Foto: arquivo Portal Infonet.
Publicação originária do site Cinema em Cena, de 25/02/2014.
Conversa de Cinéfilo: Visita a um Cinéfilo Profissional.
Conversa de Cinéfilo: Visita a um Cinéfilo Profissional.
Por Pablo Villaça.
Ivan Valença tinha 20 anos de idade quando ocorreu o golpe
militar no Brasil. Embora jovem, já era o veterano responsável pela redação da
Gazeta de Sergipe, na qual trabalhava desde os 13 anos, quando teve que
preparar a manchete de capa sobre a decretação do AI-1, Ato Institucional que
cassava os direitos políticos daqueles que se opunham aos militares. Sem
hesitar, Valença fez a chamada anunciando o “Ato Inconstitucional 1”. Antes que
o jornal chegasse às ruas, porém, o major responsável por supervisionar a
publicação protestou, aos berros, afirmando que o novo governo não tinha
obrigação de acatar a Constituição, cuja suspensão constava do ato.
- Obrigação vocês têm. – respondeu o jovem jornalista em tom
irônico. – Os senhores não querem, o que é bem diferente.
Este despojamento de Ivan Valença não diminuiu com a idade.
Quando cheguei à sua casa, em Aracaju, fui recebido por um senhor sem camisa e
de chinelos que, descendo as escadas para me encontrar, foi imediatamente
provocado pelo antigo discípulo Cristiano Leal (e agora professor de
disciplinas relacionadas ao Cinema na UNIT de Sergipe), que me levara até lá
para conhecê-lo.
- Isso é jeito de receber o convidado que eu trouxe, Ivan?
- Ah, marginal, daqui a pouco eu coloco a camisa! – riu o
dono da casa, que voltaria a se referir ao velho pupilo como “marginal” mais
uma dúzia de vezes durante a visita.
Em mais alguns minutos, eu entrava no escritório do
jornalista a fim de conhecer o que me levara até ali: um acervo de referência
impressionante sobre Cinema que Valença vem construindo há cerca de 60 anos.
Dominado por pastas, envelopes, recortes de revistas e
jornais, DVDs, fitas de VHS e monitores de computador, o aposento no andar
superior da casa é o pesadelo de qualquer alérgico e o sonho molhado de todo
cinéfilo: metodicamente organizados nos milhares de envelopes que ocupam cada
centímetro das estantes que percorrem as paredes de alto a baixo estão recortes
de críticas de filmes e de artigos sobre artistas de todo o mundo. Curioso para
saber qual foi a reação da crítica na época do lançamento de Bonnie &
Clyde, Manhattan, A Hora da Estrela ou Titanic? Basta buscar, por ordem
alfabética, o envelope correto na estante e ler o que os principais críticos
brasileiros, europeus e norte-americanos escreveram. Interessado em saber o que
já foi escrito sobre Kurosawa, Rita Hayworth ou Sônia Braga em jornais e
revistas como O Estado de São Paulo, Studio e Premiere? Simples: busque-os,
também em ordem alfabética, nos respectivos envelopes ou, caso ainda não esteja
satisfeito, digite o nome em questão no programa criado especialmente para
Valença há vários anos e descobrirá o título da publicação que contém a matéria
relevante, bem como a edição e a página precisas em que o artista foi
mencionado. A partir daí, é só buscar a revista no quarto que fica nos fundos
da casa do jornalista e que abriga suas coleções de livros e revistas, incluindo
todas os volumes da Variety e da Cahiers du Cinéma.
Ao todo, o acervo de Ivan Valença traz informações sobre
mais de cem mil filmes e artistas.
Agora com 70 anos de idade, o aplicadíssimo cinéfilo começou
seu obsessivo hobby aos 10 anos de idade, quando, levado ao cinema toda semana
pela mãe, passou a se interessar por filmes e a rabiscar suas primeiras
impressões sobre o que via. Auxiliado no início pelo amigo Simõezinhos, que
mesmo depois de se mudar para o Rio de Janeiro a fim de assumir um cargo no
Banco do Brasil continuaria a enviar pelo correio revistas para o antigo
companheiro, Valença recortava cuidadosamente as críticas que lia e as separava
em envelopes dedicados para cada longa-metragem assistido. Sessenta anos
depois, sua metodologia não mudou muito – e ver tudo que ele acumulou ao longo
dos anos é testemunhar a materialização de um profundo amor pelo Cinema.
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O jornalismo, no entanto, não foi exatamente a primeira
opção profissional de Ivan Valença: filho de um dono de funerária, o pequeno
Ivan começou a trabalhar com o pai aos 11 anos de idade. Contudo, ainda que
gostasse da oportunidade de paquerar as meninas que encontrava nos enterros,
passar a vida ao lado dos mortos não era uma perspectiva das mais atraentes.
Foi quando, levado por um amigo, passou a frequentar as
redações dos jornais locais de Aracaju, que, publicados semanalmente, traziam
apenas quatro ou cinco páginas. Não demorou muito até que começasse a publicar
breves textos na Gazeta Socialista sobre os filmes que chegavam à cidade,
chegando a atrair a atenção do principal crítico local, Alberto Carvalho, que
ao encontrá-lo pela primeira vez surpreendeu-se ao descobrir que o novo colega
tinha apenas 13 anos de idade – o que não o impediu de estimular o garoto a
continuar na profissão. “E aí acabou-se”, relembra o jornalista, empregando uma
frase recorrente em sua fala e que surge quase como pontuação de seus relatos.
Com a transformação da publicação em um jornal diário,
quando foi rebatizado como Gazeta de Sergipe, Valença foi convidado pelo editor
Pascoal Maynard para “tomar conta da redação” na parte da tarde, ao sair da
escola, atendendo o telefone e anotando recados. Para isto, ganharia 5 milhões
de cruzeiros mensais – a metade do que recebia do pai para ajudá-lo na
funerária. No terceiro dia de trabalho, porém, aconteceu algo que sedimentaria
definitivamente o interesse do menino pelo jornalismo: sozinho na redação ao
receber a informação de que um acidente de carro acontecera na cidade (o que
era notícia na época), Ivan correu para o local do desastre e, na mesma noite,
depositou uma matéria na mesa de Maynard. Impressionado com a iniciativa e com
o texto do garoto, o editor tomou uma decisão impulsiva e o escalou para cobrir
a Câmara de Vereadores diariamente.
Longe de se intimidar, o repórter mirim passou a escrever
matérias que não poupavam os políticos locais, o que culminou no curioso
momento, em 1958, envolvendo um influente radialista sergipano que, sentindo-se
ofendido pelo texto publicado na Gazeta, subiu à tribuna da Câmara para fazer
um discurso inflamado contra o jornalista que o atacara.
Jornalista este que tinha apenas 14 anos de idade e,
sentindo as cusparadas disparadas da tribuna pelo nervoso locutor,
imediatamente abriu um guarda-chuva para se proteger, provocando tamanha
comoção que o então presidente da câmara, João Bezerra, viu-se obrigado a
encontrar um novo lugar para o jovem e irreverente correspondente. Menos de
três anos depois, quando Maynard adoeceu e se viu obrigado a se afastar da
redação, seu pupilo Ivan Valença, então com 16 anos, assumiu o comando do
dia-a-dia do jornal. “Eu não estava sozinho”, recorda ele. “Eu tinha outros
amigos trabalhando lá: José de Oliveira Neto, Renato Chagas, Macepa – que certa
vez bebeu tanto que, no dia seguinte, descobriu que não sabia onde havia
deixado o carro, que levou dias para ser localizado -, mas eu basicamente
comandava a redação”.
Uma posição que se tornou oficial quando o então dono do
jornal, um rico usineiro que vivia fora da cidade, o chamou para uma conversa
sobre o futuro da publicação na qual Valença permaneceria por mais nove anos,
deixando a Gazeta em primeiro de janeiro de 1970. Pouco depois, ao lado de um
amigo, ele fundaria o Jornal da Cidade, primeiro de Sergipe a empregar
composição a frio e impressão em offset. “No dia em que receberíamos as
máquinas da IBM, um de nossos sócios, que pagaria por elas, morreu de
repente.”, conta o jornalista. Depois de alguns segundos de silêncio - e com o
tom informal que emprega durante toda a conversa, Ivan completa, quase como
para si mesmo: “Eu era doido pra namorar a filha dele”.
A situação foi contornada, felizmente, quando a IBM ofereceu
um prazo de seis meses para o pagamento do maquinário. “Quando chegou a época,
já tínhamos dinheiro de sobra. E aí acabou-se.” Eventualmente, ele sairia do
jornal que ajudou a fundar por ter alguns desentendimentos com o sócio,
passando os anos seguintes em empreitadas diversas, abrindo uma gráfica e
dirigindo, por quatro anos, a Imprensa Oficial de Sergipe.
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O Cinema, no entanto, jamais deixou de ser seu grande amor –
e, além de manter seu acervo de recortes de críticas e artigos, Valença
visitaria o Festival de Cannes em três ocasiões.
- Certa manhã, saí do hotel mixuruca no qual eu ficava para
ver a versão integral de 1900, do Bertolucci. Eram umas sete da manhã e, de
repente, vejo a Jane Fonda andando sozinha pela rua e ajeitando os seios por
baixo da blusa. Eu contava isso pra todo mundo, mas ninguém acreditava.
“Mentira, ela não anda sozinha!”, eles diziam. E eu respondia: “Ora, perguntem
a ela se não foi mesmo?!”.
Por volta desta mesma época, Ivan se tornou consultor da
Mundial Filmes e, numa visita a uma feira em Milão, viu algo que o levaria ao
delírio: um videocassete. De volta ao Brasil, ele não conseguia parar de pensar
no aparelho que permitia que cinéfilos assistem aos filmes na tevê de casa e
finalmente procurou um conhecido “importador” local (atenção para as aspas),
João Muamba, que se ofereceu para trazer o eletrônico pela bagatela de dois mil
dólares. “No final, consegui juntar mais cinco amigos interessados e os
videocassetes saíram por 1.500 dólares cada”, lembra ele.
O problema agora era conseguir os filmes. Para isso, Valença
fez um acordo com Ronald Suplicy, dono do pioneiro Video Clube do Brasil, em
São Paulo: todo sábado, um pacote de dez filmes era enviado da capital paulista
à sergipana e devolvido na semana seguinte, quando uma nova remessa era
despachada. Foi então que um empresário de Recife, que vinha copiando os filmes
do Video Clube do Brasil, ofereceu a Ivan um acordo mais barato. Aliás, a
estratégia do pernambucano para evitar ser preso pela locação das cópias sem
permissão era curiosa: para filiar-se ao seu videoclube, os sócios tinham que
entregar quatro fitas virgens que, então, eram usadas para gravar novos títulos
e adicionadas ao acervo. “Se eu for preso, todos os sócios também serão”, ele
explicava. Sem ter como prender 200 pessoas pelo aluguel de filmes – uma
prática ainda nova no Brasil -, a polícia passou a se fazer de cega para as
atividades do sujeito.
E logo Ivan Valença repetia a tática e abria o primeiro
videoclube de Aracaju: “Eu tinha 25 filmes e abri o negócio no meu escritório
de composição gráfica, pois não achei que alguém apareceria. Eu pensava que
ninguém tinha videocassete na cidade. Em uma hora, todas as fitas haviam sido
retiradas e eu fui obrigado a pedir que as pessoas voltassem no dia seguinte”.
(Alguns anos depois, aliás, Valença conheceria Cristiano
Leal - o professor universitário que me apresentaria a ele -, quando o então
adolescente apaixonado por Cinema passou a frequentar sua locadora embora não
tivesse videocassete em casa. “Ele me disse ‘Quem não bebe, cheira o copo’ e eu
nunca me esqueci disso”, conta Leal.)
A locadora duraria mais de 20 anos, sendo finalmente
encerrada quando a pirataria começou a tornar o negócio inviável. “Alguns dos
sócios originais ainda vieram cobrar as fitas VHS que tinham entregado quando
abri o videoclube”, Valença relembra, entre risos. “E aí acabou-se.”
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Admirador de críticos celebrados como Antônio Muniz Viana e
Hamilton Correia, Ivan Valença não se considera um crítico particularmente bom,
explicando que por isso não inclui seus próprios textos nos envelopes
arquivados em seu escritório. Isto, porém, não diminui sua paixão incondicional
pelo Cinema: estimando ter visto cerca de 26 mil filmes ao longo de seus 70
anos de cinefilia, ele não só continua a escrever colunas sobre a Sétima Arte
como ainda já se arriscou consideravelmente por ela. Em 1985, por exemplo,
quando o Brasil celebrava seu primeiro presidente civil após duas décadas de
Ditadura e, com isso, o fim da censura, uma controvérsia iniciada pelos
religiosos brasileiros reabriu as cicatrizes daqueles que achavam que o país
agora respiraria liberdade: pressionado pela Igreja, o então presidente Sarney
decidiu proibir a exibição do francês ‘Je vou salue, Marie’, de Godard, em todo
o território nacional.
“Na mesma hora, decidi que ia passar o filme para o
público”, diz Valença.
Para cumprir o arriscado objetivo, ele entrou em contato com
os estudantes do diretório de uma universidade de Aracaju e, com uma cópia do
filme contrabandeada do Rio de Janeiro, marcou uma sessão em um auditório do
campus. Com a sala lotada de jovens, Ivan iniciou a projeção e, minutos depois,
foi abordado por dois agentes da Polícia Federal. “Eles me mandaram entregar a
cópia. E eu falei que entregaria, mas para isso precisaria interromper o filme
e não seria responsável pela reação dos estudantes”.
Contrariados, os policiais ordenaram que o jornalista
entregasse a fita (a projeção era de uma cópia em VHS) assim que a sessão
terminasse. “Falei que entregaria. Depois, fui direto até a cabine e avisei o
rapaz que estava cuidando da projeção para não me passar a fita, mas entregá-la
para o pessoal do diretório. Quando o filme acabou, os caras da Polícia Federal
foram comigo até a cabine e ouviram o menino dizer que a fita ‘já tinha ido
embora’”.
Irritados, os agentes conduziram Valença até sua casa e
iniciaram uma busca intensa por todos os aposentos. Frustrados por não
encontrarem a cópia do filme, já que desconfiavam de que esta havia sido
deixada ali pelos estudantes, acabaram confiscando dez fitas virgens do
videoclube do jornalista com a intenção de usá-las como indicio de contrabando,
abrindo um inquérito contra ele. Chamado para depor, Ivan fez valer a
estratégia que aprendera com o companheiro de Recife:
- As fitas não são minhas, delegado. São dos sócios do
videoclube que as entregaram quando se filiaram.
E então passou os nomes dos sócios em questão: o irmão do
governador de Sergipe, o filho do prefeito de Aracaju e alguns ricaços locais.
O inquérito foi encerrado.
- E eles nunca descobriram onde eu havia escondido o filme –
ri Ivan, ainda se divertindo com a memória. – Eu tinha avisado a empregada para
enfiá-lo num saco plástico e colocá-lo na caixa d’água. Foi um dos poucos
lugares que eles não remexeram.
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Entusiasmado com tantos casos, com o jeito simpático de Ivan
Valença e, principalmente, com aquele acervo magnífico que me cercava, decidi
que era hora de parar de incomodar meu anfitrião e encerrar a visita. Antes,
porém, uma última pergunta: o que ele pretende fazer com todo aquele riquíssimo
material depois de tantas décadas dedicadas a coletá-lo?
- Ana, com quem sou casado há 40 anos, quer doar tudo para
um museu. Ela reclama da sujeira que eu faço, da bagunça toda que eu apronto
aqui.
Comento que a preservação de toda aquela coleção é, de fato,
algo importante e que merece atenção. E, então, sou surpreendido pela prova final
do despojamento daquele homem dono de histórias tão ricas e, ao mesmo tempo, de
um jeito tão simples:
- Que nada. É importante só para mim, que passei a vida toda
me dedicando a isso. Não acho que os outros vão se importar.
E arremata:
- Já disse a Ana que, quando eu morrer, ela pode jogar tudo
fora. Eu não vou me importar.
Embora discordando radicalmente de sua posição, não deixo de
me encantar mais uma vez com sua postura serena diante do destino do trabalho
de toda uma vida. Feliz por ter conhecido um companheiro de cinefilia tão
dedicado, aperto sua mão e digo que foi uma honra conhecê-lo. Ele nos leva até
o portão, agora vestindo uma camisa que se mantém completamente aberta, e
comenta que ainda precisa recortar os artigos de uma revista que recebera
naquela amanhã.
Afasto-me impressionado com sua energia. E aí acabou-se.
Texto reproduzido do site: cinemaemcena.com.br
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