segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O filme do coração de Walter Carvalho

Documentário Um Filme de Cinema expõe a paixão do cineasta e fotógrafo paraibano pela Sétima Arte - FOTO: Lula Carvalho/Divulgação

Publicado originalmente no site Portal UOL, em 23 de agosto de 2017 

O filme do coração de Walter Carvalho

Documentário Um Filme de Cinema expõe a paixão do cineasta e fotógrafo paraibano pela Sétima Arte

Por Ernesto Barros

Nem excessivamente didático, nem escrupulosamente teórico – é no fio da navalha do interesse do público, aquele ávido por um bom filme, e um outro mais interessado em conhecer a mecânica das imagens em movimento, que se equilibra o documentário Um Filme de Cinema, um sonho que demorou 14 anos para ser realizado. Dois anos depois de ter aberto o Festival de Brasília, o filme do coração do cineasta e diretor de fotografia paraibano Walter Carvalho, 70 anos, chega aos olhos dos espectadores com o seu lançamento nacional amanhã. No Recife, Um Filme de Cinema entra em cartaz no Cinema da Fundação/Museu, em Casa Forte.

No longa-metragem, iniciado no começo dos anos 2000, Walter Carvalho vai atrás de cineastas de várias partes do mundo para discutir com eles as partes constitutivas do filme, sua forma e sentido. Numa atitude que mescla a crueza do estudante com a sabedoria do mestre, ele cruza oceanos para lá e para cá, à cata de parceiros e irmãos de armas para saber porque eles fazem filmes, o que significa um plano, sua duração, e como o tempo e o espaço se relacionam durante a narrativa cinematográfica.

Para trocar essas ideias, Walter conseguiu a atenção de cineastas que têm algo na cabeça e uma obra que justifique a discussão, como o húngaro Béla Tarr, o polonês Andrzej Wajda, o inglês Ken Loach, a argentina Lucrécia Martel, o americano Gus van Sant, o iraniano Ashgar Farhadi e os brasileiros Ruy Guerra, Júlio Bressane, Karim Aïnouz, Hector Babenco e José Padilha, entre outros. Além dos cineastas, ele ainda encontrou espaço no filme para entrevistar o dramaturgo Ariano Suassuna e o ator italiano Salvatore Cascio, o Totó de Cinema Paradiso.

Com cerca de 50 anos de atividade atrás das câmeras – desde os primeiros passos nos filmes do irmão mais velho, o documentarista Vladimir Carvalho –, Walter começou a pensar em fazer Um Filme de Cinema vários anos antes de rodar a primeira cena do documentário, em Boqueirão, no Sertão da Paraíba. Parceiro de cineastas como Walter Salles, Ruy Guerra, Karim Aïnouz, Cláudio Assis, Julio Bressane, Héctor Babenco, Sandra Werneck e Luiz Fernando Carvalho, entre tantos outros, Walter pensava nos planos que, embora feitos para entrar nos filmes, ficavam de fora durante a montagem e nunca mais eram lembrados.

“Durante muito tempo eu tive a ideia de fazer um filme sobre o ofício do meu trabalho como fotógrafo e como diretor. Nesse caso, quando eu voltava para marcar a luz dos filmes, eu sentia a falta de planos emblemáticos, fortes, muito importantes na hora em que foram filmados. Então, tive a ideia de pegar esses planos dos filmes em que eu trabalhei – um plano de Carandiru, de Amarelo Manga, de Febre do Rato, de Central do Brasil, de Madame Satã, de Terra Estrangeira, de Heleno – e juntá-los, sem que tivessem nada a ver um com o outro, para criar, a partir de uma montagem, uma lógica narrativa ou uma possível relação que eles pudessem ter, por oposição ou por afinidade”.

Apesar da ideia de montar os pedaços de filmes perdidos ter exercido uma grande atração para Walter, a realidade de montá-los mostrou-se inviável. Na lógica da produção cinematográfica, depois que o filme acaba sobram poucos objetos utilizados em sua feitura, como utensílios de decoração ou roupas usadas pelos atores, por exemplo. As sobras de tomadas, descartadas durante a montagem, até que demoram um pouco para serem perdidas, mas acabam também indo para o lixo. “A sobra do negativo é incinerada, se perde ou fica no laboratório, que chegam a jogá-la fora. As sobras de alguns filmes, reveladas fora do Brasil, não voltam e se perdem por lá. Tecnicamente, não dava para levar a ideia adiante, mas continuei levando no cinema que eu queria fazer essa discussão, porque acho que não se faz filmes com planejamento, mas com cinema”.

CINE CONTINENTAL

Embora a primeira imagem que vemos de Um Filme de Cinema seja a de uma cabine de projeção abandonada, no que um dia foi uma sala de exibição, a lembrança que levaremos para casa é a de que o cinema renasce das próprias cinzas e que nos sentimos felizes ao assistir a um filme. Mesmo em ruínas, aquele velho cinema abandonado no interior da Paraíba, onde Walter nasceu, respira vida. Foi por puro acaso que, durante as filmagens de Madame Satã, o cineasta e diretor de fotografia acabou passando na frente do Cine Continental.

“Eu procurei saber nas redondezas e me disseram que o dono morava em frente. Fui à casa e perguntei se eu podia olhar por dentro. Ele também era dono de um cartório, que ficava vizinho ao cinema, e entramos por lá, pelos fundos, porque a frente estava lacrada por dentro. Quando entrei no cinema em ruínas, por trás, dei de cara com a cabine, onde estava o projetor – coberto de marimbondos, com um carretel de filme cheio de teias de aranha e poeira. Um pedaço de fita ainda estava lá, sendo balançada pelo vento. O projetor ainda segurava o telhado, que havia desabado, e do salão só dava para ver as colunas e telhas pelo chão. Eu me emocionei, cheguei a ponto de lacrimejar porque era uma coisa muito impressionante ver um cinema daquela forma”.

Essa primeira sequência, que serve como prólogo e depois voltará como epílogo, baliza toda a discussão que Walter vai empreender durante o documentário. Para quem gosta de cinema, estuda sua gramática e pensa em se colocar como criador, Um Filme de Cinema tem muito mais a dizer. Não se trata, nem de perto, de um similar dos making ofs sobre filmes, apesar de Walter se utilizar de cenas que ele fotografou ou que pertencem a algum trabalho dos seus entrevistados. Na verdade, o filme tangencia, de uma maneira mais prática, mas pouco acadêmica, o livro A Teoria dos Cineastas, do francês Jacques Aumont.

Durante as conversas com os cineastas, algumas teorias e ideias saídas no calor das entrevistas resvalam em tópicos estudados nas escolas de cinema. Na sessão imaginária que ele promove para os moradores idosos de Boqueiral, refazendo os momentos do passado das sessões de cinema do Cine Continental, os signos da história das imagens em movimento se presentificam na tela, entre sombras e memórias. “Convidei 15 idosos da cidade, além de um casal, a mulher como bilheteira e o homem como porteiro. Depois, fizemos a fila dos idosos comprando ingressos e entrando para ver o filme, que começa com o cavalo de Eadweard Muybridge, a imagem que prefigura o movimento do cinema. O cavalo anda da direita para a esquerda quando o filme começa. E quando os idosos chegam para assistir, o cavalo está voltando, da esquerda para a direita. Essa frase que diz que o cinema vai acabar por causa da televisão, do Cinemascope, da internet e não sei o que mais lá, não quer dizer nada. O cinema não acabou e não vai acabar. A ideia é que, mesmo numa ruína, é possível passar uma imagem de cinema e emocionar as pessoas”.

Essa emoção de assistir a filme é retratada na entrevista com Ariano Suassuna, que não foi seduzido pela cinema na infância, quando conta uma de suas histórias peculiares, sobre a espectadora que foi assistir a um filme de lobisomem com Boris Karloff. Ou nas ruas de Palazzo Adriano, na Itália, onde Walter Carvalho se encontrou com Totó. Apesar de toda a retórica, as discussões e as agonias dos cineastas, o documentário apela à emoção e o fascínio que o cinema exerce sobre todos nós.

Texto e imagem reproduzidos do site: jc.ne10.uol.com.br

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