustados com a repercussão de sua travessura,
atriz e ator, com a cumplicidade reticente de seu diretor, chegam à conclusão
de que é preferível negar os fatos, não admitir nunca mais que há algo real,
genuíno e “pornográfico” nesses quatro minutos e meio de sexo eletrizante
embalado a vácuo.
Dois amigos nus
A cena foi rodada em um hotel de Veneza, em uma tarde de
final de janeiro de 1973. No quarto do Bauer Grunwald (hoje hotel Bauer
Palazzo, às margens do Grande Canal) se reuniram quatro pessoas. Os dois
atores, Julie Christie (Chabua, Índia, 1940) e Donald Sutherland (Saint John,
Canadá, 1935), o diretor, Roeg (Londres, Reino Unido, 1928), e o diretor de
fotografia, Tony Richmond. Como explicou Sutherland em uma entrevista à Vulture
em março de 2018, “foi filmada com duas câmeras Arriflex sem som, em tomadas
muito curtas, de uns 15 ou 20 segundos, com Nic e Tony muito próximos de nossos
corpos nus”.
Entre uma tomada e outra, Roeg corrigia a posição dos atores
e lhes dava instruções básicas: “Julie, aconchegue-se nas costas de Donald e
morda delicadamente o pescoço dele. Donald, incline-se devagar em direção a ela
e passe o braço em volta do pescoço [de Chrtistie]”. O diretor tinha garantido
aos atores que aquilo seria rápido e indolor, que as tomadas ficariam prontas
em menos de dez minutos. Mas Sutherland lembra que eles ficaram “cerca de meia
hora, talvez um pouco mais” nus naquela cama “fazendo contorções estranhas”, um
pouco constrangidos, mas muito concentrados, em um clima de tensa calma.
No relato tardio do ator, fica claro que não foi uma
experiência íntima, mas também não foi totalmente incômoda. Perto do final
dessa sessão vespertina, Christie começou a rir, Roeg parou de dar instruções e
os atores começaram a se deixar levar pela inércia do momento. A rígida
coreografia de corpos nus se mexendo sob ordens quase marciais deu lugar a algo
muito mais espontâneo, intuitivo e dinâmico, muito mais parecido com o
verdadeiro sexo.
A maioria das tomadas incluídas no filme é desses últimos
minutos, quando surgiram o humor, o entusiasmo e a magia. Incluído o
cunnilingus (não explícito, mas quase), iniciativa de Sutherland. Era a
primeira vez que essa prática tão frequente na intimidade de milhões de casais
aparecia na telona em um filme não pornográfico.
Uma ideia de última hora
A cena não estava nem prevista no roteiro. Inverno de Sangue
em Veneza pretendia ser um filme de gênero, um terror psicológico em uma Veneza
sombria e enevoada, e não precisava de interlúdios eróticos. Para Roeg, um
veterano diretor de fotografia que tinha estreado na direção três anos antes
com Performance, a essência do filme estava em mostrar como uma tragédia
inconcebível, a morte acidental de sua pequena filha, acabava destruindo a
conexão física e emocional de um casal. Ele já tinha rodado cenas de
desentendimentos e longas discussões entre Christie e Sutherland, mas sentia
que em seu retrato de amor e intimidade gradualmente reduzidos a escombros pelo
infortúnio faltava precisamente essa dose de amor e intimidade.
Assim, concebeu essa breve cena: marido e mulher em um
quarto de hotel, aproximando-se um do outro sem aviso prévio e cedendo a um
repentino impulso erótico depois de semanas, talvez meses sem se tocar. Roeg
propôs a cena primeiro a Julie Christie e ela, uma atriz já consagrada em
Hollywood, mas formada no compromisso com a realidade do free cinema britânico
do início dos anos sessenta, não teve nenhum problema. Quem se sentiu incômodo
com a proposta foi o canadense Sutherland, um ator com fama de iconoclasta e
subversivo, intimamente ligado à contracultura da nova Hollywood graças a
filmes como M*A*S*H (Robert Altman, 1970) e Klute (Alan J. Pakula, 1971), mas
que ainda hoje se define como “muito tímido e muito pouco acostumado a tirar a
roupa na frente de outras pessoas”. No entanto, aceitou, convencido, como
sempre esteve, de que “o mínimo que se pode exigir de um verdadeiro ator é que
se comprometa com o filme que está fazendo”.
Roeg lhes garantiu que, da forma como ele a concebeu, aquela
cena de sexo seria diferente de todas as outras. E foi mesmo. Praticamente pela
primeira vez, embora fosse em uma produção ítalo-britânica de médio orçamento,
era exibida a intimidade de duas estrelas de Hollywood sem recorrer a filtros,
elipses recatadas, dublês de corpo ou lençóis de cetim traçando pudicas
fronteiras na superfície da pele.
A intimidade vista de outra maneira
Aquela cena era uma sinfonia de lubricidade crua e entusiasmada.
De lábios inchados, rubor nas bochechas, mordiscos nos braços e panturrilhas,
lambidas nas axilas e na sola do pé. Vista hoje, surpreende por sua
naturalidade e faz com que pensemos, como escreveu Nick Schager em um artigo na
Esquire, em “como o cinema nos mostra frequentemente a primeira vez de duas
pessoas que acabam de se conhecer e como é estranho observar a intimidade de um
casal com suas rotinas conjugais, suas pequenas perversões consensuais e
compartilhadas, seu conhecimento do corpo um do outro e dos estímulos que
ativam seu desejo”. Ao mesmo tempo, Roeg nos lembra como pode ser moderno e
sugestivo fazer cinema com o corpo, em sintonia com seus ritmos, com seus
gestos.
Já na mesa de montagem, o diretor londrino teve uma nova
intuição que acabou de transformar aquela cena em algo excepcional. Decidiu
alternar sequências de Laura (Christie) e John (Sutherland) fazendo amor com
breves inserções do casal se vestindo para jantar após sua improvisada sessão
de sexo. Segundo o próprio Roeg, foi principalmente uma tentativa de reduzir a
crueza da cena para que o filme pudesse passar pelo corte da censura no Reino
Unido. Mas foi também, nas palavras de Schager, “um enorme acerto criativo,
porque integra presente e futuro imediato, permitindo que sejamos testemunhas,
de maneira simultânea, da intensidade da relação sexual, um prazer efêmero, e
da placidez pós-sexo, do momento de relaxamento em que os amantes terminam de
processar e, portanto, desfrutam novamente o que fizeram”.
Os censores britânicos aprovaram a cena. Eles a consideraram
muito digna, “realizada com bom gosto e perfeitamente justificada do ponto de
vista narrativo”, demonstrando que nem todos que exercem a censura são caretas
de olhar turvo. Nos Estados Unidos, Roeg só precisou eliminar nove fotogramas
(nos quais se intuía o pênis de Sutherland e sua língua entre os quadris de
Christie) para que o filme fosse qualificado como “R” (que pode ser visto por
adolescentes acompanhados por pais ou responsáveis) em vez de “X” (proibido
para menores). Nas palavras do diretor: “Examinaram [a cena] com lupa e não
encontraram nada reprovável. É claro que foi montada de uma forma que fica
muito mais explícita na mente do espectador do que na tela. Se você vê que os
atores estão iniciando um determinado movimento, em seguida é inserido um plano
muito breve de outra coisa e aí você volta para eles e os corpos mudaram de
posição, é óbvio que sua mente preenche os espaços vazios. Mas o fato é que eu
não mostrei nada que os critérios da época proibissem, por isso não puderam me
obrigar a suprimir a cena”.
Uma pequena indiscrição
A verdadeira polêmica veio meses depois, coincidindo com a
estreia do filme tanto no Reino Unido, em 16 de outubro de 1973, como nos
Estados Unidos, poucas semanas depois. Aparentemente, em uma entrevista com o
crítico de cinema do tabloide britânico Daily Mail, Sutherland chegou a dizer
off the record que, se a cena parecia real, era “por razões óbvias”. A frase
não foi publicada na entrevista, mas citada em uma coluna de rumores e fofocas
na qual se afirmava também (aparentemente sem fundamento) que Warren Beatty,
namorado de Julie Christie na época, tinha viajado para Londres para convencer
o Nicolas Roeg a cortar a cena. A própria Christie declararia anos depois que
aquela era uma lenda urbana “mal-intencionada e ridícula”: “Warren era meu
namorado, não meu agente nem meu tutor legal. Não era ninguém que pudesse tomar
decisões sobre minha carreira nem fazer exigências desse tipo”.
O fato é que a (suposta) indiscrição de Donald Sutherland
teve muito mais peso durante anos do que os contínuos desmentidos de Christie,
de Roeg e do próprio Sutherland. Pois é, na dúvida entre a lenda e a realidade,
publique a lenda. Inúmeros artigos e até ensaios sobre cinema e sexualidade
optaram por publicar a lenda. Alguns deles espalharam a tese de que Inverno de
Sangue em Veneza foi uma espécie de elo perdido na conquista de um novo olhar
erótico cinematográfico, o grande precursor de filmes muito posteriores que
mostraram sexo real, não simulado, sem por isso incorrer abertamente na
pornografia, como Os Idiotas (Lars von Trier, 1998), Romance (Catherine
Breillat, 1999), Intimidade (Patrice Chéreau, 2001), 9 Canções (Michael
Winterbottom, 2004) e All About Anna (Jessica Nilsson, 2005).
O próprio Winterbottom contribuiu involuntariamente para a
confusão ao afirmar que o filme de Roeg é a prova mais clara de que se pode
“filmar sexo real entre seres humanos sem cair na estereotipada e degradante
estética pornográfica, tudo é questão de como iluminar, como escolher os
ângulos de câmera e como editar depois o resultado”. Uma frase impecável, se
não fosse porque Roeg não filmou, aparentemente, sexo real entre seres humanos,
apenas uma imitação cinematográfica muito boa.
O coadjuvante linguarudo
Os ecos da velha polêmica já tinham praticamente se
dissipado quando, em 2011, um coadjuvante surgiu em cena reivindicando seus 15
minutos de fama. O jornalista Peter Bart, que tinha sido produtor executivo da
Paramount em 1973, publicou Infamous Players: A Tale of Movies, the Mob (and
Sex), um livro de memórias de seus anos dedicados ao cinema, com clara vocação
de best seller polêmico. Nele, afirmou que esteve presente durante a filmagem
da cena e assistiu, com crescente espanto e incômodo, “ao vaivém” do pênis de
Sutherland muito perto da vagina de Christie. Em determinado momento, sempre
segundo a versão de Bart, “o ângulo em que os dois corpos estavam não deixava
dúvidas: estavam transando diante das câmeras”.
Bart afirma que até sugeriu a Roeg que parasse de filmar, já
que Christie e Sutherland precisavam de “intimidade”, porque já não estavam
atuando, e o diretor lhe respondeu: “Espere um pouco, quero ter certeza de que
tenho todo o material necessário. Depois os deixamos em paz”. O produtor
afirmou também que foi ele quem recebeu, poucas semanas depois, um telefonema
de Warren Beatty em que o ator criticava o “jogo sujo que fizeram com Julie” e
se oferecia para ajudar Roeg a remontar de uma maneira “aceitável” a cena.
“Vocês querem destruir a carreira dela?”, perguntou Beatty, nas palavras do
ex-produtor. “Ela confiou em Nic, colocou-se nas mãos dele, e é assim que vocês
pagam?”, acrescentou o ator, segundo Bart.
O relato de Bart foi desmentido categoricamente por
Sutherland. O ator garantiu, em um breve comunicado, que “apenas quatro pessoas
estavam naquele quarto, e estamos falando de uma época em que não havia
monitores de vídeo, por isso ninguém mais pôde ver o material enquanto
estávamos filmando”. Peter Katz, produtor do filme, endossou a versão de
Sutherland, afirmando que “a cena de sexo é simulada e o que Bart diz é produto
de sua imaginação, sua falta de ética ou sua má memória”. Até Julie Christie,
que há anos tenta ficar à margem dessa polêmica tão incômoda e recorrente,
declarou que, se a cena “parecer tão real, é porque tanto Nic como Donald e eu
fizemos um ótimo trabalho”.
Como o zumbido de uma máquina de costura
Na entrevista com a Vulture, Sutherland fez um grande
esforço para resolver o assunto de uma vez por todas. Para mostrar até que
ponto suas lembranças da filmagem são precisas, o ator canadense descreveu até
“o zumbido das duas câmeras Arriflex, que soam como uma máquina de costura
Singer cheia de anfetaminas”, os cortes contínuos e as breves e muito precisas
instruções de Roeg. Naquelas circunstâncias, segundo Sutherland, excitar-se a
ponto de fazer sexo de verdade teria sido impossível: “Eu estava muito
constrangido. Julie, por razões muito concretas que não vêm ao caso, também
estava muito constrangida. Estávamos lá, naquela cama, tímidos, nus e na
expectativa, como Adão e Eva esperando que alguém nos oferecesse uma maçã”.
Em 2013, como preparação para a filmagem da primeira
temporada de Masters of Sex, a equipe da série, produtores, técnicos e atores,
buscou inspiração vendo e comentando uma seleção de 50 cenas de sexo de filmes
dos últimos 40 anos. A melhor, na opinião de quase todos eles, era a mais
antiga. A de Inverno de Sangue em Veneza. A roteirista e produtora Michelle
Ashford explica que eles ficaram entusiasmados vendo como a cena “acaba sendo
erótica sem nem mesmo pretender isso, como a sensualidade está na expressão de
seus rostos, no cabelo despenteado e nos lábios ligeiramente inchados de
Christie, no desleixo com que Sutherland coloca a gravata logo depois de fazer amor”.
John Madden, o diretor do capítulo piloto da série, compartilhou com a equipe
que todas as cenas eróticas que ele rodou em sua carreira “foram inspiradas
diretamente na de Inverno de Sangue em Veneza, nessa difícil naturalidade que a
aproxima tanto da experiência do sexo real”.
Mas nem só de sexo vive Inverno de Sangue em Veneza. Como
lembra Nick Schager, “o filme tem virtudes que vão muito além desses quatro
minutos e meio de êxtase sexual”. Mostra uma Veneza insólita, cheia de lugares
decrépitos, morte, desolação e decadência, e a coloca a serviço de uma intriga
sobrenatural rica e ambígua. Tem um clima impecável, imagens de uma pureza
quase hipnótica, um roteiro com muitos mais detalhes e reviravoltas que o conto
de Daphne du Maurier no qual se baseia, e um desenlace que deixa os
espectadores perplexos, convidando-os a rebobinar o filme em sua cabeça,
fotograma por fotograma, em busca de seus segredos ocultos. Tem tantas e tão
notáveis virtudes que um grupo de especialistas reunido pela revista Time Out o
escolheu em 2011 como o melhor filme britânico de todos os tempos, superando
até mesmo obras-primas que geram tanto consenso como O 3º Homem, Barry Lyndon,
Kes, 39 Degraus, Os Sapatinhos Vermelhos, Se..., A Solidão do Corredor de Fundo
e Desencanto.
A grande pérola da filmografia de Roeg é, como diz
Sutherland, “um filme do qual se orgulhar muito”. Com ou sem a fascinante
controvérsia que sempre cercou a mais célebre de suas cenas.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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