quinta-feira, 16 de maio de 2019

Memória apagada, a culpa não foi do nitrato

Destroços do pavilhão incendiado/Foto UOL

Publicado originalmente no site Observatório da Impresnsa, em 09/02/2016 

CINEMA BRASILEIRO 

Memória apagada, a culpa não foi do nitrato
Por Norma Couri 
 
Uma semana antes do Carnaval o fogo comeu 1000 rolos de filmes, a maioria de cine-jornais anteriores à década de 1950, 17 curtas-metragens e pelo menos um longa-metragem do fantástico acervo de 44 mil títulos do cinema brasileiro.Trata-se do maior acervo de imagens em movimento da América Latina, incluindo imagens da primeira TV brasileira, a TV Tupi, com reportagens históricas dos telejornais da época. Pelo incêndio, acusaram o material dos filmes, o nitrato de celulose, coitado! O grande culpado é o governo, o descaso com cultura, o corte de pelo menos 30% do orçamento para a área no ano passado e o nem-se-fala-em-quanto cortar neste ano de 2016.

Em quase 60 anos foi o quarto incêndio da Cinemateca Brasileira (1957,1969,1982) e vamos esperar sentados por mais um. O Brasil, tal como o líder nazista Herman Goering (1893-1946), quando ouve a palavra cultura saca logo o seu revólver.

Há dois anos este refúgio de cinéfilos paralisou com a desoneração do diretor Carlos Magalhães (2002-2013). Houve troca-troca de Ministros da Cultura e de secretários de Audiovisual, novas auditorias da Controladoria Geral da União. Também novas acusações de falta de controle do MinC sobre a execução dos recursos disponibilizados (R$ 105 milhões em 2008, embora as contas fossem apresentadas anualmente). A Sociedade de Amigos da Cinemateca sempre contestou as acusações que nunca bateram com as auditorias internas.

Acervo da Cinemateca/Foto Navvot.blogspot.com

O então presidente Leopoldo Nosek e o presidente do Conselho, Ismail Xavier, negaram as irregularidades. Mas ao que todos assistiam eram resoluções nunca implantadas, planos de digitalização que não saíam do papel, caixa bloqueado, recursos congelados e a forçada demissão em massa (65 de 132 funcionários, muitos formados na Cinemateca, foram para o olho da rua). Entre leis em tramitação no Senado e novas trocas de coordenadores –gerais interinos, quem segurou a instituição nas costas foi a pesquisadora mais antiga da Cinemateca, Olga Futema, atual diretora interina que abriu mão da aposentadoria.Todos haviam sido surpreendidos com a publicação no Diário Oficial de um novo regimento interno.

“Quebraram a espinha num momento de excelência”, disse o ex-diretor, professor da USP e atual conselheiro Carlos Augusto Calil, perplexo com as insinuações, segundo ele, nascidas de ressentimentos mal explicados de um ex-conselheiro não re-eleito. “A SAC (Sociedade dos Amigos da Cinemateca) começou como entidade privada, tornou-se pública e tem mais de quatro décadas de atividade na Cinemateca — que se mantém graças a ela”.

Outra pesquisadora, professora da USP e conselheira, Maria Dora Mourão, nunca se conformou com a forma como o episódio foi conduzido. “Parecia que estávamos nos locupletando com tanto dinheiro…”. A partir daí todas as iniciativas de reconstrução anunciadas deram para trás. “No pior cenário, a Cinemateca voltará a se preocupar a cada ano com a sua sobrevivência”.

Sede da cinemateca em São Paulo
Foto trilhosurbanos.com

Desde então o filme em cartaz foi o das mobilizações e promessas de repasses, propostas de mudanças de modelo da gestão de Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) para OS (Organização Social, com mais agilidade na busca de investimentos), ciclos e festivais adiados, programação pela metade, crise, apenas um monitor para apoio ao Cine-Educação, um único projecionista e só uma das salas de exibição em funcionamento.

Mas o que mais se temia, aconteceu!

O retrocesso prejudicou o ritmo de trabalho de preservação, catalogação, restauração, documentação, trabalhos de laboratório de imagem e som, o funcionamento da biblioteca que detém documentação preciosa – folhetos, fotos, cartazes raros—e está fechada. A Cinemateca, sempre gerida por gente da casa com idealismo e aquilo que a burocracia não entende –amor ao cinema — paralisou. O prédio é tombado pelo Condephaat, e a Cinemateca, responsável pela produção de audiovisuais.

Atos públicos apontaram a falta de sensibilidade do governo. Chamaram atenção para a realidade de uma Cinemateca como a Brasileira funcionar com apenas 20 funcionários, entre eles dois motoristas e 17 em vias de pedir a aposentadoria. O contrato dos 24 técnicos contratados pela SAC terminou há dois anos.

Assim mesmo a Cinemateca recuperou o filme Limite de Mário Peixoto (1931), Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1969), Xica da Silva, de Cacá Diegues (1976). E quando viu restaurado Cabra Marcado para Morrer (1985), Eduardo Coutinho alertou para o escândalo de não se atentar para a conservação dos filmes do país. “Tem filmes de dez anos atrás que está liquidado, a Cinemateca tem de voltar a ser o que era”, disse o cineasta. Coutinho foi assassinado pelo filho no ano passado e a Cinemateca pegou fogo este ano.

Filmes de Glauber Rocha restaurados 
na Cinemateca/festivalmarginal.com.br

O governo sempre negou a crise. Na época a Ministra da Cultura era Marta Suplicy. Mudou o governo, começaram os planos para recuperação dos cine-jornais históricos da companhia Atlântida (estarão entre os queimados neste incêndio?). Houve pregões para contratação de empresas, readmissão dos funcionários… nenhum requisito cumprido. Ditos e desmentidos, pronunciamentos equivocados, realização duvidosa de projetos de parceria com pastas da Cultura e Ciência, Tecnologia e Educação e a implantação de cinemas em universidades para exibição do acervo da Cinemateca

O ministério da Cultura declarou esta semana outro plano: o de que não tem plano para evitar novos incêndios. O novo secretário de Audio-Visual, Pola Ribeiro, justificou a ausência de seguro. “Que Seguradora asseguraria um prédio com nitrato de celulose, e quanto cobraria? É quase uma morte anunciada”

Fundada em 1940 pelos estudantes de Filosofia Paulo Emilio Sales Gomes, Antonio Cândido de Mello e Souza e Décio de Almeida Prado, a Cinemateca, então Cine Clube, foi fechado pelo departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas mas conseguiu a oficialização em 1946.

Em 1954 os cinéfilos viveram o maior festival de cinema do país durante o IV Centenário, com a presença de Errol Flynn e do diretor Eric von Stroheim, que viu no extinto cinema Marrocos a estréia de seu filme A Marcha Nupcial, assistido por 4 mil pessoas ate penduradas até do lado de fora.

A Cinemateca ficava no topo de um prédio de 13 andares que pertencia aos Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Foi financiada pela família de Cicicllo Matarazzo, dirigida pelo filho de Oswald de Andrade e Pagú, Rudá de Andrade, sempre com a orientação de Paulo Emilio Salles Gomes.

“Não é possível esquecer”, diz Nelson Pereira dos Santos, “cinéfilos chegavam de toda parte, Glauber, Jean-Claude Bernadet, Vladimir Herzog…” O produtor e cineasta Maurice Capovilla lembra que Rudá organizava festivais de expressionismo alemão, nouvelle vague, o novo cinema polonês. “À frente da Cinemateca, foi o grande transformador da nossa geração de cineastas. Mais tarde tentamos atrair operários no Núcleo de Cinema do Centro Popular de Cultura, o CPC, frequentado por Jabor, Cacá Diegues, Ferreira Gullar, Vianinha”. Um verdadeiro agitador cultural.

Depois de sucessivos incêndios e sete mudanças de sede, conseguiu-se em 1957 um espaço no antigo matadouro de carnes, doado pelo então governador Jânio Quadros.

Seria a sede definitiva da Cinemateca Brasileira na Vila Clementino, que Rudá assumiu para fazer a reforma, conservar os filmes, organizar o Conselho, atrair cineastas. “Tudo o que a gente queria era uma atmosfera para criar cinema”. Para preservar o acervo, na ditadura, por medo de que os militares queimassem tudo, a Cinemateca fazia intercâmbio com a cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, cada uma com a cópia de todos os filmes da outra, por garantia. “A Cinemateca era um Centro de resistência, o DOPS vivia atrás do nosso fichário. Um dia queimamos mais de 2000 nomes e eles nunca pegaram”.

Os amantes do cinema fizeram tal qual o arquivista e pioneiro na preservação de filmes da Cinemateca francesa, Henri Langlois, que na véspera da Ocupação alemã na França escondeu latas e latas de filmes nos esgotos de Paris.

Depois que deixou a Cinemateca, Rudá nunca se recuperou da perda e lastimou não fazer parte da equipe até morrer aos 78 anos em 2009. O que ele mais queria era reviver a atmosfera de amor ao cinema como aconteceu no começo de tudo. Até hoje é Conselheiro Emérito.

Os cinéfilos podem dizer que viveram uma atmosfera parecida até a intervenção do MinC no final de 2012. Mesmo durante a última e 39ª. Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, no ano passado, o público assistiu a mais de 30 filmes na única sala em funcionamento, a BNDS, incluindo Limite. Mas o ponto alto foi a apresentação com música ao vivo, na área externa, de um dos primeiros filmes de Alfred Hitchcock, O Inquilino (1926), dado como perdido, restaurado pelo BFI Nacional Archive. Um privilégio.

Este ano esta memória apagada pode ser estopim para um choque no governo. Quem sabe? Pelo menos o secretário Pola Ribeiro já reconheceu que a Cinemateca precisa ganhar um rumo seguro. “É a jóia da Coroa”. Os cinéfilos aguardam.

Texto e imagens reproduzidos do site: observatoriodaimprensa.com.br

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