Para entender Bergman (ou começar)
Por Carolina Carmini
Poucos diretores imprimem sua marca e transformam suas
películas em obras de arte. Trabalhos capazes de tocam a quem assiste de
maneira tão profunda e irreversível que alteram sua percepção da própria vida.
Ingmar Bergman é um desses exemplos. Suas obras estão repletas de poesia e são
de extrema complexidade. Mas não fuja. Assistir os filmes de Bergman é uma
experiência pessoal, única e uma oportunidade para conhecer intimamente o
diretor.
Ingmar Bergman (1918 — 2007) é um dos maiores cineastas da
história. Sua produção foi extensa, mais de cinquenta filmes e roteiros – entre
os anos de 1946 a 2003 - intercalados por uma série de trabalhos para
televisão, sem contar peças de teatro. Bergman faz parte da geração de
cineastas que surgiram após à II Guerra Mundial, que despontaram mundialmente
com seus filmes de narrativas mais complexas, explorando ao máximo a linguagem
cinematográfica. Histórias um pouco diferentes das que dominavam as telas do
mundo - com exceções, brilhantes, logicamente - histórias que fugiam das
conclusões previsíveis e finais palatáveis. É neste período que surgem o
neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague, o cinema novo, entre outros
movimentos.
A densidade do pensamento de Bergman vem da própria cultura
e sociedade nórdica. Não é possível compreender sua produção sem pensar na
tradição teatral sueca e nórdica em geral, de Henrik Ibsen (1828-1906), Søren
Kierkegaarg (1813-1855) e August Strindberg (1849-1912). A produção de uma
sociedade avançada, no aspecto material, permitiu a concentração incisiva nos
problemas mais angustiantes e existenciais do homem moderno.
O que atrai em sua obra é o modo como Bergman trabalha com
temáticas delicadas e de forte carga existencial: a solidão, a religião
(resultado de sua criação religiosa), a morte, o erotismo com toda sua
violência e impotência, a racionalidade mesclada nos mais diversos absurdos. Na
atualidade, seus filmes causam estranheza e são por vezes difíceis de
compreender - e ainda permanecem extremamente atuais.
De seus filmes saíram atores consagrados que conquistaram o
mundo, como Max von Sydow, Bibi Andersson e Liv Ullmann. Como técnica, temos o
flashback, ferramenta essencial em suas narrativas e que se tornou uma
característica em seus filmes, assim como a interação do ator diretamente com a
câmara, como se estivesse dialogando ou olhando para o espectador. Elementos e
pessoas que ajudaram Bergman a construir seu cinema.
Sétimo Selo (1956), filme que representa o auge da
genialidade do diretor, foi baseado numa peça de teatro escrita pelo próprio
Bergman. O filme demonstrou alguns dualismos vividos por Ingmar, em torno das
crenças religiosas herdadas do pai, um pregador luterano autoritário. A questão
da fé e as consequências existenciais do enfrentamento de fé e filosofia são
reflexões que Bergman extraiu do pensamento de Kierkegaard e desenvolveu
através da torturante e angustiante dúvida e da fé em Deus, questão essencial
da existência humana.
Esteticamente, o grande trunfo foi realizar o filme em
branco e preto - como outros filmes seus do período - ainda que na época já
houvesse filmes coloridos. Uma escolha perfeita para a atmosfera de desespero e
desolação da Idade Média, que potencializou as cenas da queima da bruxa e das
pessoas flageladas.
Já em Morangos Silvestres (1957), Bergman entra no mundo da
subjetividade para traduzir a jornada para a compreensão do sofrimento e a
busca pela reconciliação com seu passado e presente. Vemos um dia na vida de
Isak Borg em um road movie existencial, onde a memória, o onírico e o real se
entrelaçam e evidenciam a angústia do personagem e a sua tentativa de se
reconstruir a si mesmo e suas relações.
Em Persona (1966), Bergman trabalha questões existenciais, a
metáfora do cinema e do teatro, e a própria realidade por meio de cenas de puro
simbolismo. Os tons cinza ajudam a criar a atmosfera de frieza e isolamento das
personagens.
A personagem principal, Elisabeth, é uma famosa atriz que
durante a apresentação da peça Electra toma consciência da mentira em que vive
e decide não mais mentir - e para isso cala-se. Por isso, o som e o silencio
são instrumentos utilizados para acentuar o suspense ou a dramaticidade de cada
cena e criar o ritmo da película. O título do filme remete ao teatro (o termo
persona provém da máscara usada nas tragédias gregas).
Em Gritos e sussurros (1972), a questão exaltada é a
impossibilidade de separar a dor física da dor mental, vendo a mente e o corpo
como um elemento único. A dor da personagem de Agnes existe. Perpassa seu ser,
nasce e morre nas relações familiares com sua mãe no passado e suas duas irmãs
no presente. Irmãs que também sofrem, mas que, diferentemente de Agnes, não
percebem de onde pode vir o alivio para a dor incessante: o amor e o afeto.
Apenas Anna, a governanta - menosprezada pelas irmãs – é capaz de dar alívio
físico e mental a Agnes.
Karin, uma das irmãs, chega ao ponto de automutilar-se para
evitar o contato do marido. Enquanto Marie é indiferente à tentativa de
suicídio do marido quando este descobre que foi traído por ela. Nenhuma das
irmãs é má - Bergman não trabalha com bem versus mal -, são apenas impotentes
diante da dor própria e alheia. A própria cor vermelha, onipresente no filme, é
a visão que possui da alma humana.
Estes são apenas quatro filmes de sua extensão produção, mas
o suficiente para perceber a complexidade e profundidade da alma de Bergman, e
principalmente como sua obra é atemporal e capaz de tocar a todos.
Texto e imagem reproduzidos do site: obviousmag.org
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