Publicado originalmente no site da revista CULT, em 14 de
março de 2010
Stanley Kubrick, o cineasta das obras-primas
Por Luiz Zanin Oricchio *
Quando Stanley Kubrick morreu, em 1999, um jornalista
escreveu que agora não mais poderia viver à espera do próximo filme do
cineasta, e que com isso sua vida se empobrecera – e muito. De fato, Kubrick,
nascido em 26 de julho de 1928, em Nova York, é um dos poucos cineastas (eu
diria mais, um dos poucos artistas) contemporâneos capazes de causar esse tipo
de impressão, de que seu desaparecimento implica uma limitação às nossas
expectativas estéticas e mesmo em nossa compreensão do mundo. E que outra coisa
dizer de um diretor que legou peças de antologia como 2001: Uma odisseia no
espaço, Lolita, Laranja mecânica, Doutor Fantástico, O iluminado, entre outros
filmes?
Podemos fazer jus a Kubrick analisando sua carreira filme a
filme, ou tomando-a em seu conjunto. Vendo-se cada peça de maneira isolada se
constata uma grande concentração de obras-primas em uma única filmografia. A
análise geral manda dizer que o nível de qualidade raramente cai, porque,
provavelmente, o cineasta tinha, como poucos, amplo domínio sobre as diferentes
etapas do fazer cinematográfico. E não por acaso. Em um dos seus primeiros
filmes, o curta-metragem Fear and desire (1953), história de quatro soldados
perdidos entre as linhas inimigas, Kubrick foi produtor, diretor, roteirista,
fotógrafo e montador. Foi um fracasso comercial, mas muito instrutivo do ponto
de vista técnico.
Já seu magnífico noir O grande golpe (1956), história de um
assalto em um hipódromo, tornou-se grande sucesso de público, e também de
crítica. Bastante influenciado por Robert Aldrich e Max Ophuls, Kubrick
trabalha visualmente com longos planos-sequência nesse caso de um assalto
fracasso estrelado por Sterling Hayden (que curiosamente está em O segredo das
jóias, de John Huston, sobre tema semelhante). Rever esse filme sempre serve
para comprovar como Kubrick foi eclético. Dominando a forma, pôde se exercitar
com igual competência em gêneros diferentes. E, por isso mesmo, suas
obras-primas estão divididas em uma série de gêneros distintos – noir, ficção
científica, filme de época, guerra, romance, thriller etc. Conclusão: quando se
trata de um grande artista, no fundo não é o gênero que conta. O gênero apenas
se presta para o exercício de um ponto de vista, uma visão de mundo e um estilo
pessoal.
Será assim no antimilitarista Glória feita de sangue (1957)
e também no filme-histórico em que retorna à Roma Antiga, Spartacus (1960). No
primeiro, aborda um episódio vergonhoso da Primeira Guerra Mundial, que fez o
filme ficar proibido na França durante muito tempo. Usa uma fotografia notável,
que torna o conjunto das imagens parecido a uma obra de fato rodada na época em
que os fatos acontecem. E que fatos! Uma missão inútil, que termina em massacre
e ainda custa o fuzilamento dos que se recusam à carnificina. É uma denúncia do
absurdo da guerra que tem de ser citada ao lado de clássicos como A grande
ilusão, de Jean Renoir. A cena final, com a moça alemã cantando num cabaré de
franceses, é de cortar o coração.
Spartacus, cujo roteiro se deve a dois “vermelhos” da época
do macarthismo, Howard Fast e Dalton Trumbo, fala da revolta dos escravos
contra os senhores de Roma, numa clara alusão política. Além disso, o filme tem
um tratamento cru, nada convencional, e destoante da maneira como a Roma antiga
era retratada então, em melodramas cristãos moralizantes.
Um marco na carreira de Kubrick será Lolita (1962), adaptado
da obra polêmica de Vladimir Nabokov. Como se sabe, o cineasta teve de
enfrentar resistências da indústria para adaptar essa obra que mexe em tema
tabu – a pedofilia. No romance, Lolita é uma menina mesmo. No filme, aparece
mais próxima da idade adulta, na figura da adolescente vivida por Sue Lyon.
Mesmo assim, a Lolita de Kubrick não deixou de provocar reações. E, mais uma
vez, essas se devem tanto ao tema como à maneira como Kubrick coloca a câmera e
arma o plano. Por exemplo, a primeira vez que o personagem de Humbert Humbert
(James Mason) vê a sua Lolita é de uma sensualidade inesquecível, qualquer que
seja a idade da garota em questão.
Em Doutor Fantástico (1964), Kubrick voltará ao tema da
guerra, já abordado em Glória feita de sangue e ao qual retornará mais adiante
em Nascido para matar (1987). Mas, no contexto da Guerra Fria, usará de uma
fina ironia para melhor discutir o absurdo da situação em que a política parece
refém de militares alucinados. Com Peter Sellers fazendo diversos papéis
(inclusive o dr. Strangelove, do título original), Kubrick irá examinar como o
militarismo e a luta entre as então duas superpotências, estava à beira de
mandar o mundo à breca, o que de fato quase aconteceu durante a chamada “crise
dos mísseis” em Cuba, tendo como antagonistas o presidente John Kennedy e o
premiê soviético Nikita Krushev.
Já 2001: Uma odisseia no espaço (1968) não se preocupa tanto
com a corrida espacial, outra face da guerra fria entre as superpotências, mas
explora outros pontos inerentes ao desenvolvimento tecnológico acelerado: a
relação entre homem e máquina (o caso do computador Hal), ainda incipiente, e a
eterna busca humana pelas origens. O que faz dessa adaptação da obra de Arthur
C. Clarke uma ficção científica em tom metafísico e um dos filmes de visual
mais impactante da história do cinema.
Em seu filme seguinte, Laranja mecânica (1971), Kubrick
trata de outra das distopias possíveis, associada ao futuro, desta vez não se
referindo a máquinas que saem do controle, mas aos próprios seres humanos,
incapazes de dominar seus instintos. Agora é a violência sem controle, tal como
conhecemos hoje nas grandes cidades e, por paradoxo, as formas de combatê-la,
por um tipo de “tratamento psicológico” radical, conhecido nos laboratórios
como condicionamento aversivo. Mas é também a plasticidade e a força das
imagens que impressionam aqui, com sua aceleração e desaceleração de cenas de
tortura e de estupro. O filme foi proibido no Brasil durante a ditadura
militar.
Barry Lindon (1975) talvez seja o Kubrick menos amado – e há
razões para isso. Seu retrato de um escocês que usava a hipocrisia britânica
como arma social foi chamado pela crítica Pauline Kael de “bloco de gelo”. Uma
narrativa em off antecipatória e a longa descrição em imagens dos ambientes
tornam monótona essa adaptação de W. M. Thacheray para a maior parte dos
espectadores. Nesse sentido, parece ser um filme que se limita à descrição do
grand monde europeu, sem entrar no campo analítico.
Com O iluminado (1980), adaptado da obra de Stephen King,
Kubrick faz um clássico do suspense. Antológica é a interpretação de Jack
Nicholson como o escritor perturbado pela solidão do Hotel Overlook, isolado no
inverno pela neve, e que passa a ameaçar a própria família. Nesse filme, o
steadycam, dispositivo que permite produzir o efeito de câmera na mão, mas sem
oscilações, é usado de maneira intensiva. Permite algumas filmagens de arrepiar
através dos imensos corredores do hotel, quando algumas figuras do passado
parecem sempre prestes a surgir de cada canto oculto.
Em Nascido para matar (1987), Kubrick, depois de Coppola,
Cimino e Oliver Stone, volta-se para o Vietnã, essa ferida narcísica
norte-americana. Essa adaptação do romance enxuto de Gustav Hasford, The
short-timers, contém cenas que talvez tenham servido de inspiração para José
Padilha em Tropa de elite, com o treinamento sadomasoquista dos militares. É,
ainda uma vez, o retorno de Kubrick ao absurdo da guerra, mas enfraquecido em
sua segunda parte, que se utiliza de imagens clássicas e pouco surpreendentes,
fato inusitado em cineasta do nível de Kubrick. A originalidade está em mostrar
o exército não como fábrica de máquinas de matar, mas “máquinas de deixar-se
matar”, colocando a ênfase no lado sacrificial da atividade militar.
De olhos bem fechados (1999) é o título da adaptação de
Pequeno romance de sonho, de Arthur Schnitzler. É a despedida de Kubrick, que
morreu depois de ter feito a primeira versão da montagem. Interpretado pelo
então casal na vida real Tom Cruise e Nicole Kidman, mostra como a simples
confissão de um devaneio, uma insinuação fantasiosa de adultério, pode levar o
marido a uma espécie de descentramento mental. Kubrick capta bem o espírito do
romance deste contemporâneo de Freud e lhe dá a estrutura de um sonho – aspecto
que não foi bem compreendido por parte da crítica, muito comprometida com a
estética naturalista dominante. O ponto de vista é o da fantasia do personagem
de Cruise e esta não necessariamente tem a ver com a realidade objetiva. Talvez
seja, dos filmes de Kubrick, o menos compreendido, o que é uma pena.
Sua obra, relativamente sintética, marcou profundamente a
cultura cinematográfica moderna, dos anos 1950 em diante. Sem trabalhar, como
outros autores, na ruptura mais radical da linguagem cinematográfica, Kubrick
foi um cultor da forma, sempre longamente pensada em função do tema a tratar.
Talvez por esse motivo, haja sempre nele um impulso em limitar a extensão da
emoção, como se temesse o melodrama dominante em Hollywood. Por isso, não raro,
seus filmes apresentam recorte um tanto cerebral, o que não chega a ser um
defeito. Pelo menos para quem não considera o cérebro um órgão inferior ao
coração.
* Luiz Zanin Oricchio é jornalista, crítico de cinema de O
Estado de S.Paulo
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br
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