Publicado originalmente no site Plano Crítico, em 28 de maio
de 2016
Crítica | Thelma & Louise
Por Leonardo Campos (Avaliação: 5 estrelas)
O poeta estadunidense Walt Whitman foi um dos artistas que
mais versou sobre a liberdade. Em um de seus poemas, ele explorou os limites da
identidade e da localidade, apontando para a ideia da viagem como uma garantia
da constante mobilidade que permite ao ser humano a emancipação nas variadas
esferas de suas respectivas existências. A roteirista Callie Khouri, imbuída
deste sentimento, escreveu Thelma e Louise, texto que circulou pelo circuito
alternativo, sem financiamento, até cair nas graças do cineasta Ridley Scott.
No filme, duas amigas decidem ir pescar nas montanhas
durante um final de semana. Elas desfrutam de bons momentos de liberdade, longe
das suas obrigações cotidianas (ser esposa e ser garçonete). Durante o percurso
decidem parar no Silver Bullet, um bar de estrada aparentemente divertido. Elas
bebem, gargalham, divertem-se e até dançam. Até então, o espectador divide as
alegrias com a cativante dupla Thelma (Geena Davis) e Louise (Susan Sarandon).
No loca, Thelma bebe além do permitido por seu organismo. É
convidada para dançar por um desconhecido. Atraída para o lado externo, é
seduzida pelo homem, convidada a ir além dos pequenos afagos (semi)
correspondidos, graças aos efeitos do álcool. Ao perceber que o homem pretende
ir além, Thelma pede para voltar, pois relação sexual não estava em sua agenda.
O homem não obedece, reage, agride-a e demonstra-se um perfeito exemplar do que
se convencionou chamar de cultura do estupro.
A situação não acaba bem. Thelma não chega a ser estuprada,
mas acaba se metendo numa confusão ainda maior, afinal, ela e a sua amiga
faziam parte de um circuito patriarcal que jamais perdoaria alguém por atirar
em um homem. Tiro, você pode se perguntar, caro leitor. Pois caso você não conheça
o filme, adianto. Após a situação conflituosa, Louise surge para salvar a
amiga, ambas acabam atirando no machão, desencadeando o feixe de acontecimentos
que vão levar as protagonistas para o acerto de contas na estrada.
Será na estrada que elas vão experimentar um grau maior de
amizade. Juntas elas vão buscar lutar contra o opressivo sistema patriarcal,
trazendo à tona questões como domesticidade, lei, violência física e simbólica,
sexualidade e gênero, numa trama agressiva gerada por uma série de
acontecimentos indesejáveis, mas necessários para que elas possam questionar as
suas existências. São amigas de longa data, mas será na estrada que a amizade
vai se desenvolver com maior grau, através de vivências que as colocam em
situações irreversíveis, desaguando no final emblemático.
Esse é o argumento do filme. Após as apresentações, vamos
passear pelos outros aspectos do filme? No que diz respeito aos requisitos
formais, Thelma e Louise é uma produção que segue com muito respeito os padrões
solicitados pela gramática clássica do cinema. A montagem alternada apresenta
bem os personagens, costurados por uma rima visual bastante funcional. A trilha
sonora é empolgante e a direção musical de Hans Zimmer funciona muito bem.
Com grandes planos e travellings, a captação de imagens
orientada pelo cineasta Ridley Scott consegue dialogar com os temas propostos
pelo roteiro de Callie Khouri. Ao apresentar enquadramentos mais fechados,
revela o subtexto dos diálogos que expressam o sufocamento dos personagens diante
da asfixia provocada pela sociedade patriarcal. Em suma, um filme bem escrito,
bem dirigido, montado e apresentado ao público através de uma equipe eficiente.
No que tange aos aspectos do roteiro, o filme é considerado
pelos especialistas como uma das obras-primas do cinema contemporâneo. Quase
todos os manuais, apostilas e listas de roteiros cinematográficos abordam o
filme como modelo. O desenvolvimento dos personagens é um dos pontos fortes
deste apreço pelo texto do filme. Primeiro que a verossimilhança está bem
apresentada ao passo que a narrativa se desenvolve. Em segunda instância, há o
brilhantismo da dupla, interpretada por Geena Davis e Susan Sarandon, algo
praticamente impossível de não ressaltar.
Louise é autossuficiente, ganha o seu dinheiro trabalhando
como garçonete e representa a mulher que não “depende da bondade dos homens,
conhecidos ou desconhecidos”. Segura de
si e responsável por sua amiga Thelma, ela é quem segura a dupla nos momentos de
cristalização do conflito principal. A famosa selfie com a Polaroid metaforiza
a posição da personagem: com o controle da situação em boa parte do tempo,
Louise é experiente e sabe liderar, diferente do sorriso de Thelma que sugere
inocência e ingenuidade. São estas diferenças, por sinal, que fazem o sucesso
da dupla. Elas se complementam. Thelma é um retrato fiel da vida doméstica:
casada com um marido narcisista e controlador, a moça integra um grupo de
mulheres imbuídas do sentimento de pertença em relação ao lar em que vivem.
Carismática e alegre, ela não toma as decisões sensatas, mostrando-se impulsiva
na maioria das vezes, mas como apontado no que diz respeito ao roteiro,
desenvolve-se e assume as rédeas da situação quando se torna necessário, principalmente
depois que cai na real ao refletir sobre a sua agonizante vida doméstica.
A obra dialoga com os elementos do clássico O Herói das Mil
Faces, de Joseph Campbell. Ao lado das teorias psicanalíticas de Carl Jung
sobre os arquétipos e a ideia de inconsciente coletivo, o autor aponta que
todas as histórias estão ligadas por um fio comum. Durante o século XX esta
jornada tem servido de base para os profissionais, tais como escritores,
dramaturgos e críticos culturais. Segundo essa lógica de pensamento, há a
possibilidade de estruturar qualquer histórica a partir da jornada do herói.
A guisa de citação, o 1º (Mundo Comum) e o 2º (Chamado à
aventura) tópico da jornada do herói estão explícitos na primeira parte do
filme. Inicialmente somos apresentados ao mundo delas, compreendemos as suas
realidades, as pessoas com quem convivem diariamente, o seu espaço de
sobrevivência e trabalho e logo depois, estabelece o objetivo do jogo e deixa
claro o objetivo do herói, no caso, das heroínas, quando estas são “chamadas
para aventurar-se” pelo roteiro fílmico, deixando-nos na dúvida se elas
escaparão ou não daquela situação.
Outro ângulo a iluminar é a subversão do gênero road movie.
Este tipo de narrativa em que a estrada ganha papel protagonista aponta
ressonâncias do western. Os temas destas narrativas de estrada geralmente
trafegam na via do desejo de liberdade. A temática, por sinal, deu origem a um
extenso numero de narrativas sobre o constante sonho americano da mobilidade
social. Apesar de constantemente vermos esse tipo de narrativa associada ao
clássico moderno On The Road, de 1957, o modelo faz parte de uma tradição
literária estadunidense de longa data, tais como Walt Whitman (A Song of The
Open Road) e Robert Frost (The Road Not Taken), entre outros.
Thelma e Louise, entretanto, não são as únicas subversivas
dos filmes de estrada. Priscila – A Rainha do Deserto, Para Woog Foo – Obrigada
por Tudo e Somente Elas são alguns casos que surgiram na esteira da aventura
feminina dirigida por Ridley Scott. No caso do último, um road movie divertido
e dramático em proporções semelhantes, três mulheres viajam pelo país numa fuga
semelhante e acabam por ter uma experiência de amizade muito forte, com direito
a punição no final (morte de um dos personagens), afinal, em narrativas assim,
em épocas como essa (o turbulento inicio dos anos 1990), era preciso pagar o
preço por tamanha ousadia.
Antes de adentrar na esfera contextual de Thelma e Louise,
portanto, cabe ressaltar que é importante perceber que apesar de Scott nunca
ter levantado oficialmente uma bandeira favorável ao movimento feminista, é
fato que em suas obras, as mulheres encontram espaço para serem fortes e
determinadas (basta lembrar-se da determinada Tenente Ripley, imortalizada pela
ótima Sigourney Weaver, em Alien – O 8º Passageiro).
Em 1991, a sociedade estadunidense estava bastante agitada
(como sempre). A Guerra Fria havia alcançado o seu fim nos momentos derradeiros
do segundo mandato do controverso Ronald Reagan. George H. W. Bush estava em
alta com a popularidade alcançada com a Guerra do Golfo, mas logo perdeu espaço
para Bill Clinton, haja vista a crise econômica que acometia a nação símbolo
maior do capitalismo no mundo contemporâneo. A economia, a política e a
religião eram uma das pautas mais constantes da mídia: nas bases desta tríade,
o papel desenvolvido pela mulher em cada um destes espaços era motivo de
debate. O filme, então, veio como um importante combustível para alimentar as
chamas destas discussões.
Neste ano, a jornalista Susan Faludi causou furor na mídia
com o artigo Backblash: The Underclared War Against American Women, pois trouxe
à tona alguns mitos sobre a mulher, o mercado de trabalho e a família, além de
denunciar o jornalismo como um dos culpados por espalhar falácias sobre a
mulher e a sua relação conflituosa com a sociedade machista. Ainda em 1991, o
artigo The Beauty Myth: How Images of Beauty are Used Against Women, publicado
por Naomi Wolf, problematizava os meios de comunicação, criticados por estarem
aliados a outras facções da sociedade, numa espécie de golpe contra os direitos
das mulheres.
Na mesma época, o AAUW (American Association of University
Women) publicou um relatório apontando o sistema de educação como um dos
responsáveis por desencorajar as mulheres a terem sucesso acadêmico,
especialmente em áreas tecnológicas e no campo das ciências exatas, tais como a
Matemática. Assim, percebemos que a década de 1990 não começou nem um pouco
fácil para as questões de gênero. Era preciso muita luta, e o cinema, por sua vez,
colaborou bastante com as discussões.
Diante do exposto é possível perceber que Thelma e Louise é
um dos casos raros no sistema de produção hollywoodiana: o protagonismo
machista é deixado um pouco de lado, com
o foco no desenvolvimento de duas personagens que evoluem ao passo que os fatos
surgem na tela. O filme causou controvérsias pelo fato de duas mulheres estarem
num gênero dominado por homens. Por isso, colecionou críticas positivas e
negativas, balizadas pelas polêmicas que pendiam a narrativa para todos os
lados.
Ao longo dos seus 129 minutos, Thelma e Louise mostra-se uma
narrativa sobre emancipação que encanta e nos faz refletir, nos dias atuais,
sobre os papeis que foram determinados para as mulheres encenarem na sociedade:
o lado coadjuvante da cena, sempre à sombra das vontades de uma existência que
gravita em torno do patriarcalismo. Elas mostraram que seriam diferentes, mesmo
tendo que pagar o preço que pagaram.
O filme ganhou o Oscar e o Globo de Ouro na categoria Melhor
Roteiro Original. No caso da primeira cerimônia, teve o prestígio de ser
nomeado aos prêmios de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz (Geena Davis
e Susan Sarandon), Melhor Edição e Melhor Fotografia. Com mais de duas décadas
e profusão de narrativas que tentam emular a sua fórmula, o filme ainda
continua forte: é bastante citado no bojo dos estudos acadêmicos, bem como nas
reportagens sobre liberdade feminina.
Thelma & Louise (Thelma and Louise) – EUA, 1991.
Direção: Ridley Scott.
Roteiro: Callie Khouri.
Elenco: Geena Davis, Susan Sarandon, Harvey Keitel, Brad
Pitt, Michael Madsen, Christopher McDonald, Stephen Tobolowsky, Timothy
Carhart.
Duração: 129 min.
Texto e imagem reproduzidos do site: planocritico.com
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