Publicado originalmente no site Plano Crítico, em 27 de fevereiro de 2018
Crítica | Acossado (1960)
Por Guilherme Almeida *
Acossado (1960), de Jean-Luc Godard, é um daqueles filmes
que deveriam fazer parte do currículo básico escolar. Essa obra emblemática,
primeiro longa feito pelo diretor francês, é a tal nível genial e tão
incrivelmente ousada que assisti-la, mesmo nos dias de hoje, ainda causa
espanto e estranhamento. O filme é um presente embrulhado para todo os
estudantes da “sétima arte”. Abastado de quebras da quarta parede, sequências
fragmentárias, jump cuts, atuações farsescas e raccords heterodoxos, é
resultado da disposição nutrida por seu diretor de arejar as formas artísticas
cinematográficas já embotadas e cristalizadas num ramerrão gasto. Godard foi
integrante da Nouvelle Vague, geração de novos autores que tiveram seu
amadurecimento teórico nos anos 50 enquanto escreviam na prestigiadíssima
revista francesa Cahiers du Cinéma e que, no final dessa década ou no princípio
dos anos 60, empunharam as câmeras e revolucionaram o cinema não só local, mas
mundial, com sua juventude avassaladora, sua iconoclastia, sua irreverência
infatigável.
Sendo absurdamente consciente da linguagem que manipula, o
cineasta transforma esse seu primeiro longa em grandioso experimento, ruptura
com uma certa tradição cinematográfica francesa de filmes de estúdio, alusão e
homenagem ao cinema americano que tanto o influenciou. A propósito, o
intelectual Godard articula, em Acossado, referências culturais múltiplas,
passando do universo musical (Mozart e Brahms) ao literário (Faulkner, Rilke,
Dylan Thomas), indo para as artes plásticas (Pierre-Auguste Renoir), chegando
no cinema (filmes B, noir, policiais).
Nunca me esquecerei das surpreendentes cenas dentro de um
carro roubado em que os personagens principais estão a conversar. Michel
Poiccard (Jean-Paul Belmondo) dirigindo, Patricia Franchini (Jean Seberg) a seu
lado. Como filmá-los, afinal? Os mais conservadores sugeririam a técnica do
plano/contraplano, conhecida pelos íntimos como “montagem pingue-pongue” porque
enfoca um ou outro ator, num movimento intercalado mediado pelo corte. Seria
possível, dirão outros, manter a câmera parada e mantê-los ambos ao mesmo tempo
no quadro, ou ainda movimentá-la sem cortar a sequência e dar atenção ora a um,
ora a outro dos interlocutores. Mas, não, Godard não escolhe nenhuma das
alternativas anteriores, ele faz justamente o mais contraintuitivo, o mais o
mais estranho, o mais incomum dos procedimentos: corta a cena, mas não passa a
bola para outro ator, pelo contrário: volta ao mesmo espaço e ação anteriores.
Destaco esse recurso por seu incrível poder metonímico,
sendo ele representativo das experimentações formais do estilo godardiano. O
expediente é revolucionário do ponto de vista da linguagem do cinema porque
subverte os usos tradicionais da montagem. Foi convencionado que o corte faz um
pulo de um núcleo imagético a outro; ele introduz uma novidade visual, ele
implica descontinuidade e interrupção temporária do mundo mostrado pela câmera.
Porém, no caso em apreço, Michel não é mais filmado, todo o olhar se concentra
em Patricia. A suspensão da imagem significa um renovado salto em sua nuca, e
de novo, e de novo, e de novo… A câmera, numa espécie de correlato
cinematográfico do discurso indireto livre, típico da literatura, não se
comporta mais como objetiva que apreende o mundo de modo neutro; antes, ela é
eivada pela psicologia de Michel, emula em sua conduta os desejos eróticos do
protagonista.
Digo “psicologia de Michel”, mas talvez a expressão seja
inadequada, pois denota uma individuação do protagonista. Jean-Paul Belmondo
corporifica, antes de tudo, um personagem tipo, representativo de toda uma
tradição fílmica que formou a cinefilia de Godard. Michel é a síntese de vários
anti-heróis norte-americanos ao mesmo tempo encantadores e moralmente
nebulosos. Contraventor “pé de chinelo”, apaixonado pelas mulheres, inconstante
e imaturo, o personagem é também fã do grande ator Humphrey Bogart, e a todo
momento imita o tique bogartiano de roçar o polegar nos lábios. Além disso,
Michel é fumante inveterado e está sempre atento aos jornais (de que novo crime
será que as páginas policiais o acusarão?). Com muita facilidade pode-se notar
que há algo de deliberadamente artificial e falso na interpretação de Belmondo.
Por via dela, Godard pratica uma réplica do efeito brechtiano de
distanciamento, através do qual o ator não incorpora totalmente o personagem
numa atuação ilusionista. Godard nos lembra a cada minuto o caráter de
construto da atuação, sua natureza falsa; em paralelo, ele desnuda abertamente
suas referências fílmicas pela efígie estereotipada de seu protagonista.
Patricia Franchini, por sua vez, não poderia ter
comportamento mais estranho. O seu papel é amoral, indefinido e indecifrável
feito Esfinge. Nem nós nem ela sabemos o que ela quer. A sua relação com Michel
depende, para prosseguir, de decisões mais assertivas, mas Patricia não consegue
escolher entre a definição e a recusa. Ficará na França ou irá para a Itália
com o amante? Dormirá ou não com ele? Ela toma uma resolução final tão
repentina — a de delatar Michel para a polícia — que parece ter sido resultado
de mero acidente, acaso da vida, sem causa explicitada. E é essa, precisamente,
uma das marcas recorrentes do desenrolar de ações dessa obra genial: tudo se
desenvolve não, como queria Aristóteles, segunda as leis da probabilidade e
necessidade, mas como quer Godard, ou seja, segundo o afrouxamento de regras, o
incidental, o inesperado, o sem razão.
Um exemplo que demonstra essa lógica da contingência (como
substituta das normas de necessidade e dedução que guiam os filmes normais) é o
crime cometido por Michel e pelo qual ele é perseguido por toda a extensão da
fita. O diretor acelera tanto o assassinato que consegue esvaziar todo seu teor
de dramaticidade. O policial morreu como tomba uma árvore; fato normal, a vida
segue, o espectador quase não se apercebe da gravidade do evento.
Contrariamente, a morte de Michel, no fim do filme, é infinitamente distendida,
ele corre sem parar, sua queda é operística: Godard nos ensina que cinema é
manipulação do tempo e logro do público, que os fatos não são fatos, mas
recortes subjetivos do artista com vistas a um fim expressivo.
À altura das cenas finais, o criminoso quase morto olha para
Patricia e gestualiza três caretas. Anteriormente, ele já fizera isso e
Patricia o imitara. Agora, ela fita diretamente a câmera e repete o trejeito de
Bogart. Estabelece, desse modo, uma cadeia de reiterações que vai do ator
americano, passa pelo francês Michel e, finalmente, chega nela, também dos
Estados Unidos. Descrevo o processo com detalhes porque penso ser esta a
imagem-síntese da gênese e da importância da Nouvelle Vague: um grupo de
artistas que bebe da fonte do cinema dos EUA, repete-o criativamente e,
revertendo o fluxo das influências, forma gerações de cineastas do outro lado
do Oceano Atlântico. Acossado, Os Incompreendidos, Hiroshima, Meu Amor e muitos
outros tornam vasto o legado desta nova onda estética, que alcança seus
tentáculos em diretores que vão de Arthur Penn a Quentin Tarantino, e ao
infinito e além. Que o ar fresco inspirado pelos “jovens turcos” continue sendo
encontrado em muitos e muitos pulmões alheios.
Acossado (À bout de souffle) - França, 1960
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard, baseado em história de François
Truffaut
Elenco: Jean-Paul Belmondo, Jean Seberg, Daniel Boulanger,
Henri-Jacques Huet, Roger Hanin, Van Doude, Jean-Pierre Melville, Jean-Luc
Godard
Duração: 90 min.
* GUILHERME ALMEIDA > Estudante de Letras e apaixonado por
literatura e cinema, acho Crime e Castigo o auge da inteligência humana, não
consigo assistir Tarkovski sem acender uma vela e me emocionar, e toda vez que
vejo Taxi Driver me olho no espelho e lanço um “You talking to me?”. Se por uma
desgraça cósmica preciso passar um dia sem contato com a Arte, sofro de
profunda abstinência e preciso ser amarrado numa camisa de força. Nesses
momentos, não se aproximem.
Texto e imagem reproduzidos do site: planocritico.com
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