Billy Wilder e Jack Lemmon durante a
rodagem de ‘Quanto Mais Quente Melhor’.
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 11 ABR 2019
A comédia que rompeu com o conservadorismo nos EUA faz 60
anos
Livro revisita 'Quanto Mais Quente Melhor', de Billy Wilder,
considerado uma comédia perfeita.
O filme contou com Tony Curtis, Jack Lemmon e Marilyn
Monroe.
Por Gregorio Belinchón
Nunca tiveram um bom final, e decidiram manter o que estava
escrito, que copiava o fecho de uma piada famosa na época. Aquele “Ninguém é
perfeito” que Joe E. Brown responde a Jack Lemmon quando este lhe revela que
não é uma mulher — como aparenta por seu disfarce de Dafne —, e sim um homem,
Jerry, é o encerramento de uma comédia perfeita, Quanto Mais Quente Melhor,
cuja estreia nos EUA completa 60 anos em 2019. Obra de um cineasta excepcional,
Billy Wilder, que, como dizia sua esposa, tinha o cérebro cheio de navalhas de
barbear. Wilder era rápido de língua, vivaz nos roteiros, e discípulo
avantajado de Ernst Lubitsch. Desse coquetel surgiram alguns dos maiores filmes
da história: Se Meu Apartamento Falasse, Crepúsculo dos Deuses, Sabrina, Farrapo
Humano, Cupido Não Tem Bandeira, O Pecado Mora ao Lado...
Como conta no início do volume Joaquín Vallet, não há como
entender Wilder sem Lubitsch, mas por outro lado chegou mais longe, incluindo
muitos elementos políticos e sociais onde o primeiro jogava só com a sedução.
Esse toque Lubitsch era algo que “Wilder tentou definir da seguinte maneira:
‘Não se pode dar tudo mastigado ao público, como se ele fosse tonto.
Diferentemente de outros diretores que dizem que dois mais dois são quatro,
Lubitsch diz dois mais dois... e isso é tudo. O público tira suas próprias
conclusões.”
Wilder rodou Quanto Mais Quente Melhor no final dos anos
cinquenta, depois de Testemunha de Acusação e antes de Se Me Apartamento
Falasse. Ali começou sua parceria com Jack Lemmon, com quem faria outros seis
filmes, e com o roteirista I. A. L. Diamond. Este e Wilder já tinham trabalhado
juntos em Love in the Afternoon; depois, Wilder recorreu a outros autores em A
Águia Solitária e Testemunha de Acusação, e voltou ao talento de Diamond em
Quanto Mais Quente Melhor. Nunca mais se separaram.
Tony Curtis e Marilyn
Monroe, na rodagem em San Diego.
A fonte de inspiração procedia do cinema, da comédia alemã
Elas Somos Nós (1951), que por sua vez se baseava num filme francês, Fanfare
d'Amour, de 1935. Em ambos os títulos os músicos protagonistas se disfarçavam
por fome, e travestidos se envolviam com uma garota sexy. Wilder e Diamond
venderam a ideia aos irmãos Mirisch — produtores forrados de dinheiro graças a
seus investimentos nas balas e chocolates Hershey —, que aprovaram um orçamento
num valor equivalente a 13 milhões de reais atuais, mesmo sem ter elenco
definido. E um belo dia, em fevereiro de 1958, Wilder se aproximou da mesa que
Jack Lemmon ocupava no restaurante Domick’s e lhe soltou: “Tenho uma ideia para
um filme e eu gostaria que você participasse. Agora não tenho tempo, mas te
digo do que se trata. São dois homens que fogem de uns gângsteres porque suas
vidas correm perigo, se disfarçam com roupa de mulher e se unem a uma orquestra
feminina”. Wilder e Diamond trocaram a fome pela morte, ou melhor, pela ameaça
de serem assassinados, e por isso transferiram a ação para a Chicago de 1929,
na matança do dia de São Valentim, da qual os dois protagonistas são
testemunhas.
Tony Curtis, na sequência da banheira.
Segundo Tony Curtis, no elenco estavam ele, Frank Sinatra e
Mirzy Gaynor como trio protagonista. Wilder custou a convencer os irmãos
Mirisch de que Lemmon era a melhor opção depois da deserção de Sinatra, que nem
sequer foi às reuniões marcadas com o cineasta. E quanto a Marilyn Monroe,
entrou no projeto após recordar por carta ao diretor como havia sido feliz
trabalhando em O Pecado Mora ao Lado. E Wilder deixava claro: “O papel de Sugar
era o mais fraco, então o truque era que fosse interpretado pela atriz mais
forte”. Monroe assinou contrato após ler um resumo e sem notar que o filme
seria em preto e branco, quando em seus contratos exigia filmar em cores. O
preto e branco foi usado para mascarar a maquiagem de Lemmon e Curtis. A atriz
concordou, em troca de um salário de 200.000 dólares mais 10% da renda bruta.
Curtis recorda em suas memórias: “Billy nos enviou para o
banheiro feminino do estúdio. Lá nos pusemos diante de um espelho para que nos
retocassem a maquiagem enquanto as garotas entravam e saíam. Nós as
cumprimentávamos e elas nos correspondiam com risos. Depois de um momento, sai
a última, eu digo ‘Tchau!', e ela me olha e diz: 'Até logo, Tony'. Ainda morro
de rir”. No dia seguinte, melhorada a maquiagem, nenhuma mulher os reconheceu,
achando que eram figurantes de algum filme de época. “A ideia geral era que eu
acentuasse um estilo Grace Kelly, e Jack... bom, Jack devia se aproximar de uma
prostituta.”
George Raft e Jack Lemmon, dançando tango.
A rodagem, que começou em 4 de agosto de 1958, foi um
inferno por culpa de Marilyn Monroe. Para o plano em que bate a uma porta e
diz: “Sou eu, Sugar”, foram necessárias 47 tomadas. Wilder chegou a lhe
escrever a frase em uma lousa. Mas a lenda cresce no momento em que, no hotel,
Sugar entra num quarto e, enquanto remexe suas gavetas, pergunta: “Onde está o
bourbon?”. Quatro palavras. Começaram pela manhã, continuaram pela tarde e
encheram as gavetas com letreiros com essa frase. Segundo algumas fontes,
rodaram 59 tomadas; outras aumentam para 83. E, ainda assim, no filme Monroe
está de costas, truque para acrescentar sua frase em pós-produção. Wilder
contava isto sobre a atriz: “Tenho uma tia velha em Viena que estaria no set às
seis da manhã todo dia, e seria capaz de recitar os diálogos inclusive de trás
para frente... mas quem iria querer vê-la? De todo modo, enquanto todos na
equipe esperávamos Marilyn, não perdíamos completamente o tempo. Inclusive
pudemos adquirir cultura; eu, sem ir mais longe, tive a oportunidade de ler
Guerra e Paz e Os Miseráveis”.
Uma das fotos de
divulgação de Curtis e Lemmon
com Sandra Warner, a quem depois
se sobrepôs o
rosto de Monroe
Em setembro, quando se transferiram ao Hotel Coronado, em
San Diego, que recriava as paisagens externas de uma praia da Flórida, a coisa
piorou. Ao séquito de Monroe, encabeçado por Paula Strasberg como consultora de
interpretação, somou-se um ginecologista, Leon Krohn. A atriz estava grávida e
tinha medo de voltar a perder o possível filho, como já havia lhe ocorrido em
ocasiões anteriores. Por isso o dramaturgo Arthur Miller, seu marido, pediu a
Wilder que a atriz trabalhasse só pelas manhãs. “Disse que estava muito
esgotada para se submeter ao trabalho ao ar livre sob o sol da tarde. ‘Pela
manhã? Se nunca aparece antes do meio-dia! Arthur, traga-me ela aqui às nove, e
às onze e meia você pode levá-la embora!'. Trabalhávamos com uma bomba-relógio,
somávamos 20 dias de atraso, e sabe Deus quanto do orçamento já tínhamos
estourado [ao final esse estouro superou 500.000 dólares], e ela tomava um
monte de comprimidos. Mas trabalhávamos com Monroe, e ela era uma loira platinada...,
e não só pelo cabelo, nem por seu sucesso de bilheteria. O que você via na tela
não tinha preço”, comentava o diretor.
Como exemplo da imensa inteligência de Wilder, na sequência
em que Jerry conta a Joe que está namorando um milionário, o diretor deu
maracas a Lemmon. Cada vez que diz uma piada, as toca como reflexo de sua
felicidade. Na verdade, faz isso para que o público possa rir e não abafar a
piada seguinte.
Marilyn perdeu o bebê em 16 de novembro e sua relação com
Wilder se deteriorou. Por isso, nas fotos promocionais do filme, Jack Lemmon e
Tony Curtis posam com uma loira que não é Monroe, mas Sandra Warner, uma das
garotas da banda, cujo rosto foi mais tarde substituído pelo da protagonista.
Mas Monroe participou da turnê promocional do filme em fevereiro e março,
primeiro em Nova York e depois pelos Estados Unidos, e se comportou de maneira
profissional. A turnê não passou pelo Kansas, onde o filme foi proibido por ter
sido considerado “perigoso”.
Depois de bilheterias iniciais fracas, o filme ganhou uma
incrível quantia de dinheiro. Quando saiu de cartaz quatro anos depois, tinha
ultrapassado os 8 milhões de dólares. Com os lucros, Wilder aumentou sua coleção
de arte com uma pintura e um desenho de Paul Klee, um quadro de Egon Schiele e
outro de Braque. Como Teresa Llácer arremata no livro, “Some Like It Hot se
revela como uma rachadura no muro conservador da dupla moral norte-americana
sobre o sexo, o amor e o travestismo que rompeu grande parte dos preceitos da
censura para acabar arrasando nas bilheterias e se tornando uma das melhores
comédias da história do cinema”.
Sequência final em
que Lemmon dispara:
“Você não está me entendendo, Osgood.
Sou um homem!”.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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