Publicado originalmente no site Vertentes do Cinema, em 11 de março de 2017
A Loucura Iminente de Roman Polanski
Por Fabrício Duque
A arte imita a vida ou o contrário? É a pergunta retórica
questionadora que nós espectadores pululamos em nossas mentes quando assistimos
ao britânico “Repulsa ao Sexo”, de 1965, e referenciamos ao infortuno-caso
julgado como crime sexual (a Suíça, no entanto, recusou extraditar o
realizador, alegando falta de provas conclusivas) que seu diretor francês
parisiense Roman Polanski (de “O Bebê de Rosemary”, “Tess”, “Chinatown”, “O
Inquilino”, “Lua de Fel”) viveu doze anos depois do filme em questão, em onze
de março, com uma modelo mirim de treze anos em uma Califórnia sensualizada ao
extremo, em que tudo respirava sexo (impossível não referenciarmos a “Lolita”,
de Vladimir Nabokov, publicada em 1955, dez anos antes). Por lógica factual,
respondemos que foi o contrário, que talvez seu diretor tenha acreditado que
não havia limites a seu prazer machista, tema este que passa a mensagem de
potencializar a crítica de que todos os homens, sem exceção, “lobos” por instinto,
veem as mulheres como “carniças de um cordeiro ao abate” e como meros objetos
sexuais.
“Repulsa ao Sexo” é um prato cheio ao universo psiquiátrico,
por abordar o “Transtorno de Aversão Sexual”, caracterizado pela rejeição
extrema e persistente a todo tipo de contato genital com outra pessoa (gerando
asco e ansiedade no paciente – uma inversão máxima à ninfomania – mas nas das
fobias a causa é a mesma: autoproteção pela fuga). Este, um estudo de caso de
paranoia no campo da ficção, é exatamente a repulsa que a personagem principal
Carol Ledoux (a atriz Catherine Deneuve) sofre, entrando em uma profunda
depressão que beira loucura patológica por atormentadas e assustadoras
alucinações com estupros e atos iminentes de violência.
O longa-metragem inicia-se aludindo à cena surrealista dos
olhos e pupilas dilatadas de “Cão Andaluz”, do cineasta Luis Buñuel (que aqui
navalha é usada como uma defesa da legítima defesa, que enaltece a forma
feminista e fornece uma liberdade emancipada às mulheres (que precisam usar
“máscaras faciais” e estarem perfeitas todo o tempo) contra uma sociedade que
aceita o poder patriarcal, que não revida e só espera o “tique taque”
intermitente que perpetua esta “monstruosa” massificação masculina, imbuído em
um repetitivo bumbo perturbador que estimula o intrínseco desejo (dentro de
casa – porque na rua é um animado jazz que lembra a atmosfera de “Copacabana
Mon Amour”, de Rogério Sganzerla com a liberdade poética da mesclagem da
Nouvelle Vague com Alfred Hitchcock).
“Repulsa ao Sexo” tem fotografia em preto-e-branco a fim de
pausar seu tempo e sua época e criar uma distância com a realidade,
permitindo-se a imersão personificada e contextualizada na loucura da
protagonista, m suas micro-ações cotidianas de trabalhar em um “fútil” Salão de
Beleza para clientes “dondocas”, realistas e que dão “opinião-aula de graça”
sobre os homens. “Só tem uma forma de tratar os homens: como se eles não
importassem. Quanto mais suplicarem, mais felizes ficam”, “ensina-se”.
O roteiro, por detalhes escondidos, constrói um universo em
que a voz das mulheres não importa, assim, cantadas grosseiras de um peão de
obra querendo “mostrar sua furadeira” e ou a espera da resposta em uma conversa
apática e ou das investidas de “orgulho ferido de macho” de um “pretendente”
(que é pressionado pelos amigos), tudo é unicamente um flerte hipócrita que
pela “convenção” não pode encontrar recusa de “jovens e bonitas”, que foram
feitas para o prazer, para cozinhar e para manter em casa (principalmente as
amantes) a volta da vontade-apetite (que não consegue esperar nem mesmo para
“deixar que elas provem os atributos culinários” e sim ir direto ao ponto:
levar para jantar – por ser mais rápido) por seus corpos. Sim, “Repulsa ao
Sexo” é um filme totalmente feminista. E o grito de que ela não precisa ceder
aos caprichos sexuais dos homens.
Uma de suas maestrias é a metáfora da presença de sua câmera
e seus ângulos, como no chão focando o rodapé e os pés, de cima para baixo,
como uma indicação de uma invertida submissão que encontra o comportamento
diferente “obrigatório” (e que, mesmo “incapaz” de luta, saídas radicais podem
ser levadas à frente). A casa é uma entidade. Entre bibelôs, foto de família,
uma irmã impaciente, baladeira e saideira “femme fatale” (já “abduzida” pela
sociedade e que seu namorado vê a mais nova como “Cinderela”) e um cachorro (de
pelúcia), ela olha freiras que se divertem com horário marcado e que quando o
sino toca, vê a prisão instaurada e a falta da alegria. É a vida da mulher
“bela, recatada e do lar”, imposta pela Igreja e pela “culpa”. Talvez neste
momento, com todos os estímulos externos ao sexo, ela, viajando no pensamento
interno, embarque na radical literalidade da auto-proteção a fim de impedir seu
sofrimento póstumo ao ato sexual, de não compactuar com mulheres como objetos a
mercê da vontade dos homens, e da crença máxima de seu “Segundo Sexo”,
referência a Simone de Beauvoir.
Tudo é potencializado pelos ruídos. O pingo intermitente da
pia, os ponteiros do relógio, o barulho do cotidiano que vem da rua, o barulho
exagerado de um ato sexual. Mesmo assim, nada é estimulado, e cada vez nossa
protagonista aumenta sua aversão e asco a sua fobia. O que percebemos é que
estamos nos ambientando na loucura de seu estágio mental e suas deturpações
perceptivas: as sombras, as perseguições, as muitas pedras de açúcar no café,
as rachaduras, sua roupa sempre de branco que lembra uma “santa barroca”, um
grupo de banjo, os sinais, os sinos, suas expressões, os tarados pervertidos no
telefone, o free jazz catártico, a cidade como uma praça de guerra, a Torre de
Pizza, a vida Fellini da “La Dolce Vita”, tudo indica teor sexual, até mesmo em
um filme de Charles Chaplin (e um homem gordo que quer o comer por vê-lo como
um frango assado).
“Repulsa ao Sexo”, com “O Bebê de Rosemary” (1968) e “O
Inquilino” (1976), integra o primeiro filme de uma trilogia pessoal do diretor
sobre os horrores vividos por moradores de apartamentos em cidades, é um filme
altamente recomendado. Datado em sua forma, mas não em sua essência temática de
terror psicológico, esta, pelo contrário, está mais atual que nunca. O que
incomoda no paciente que tem o diagnóstico é que sexo está em toda a parte, e
que, assim como no filme, a consequência pode gerar uma trágica defesa de
auto-proteção. Ganhou o Urso de Prata de Prêmio Especial do Júri no Festival de
Berlim 1965.
Texto e imagem reproduzidos do site: vertentesdocinema.com
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