segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Artigo: A busca pelo pai é tema central no clássico ‘Juventude Transviada’

Jim exige que o pai enfrente a mãe, imponha-se 
como homem e lhe sirva como modelo
de masculinidade. (Imagem: Reprodução).

Publicado originalmente no site A ESCOTILHA, em 4 de abril de 2019

A busca pelo pai é tema central no clássico ‘Juventude Transviada’

Por Paulo Camargo (Central de Cinema)

Em meados da década de 1950, surge em Hollywood um distinto subgênero dentro da tradição do melodrama. Graças ao talento de cineastas como Douglas Sirk, Vincente Minnelli, Nicholas Ray e Elia Kazan, o chamado melodrama doméstico, cuja narrativa tem como foco a família nuclear, se utilizou das estruturas dramáticas peculiares a essa modalidade cinematográfica para discutir questões de gênero, classe e raça na sociedade norte-americana.

À medida na qual a família assume o papel de foco central de dezenas de longas metragens produzidos nos anos 50, um grande número de enredos foram desenvolvidos em torno de um mesmo tema: há uma crise da autoridade patriarcal e de masculinidade, materializada em tumultuados relacionamentos entre pais e filhos. A popularização da psicanálise, o clima socioeconômico pós-Segunda Guerra Mundial e a paranoia cultural resultante da Guerra Fria podem ser citados como possíveis razões por trás do crescente interesse em questionar a vitalidade do sistema patriarcal e diferentes manifestações de masculinidade.

Não pretendo especular sobre o porquê de tantos filmes norte-americanos desse período terem personagens masculinos tão vulneráveis, mas, sim analisar e discutir um longa-metragem específico: o icônico Juventude Transviada (1955), dirigido por Nicholas Ray. Como pano de fundo histórico, temos o processo de suburbanização das grandes cidades dos Estados Unidos. Famílias da classe média branca se mudam das regiões centrais dessas metrópoles para pequenos municípios satélites, onde passaram a residir em casas mais amplas e confortáveis.

Um dos temas centrais de Juventude Transviada é a busca pela figura paterna. O personagem central, Jim Stark (Janes Dean), é um adolescente em crise porque seu pai, Frank (Jim Backus), é um conformista acomodado e hesitante, que se permite – ou não consegue evitar – ser dominado pela esposa, Carol (Anna Doren), uma mulher autoritária e manipuladora. Ela o emascula diante do filho único, que não enxerga no pai um modelo de masculinidade a seguir ou admirar, tampouco alguém a quem possa recorrer em momentos de dificuldades ou dúvida.

Jim não é, entretanto, o único na trama de Juventude Transviada à procura de um pai. Judy (Natalie Wood) e Plato (Sal Mineo), também são incapazes de encontrar na figura paterna diálogo, orientação e afeto nessa fase de transição para a vida adulta. Por isso, juntam-se a Jim, recriando, ao longo de uma breve, intensa e, por fim, trágica noite, a família ideal que nunca tiveram.

 O encontro

Quando o cineasta Nicholas Ray foi questionado a respeito do desejo que movia os jovens personagens de Juventude Transviada (1955), o diretor, que não gostava de discutir as ideias contidas em seus filmes, teria respondido sem titubear: “Buscar o pai”.

No filme, Jim (James Dean), Judy (Natalie Wood) e Plato (Sal Mineo), sem encontrar apoio e orientação em suas respectivas famílias, embarcam juntos numa jornada psicológica à procura de uma figura paternal, deixando para trás seus lares conturbados na tentativa de encontrar o caminho rumo ao mundo adulto. Essa viagem, contudo, tem o seu preço. Plato, o mais vulnerável e carente dos três, é gravemente ferido e talvez morto – nunca fica claro se o personagem morre ou não – em uma troca de tiros com a polícia.

Esse tiroteio, embora aparentemente sem sentido, deixa, no entanto, um legado de esperança. Jim, o protagonista, encontra dentro de si a força para enfrentar e talvez superar a crise pessoal que enfrenta e ajudar o seu pai a resgatar a autoestima e dignidade, e se tornar a figura paterna que Jim sempre esperou que ele fosse.

Quando o cineasta Nicholas Ray foi questionado a respeito do desejo que movia os jovens personagens de Juventude Transviada (1955), o diretor, que não gostava de discutir as idéias contidas em seus filmes, teria respondido sem titubear: “Buscar o pai”.

No início do filme, quando Jim, Judy e Plato se encontram na delegacia de polícia, Nicholas Ray faz questão de mostrar quão perdidos, angustiados e enraivecidos os três adolescentes estão. As rebeliões que conduziram a suas respectivas prisões podem ser lidar como pedidos de socorro, inteiramente conectados aos tumultuados relacionamentos que mantêm com suas respectivas famílias. O principal foco da sequência de abertura do filme é Jim, cuja agressividade é apresentada como uma clara reação à evidente fraqueza do pai. O desejo do rapaz é vê-lo se impor e enfrentar a figura autoritária e irritante da mãe. Mas falta a Frank coragem para fazê-lo. Essa passividade faz com que Jim se sinta dilacerado entre o pai, ao mesmo tempo afetivo e impotente, e a mãe, uma mulher controladora e castradora.

Porque não tem uma figura paterna a quem possa admirar, Jim se esforça ao máximo para negar tudo o que o pai representa. “Ela o come vivo”, diz o rapaz ao juiz de menores Ray (Edward Platt). “E ele aguenta. Ele sempre quer ser meu amigo… se ele tivesse coragem de enfrentá-la derrubar minha mãe uma vez sequer, daí, talvez, ela ficaria feliz… eu jamais gostaria de ser como ele.” A simples menção da expressão chicken (covarde, em português) provoca acessos de ira em Jim, pois o faz lembrar de Frank, tiranizado por uma mulher incapaz de demonstrar qualquer respeito pelo marido. Em sua recusa de aceitar o pai como um modelo de masculinidade a ser seguido, Jim se sente fraturado, incompleto.

Por trás de sua fachada voluntariosa e desafiadora, Jim tenta disfarçar seu desejo por apoio, orientação e – por que não? – uma relativa dose de autoridade paterna. Embora o pai a ele ofereça inegáveis demonstrações de afeto e companheirismo, esse esforço não consegue contrabalancear os efeitos devastadores impostos pela mão-de-ferro de Carol. Autoritária, ela sufoca o resto da família, sempre impondo sua vontade a despeito da felicidade dos outros ao seu redor. E Jim não consegue perdoar seu pai pela passividade com que permite que isso ocorra.

Emasculação

Em uma das sequências mais significativas do filme, Frank, emasculado ao limite da caricatura, é retratado em casa, vestindo um avental de babados, evidentemente feminino, sobre o terno. Ele está de joelhos, limpando o chão, depois de derrubar a comida que estava levando à mulher, que está deitada no quarto, “se sentindo mal”. “Oi Jimbo. Você pensou que eu era a mamãe?”, ele pergunta a Jim. Essa pergunta é carregada de significado e denuncia a troca de papeis na ordem doméstica – vale lembrar que a ação do filme se desenrola no início dos anos 1950, pré-feminismo.

“Deixe-me juntar isso antes que ela veja!”, ele diz ao filho, que explode enraivecido ao ver o pai em uma posição tão humilhante. Usando comunicação não-verbal, emitindo frases desarticuladas, hesitantes e incompletas, Jim pede ao pai que se levante e seja “um homem”. Ele implora ao pai que deixe a mãe ver a bagunça, e a desafie, mas Frank ignora os pedidos do filho e continua a limpar.

É relevante apontar aqui que Jim não está furioso porque o pai está desempenhando tarefas domésticas – ele até ri quando percebe que Frank, desastrado, deixou a comida no chão. O que desespera o rapaz é a falta de coragem do pai de enfrentar ou desagradar a mãe. A posição de subserviência e conformismo diante da tirania da qual é vítima é o que angustia Jim profundamente. Na cabeça do filho, a passividade de Frank, sua incapacidade de “agir como um homem”, talvez seja parcialmente responsável pela postura abusiva da mãe. Não estaria ela frustrada com o fato de estar casada com um homem que não consegue se impor e assumir o papel que lhe cabe?

Complexo de Electra

Nicholas Ray alterna esta cena, na casa dos Stark, com outra que, supostamente, está acontecendo ao mesmo tempo na casa de Judy, personagem de Natalie Wood. Enquanto Jim se digladia com a fraqueza do pai, Judy também confronta o pai, porém em circunstâncias bastante distintas.

À mesa do jantar, ela tenta usar sua feminilidade adolescente, que desabrocha a olhos vistos, para chamar a atenção do pai (William Hopper), cujo nome jamais é revelado. Ele é “o paI”. O vermelho vivo do batom que Judy está usando pode ser interpretado como uma clara manifestação do seu complexo de Electra. Inconscientemente, ela compete com a mãe e o irmão pela atenção paterna.

É por isso que seu ato de beijá-lo nos lábios, um gesto inofensivo e até trivial nos códigos sociais e familiares norte-americanos, acabe dando o tom da cena. Especialmente porque, ao invés de demonstrar aprovação, ele a repele, esfregando o batom dos lábios da filha e dizendo a ela que “ela já não tem mais idade para isso”. E, quando ela insiste, e tenta beijá-lo mais uma vez, ele lhe dá um tapa no rosto, fazendo com que a filha se sinta culpada e envergonhada.

Arrependido, ele tenta se desculpar, mas Judy levanta-se da mesa e sai correndo de casa, aos prantos e gritando: “Este não é meu lar”. A mãe, que até este momento não havia se pronunciado, tenta explicar o comportamento da filha, afirmando que Judy está numa idade em que “nada serve, nada é adequado”.

A cena faz ecoa as palavras de Judy a respeito do pai na sequência inicial do filme. Ela diz ao juiz de menores: “Ele olha para mim como se eu fosse a coisa mais feia deste mundo. Ele não gosta dos meus amigos. Ele não gosta de nada em mim. Ele me chamou – ele me chamou de vagabunda suja. Meu próprio pai!”.

Ao recusar que a filha se torna uma mulher, e também ao lhe negar disponibilidade emocional em um momento tão importante na vida de uma jovem mulher, ele mina a autoestima de Judy e a conduz a buscar afeto e autoafirmação fora de casa, nas ruas. Essa rejeição, que priva Judy do tipo de afeição que se espera de um pai em relação a uma filha, não importa a idade, torna claro que é o pai, e não Judy, quem não consegue lidar com a sexualidade florescente da filha. É ele, não ela, quem parece ter desejos incestuosos mal resolvidos. Ele sabota, a autestima da filha porque tem problemas com a própria sexualidade. Portanto, seja consciente ou inconscientemente, ela provoca no pai reações tão violentas e vergonhosas.

Família alternativa

Em um corte, somos conduzidos de volta à casa de Jim, mais precisamente ao seu quarto. Ele está deitado sobre a cama quando seu pai entra, ainda vestindo o avental com babados, vestimenta que lhe empresta uma aparência patética, senão ridícula. Quando ele vê sangue na camiseta do filho, ele pergunta o que ocorreu. Neste momento, Jim tenta se abrir com o pai e lhe pergunta: “O que você pode fazer quando precisa ser um homem?”. Ele, na verdade, está querendo saber como reagir quando sua masculinidade é desafiada.

Mais cedo no filme, Jim e Buzz (Corey Allen), namorado de Judy e uma espécie de líder de uma gangue dentro do colégio onde estudam, brigaram com canivetes em punho, numa das cenas mais emblemáticas de Juventude Transviada, redada no planetário de Los Angeles. Ao serem surpreendidos pela polícia, Buzz desafia Jim a participar de um racha, no qual vencerá o último participante a saltar do carro antes que o veículo mergulhe do topo de precipício. Na expectativa de que o pai o incite a demonstrar coragem e enfrentar o desafio, Jim se desaponta mais uma vez. Embora o desafio em si seja uma estupidez, o rapaz se decepciona quando o pai o aconselha a esquecer do assunto e a “deixar que os outros garotos pensem que ele é um covarde”.

A mera possibilidade que pensem que ele é chicken (como seu pai) faz com que ele vista a sua jaqueta vermelha, pegue algo para comer na cozinha, e saia sem dizer uma palavra sequer. É evidente aqui o intento de Nicholas Ray, por meio da montagem de cenas que ocorrem simultaneamente, de estabelecer um paralelo entre as situações vividas tanto por Jim quanto por Judy em suas respectivas famílias. Ambos os personagens estão em situações-limite, incapazes de confiar nos pais, de neles encontrar aconselhamento ou orientação. Enquanto Jim anseia por uma figura masculina na qual possa se espelhar, Judy deseja, melancolicamente, o reconhecimento paterno de sua nascente feminilidade.

A exemplo de muitos dos personagens de Nicholas Ray, como Bowie (Farley Granger), e Keechie (Cathy O’Donnell), os jovens amantes de Amarga Esperança (1949), Jim e Judy são outsiders solitários, que anseiam por serem aceitos pelo chamado mundo da normalidade, mas são forçados a encontrar sozinhos o caminho em direção à vida adulta e a encontrar respostas para suas muitas perguntas.

O terceiro participante nessa busca por um lar alternativo, além dos limites da casa de suas respectivas família, é Plato (Platão, em português), o solitário por excelência. E, se é difícil para Jim e Judy lidar com seus pais, que ao menos são presentes em suas vidas, Plato tem de enfrentar uma situação ainda mais dolorosa: a ausência. Nem o pai nem a mãe do adolescente são vistos ao longo de todo o filme.

Quando fala sobre a mãe de Plato, a empregada da família, espécie de mãe substituta ou ama seca, diz: “Parece que ela está sempre para algum lugar”. E esse “lugar” jamais inclui o próprio filho. Quanto ao pai, a babá afirma ao juiz de menores, na mesma sequência inicial, que “eles não veem o garoto há bastante tempo”. Tudo o que ele recebe deles é um cheque mensal, uma espécie de pensão alimentícia. O problema é que, aqui, os pais se “divorciaram” do filho.

Plato tem tão um desejo tão intenso por um modelo de masculinidade, de uma uma figura paterna, que quando Jim presta alguma atenção no garoto, demonstrando algum afeto e consideração, Plato passa a lhe devotar uma adoração quase instantânea. A natureza desse sentimento é ambígua, e é assim apresentada ao longo de todo o filme. De um lado, ele parece estar romanticamente interessado por Jim, que aos olhos de Plato é ao mesmo tempo forte, corajoso e terno. Por outro, o rapaz o vê como uma espécie de pai substituto, alguém finalmente capaz de lhe oferecer orientação, encorajamento e proteção.

Quando, no racha, Buzz, o namorado de Judy morre ao não conseguir pular do carro antes que ele caia do precipício, Jim, Judy e Plato se veem unidos pela tragédia. O acidente acaba funcionando como um rito de passagem que marca sua perda da inocência. Ainda assim, eles tentam encontrar refúgio em suas respectivas casas (família), apenas para confirmar que fizeram a decisão errada.

Jim faz uma tentativa de buscar apoio e aconselhamento dos pais, porém, mais uma vez, eles falham. O rapaz se sente dividido. Enquanto a mãe insiste que ele não deve dizer uma palavra sequer à polícia sobre o acidente que causou a morte de Buzz, o pai, que em princípio aconselha Jim a procurar as autoridades, mais uma vez se sente intimidado e é dissuadido pelas palavras da mulher. Quando Jim lhe implora que ele se imponha, que defenda seu ponto de vista e, “uma vez na vida, faça a coisa certa”, Frank, impotente e sem forças, com o rosto enterrado entre as mãos, desiste e transfere a Carol a última palavra sobre a situação.

Enraivecido e muito surpreso, Jim levanta o pai da poltrona em que está sentado, o arrasta até a sala de estar, o empurra sobre uma cadeira e começa a estrangulá-lo. Até que Carol vem em socorro do marido e impede Jim de continuar sufocando Frank. Jim, então, intencionalmente chuta um retrato pintado da mãe, que está sobre o chão. Nesse momento, no que o teórico Thomas Elsaesser chama de “deslocamento por substituição”, Jim expressa seu desprezo pela mãe destruindo sua imagem representada em uma tela.

Esta noite será definitiva nas vidas de Jim e Judy. Sem conseguirem encontrar em suas respectivas famílias a compreensão e a harmonia que tanto buscam, eles se unem a Plato. Juntos, fogem da gangue de Buzz, cujos integrantes estão à procura de Jim, por julgá-lo culpado da morte de seu líder. Em um velho casarão abandonado, Jim e Judy iniciam um jogo de faz de conta, no qual assumem papéis de adultos, imaginando ser um casal de recém-casados em busca de um imóvel para comprar ou alugar. Em um primeiro momento, Plato assume o personagem de um agente imobiliário que lhe mostra a velha casa. É apenas uma questão de tempo, no entanto, até que o garoto assuma no jogo o papel de filho do casal.

Como o pai dessa família imaginária, Jim deita-se com a cabeça sobre o colo de Judy. Plato, o filho, senta-se no chão, assumindo a posição de uma crinça que brinca sob o olhar protetor da família. Ele lhes conta que seus pais são ausentes e que ele já fugiu de casa várias vezes. Jim percebe que Plato mente quando o garoto diz que seu morreu: “Ele está morto. Ele era um herói no Mar da China”. Para Plato, é mais fácil aceitar, ou explicar, a ausência paterna dessa forma. Segundo ele, contudo, faz pouca diferença se o pai está literalmente morto ou não: “Oh, qual é a diferença? Ele pode mesmo estar morto”, justifica. Judy afaga sua cabeça, o confortando: “Está tudo bem”, diz, em tom maternal. E então, em um dos momentos mais tocantes do filme, entoa uma canção de ninar que leva Plato ao sono. Desencantados com a própria família e removidos, ainda que por algumas poucas horas, do mundo real, os três personagem criam sua própria família, harmoniosa, afetuosa, idealizada.

Texto e imagem reproduzidos do site: aescotilha.com.br

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