domingo, 9 de fevereiro de 2020

A literatura dentro do cinema


Bibliografia - Cinema e literatura - O Estado de São Paulo, 20/04/1991

A literatura dentro do cinema
Por José Carlos Avellar

A sinopse deste artigo diz que “a tensão entre letra e imagem, entre cinema e literatura está presente em quase todos os trabalhos de Bertolucci, especialmente em O céu que nos protege, com participação do autor do livro inspirador do filme”. Relata uma cena do filme, onde os atores (três turistas) conversam animadamente num café em Marrocos. “A movimentação no café por trás dos três turistas americanos é ação secundária, é movimento que do ponto de vista dramático não se mexe”.  Mas bem lá no fundo da cena algo se mexe sem que o espectador perceba seu movimento. Trata-se de um homem sozinho sentado noutra mesa do café. Ele traz “o rosto marcado pelo tempo com uma expressão quieta e sofrida”. Parece não fazer parte da cena, “não se parece com a gente do Marrocos nem com os outros turistas. Está ai como um figurante mal escolhido para a cena”. O homem é Paul Bowles, o autor do romance que serve de base para o filme de Bertolucci. Ele está ali “como o autor da história que está sendo contada, como o criador daqueles personagens que conversam diante dele”. É como se o autor estivesse interpretando o autor, “um personagem que não existe na ficção que escreveu para contar o que viveu de verdade com sua mulher no Marrocos” na década de 1940. Quando os turistas se retiram do café, a câmera se aproxima do rosto “deste estrangeiro nem dentro nem fora da história”. O homem faz um breve comentário e fica parado, calado. A câmera dá um close em seu rosto, “junto com uma voz sussurrada, conversa interior”, refletindo sobre a cena que acabou de passar, bem como lamentando que o começo da história ocorresse daquele modo. Trata-se de um jogo de espelhos onde o autor do livro, Bowles, se vê frente a frente com o ator John Malkovich, que interpreta o papel do autor, para falar de si mesmo. Bowles só volta a aparecer no final do filme, no mesmo café para fazer o mesmo jogo de espelhos, agora entre o autor e a personagem que ele criou para falar de sua mulher. Dá-se, então outro breve comentário/diálogo sussurrado tal como no início do filme. Bertolucci disse que pediu a Paul Bowles que apenas “mostrasse no rosto o sofrimento da memória, uma vez que o filme ocorreu 40 anos depois do acontecido e narrado em livro. Explicou, também, que “decidiu chamá-lo para este pedaço do filme porque desejava colocar a literatura dentro do cinema, em pessoa”. Pois, na adaptação “fora obrigado a eliminar tudo que existia de literatura para ficar só com a história, para chegar mais perto dos personagens”. É o que faz Bertolucci em seus filmes: “eliminar a natureza literária de um texto para melhor adaptá-los para o cinema”. Isto foi feito neste filme; em Antes da revolução (1964), inspirado em Stendhal; Partner ((1968), inspirado em Dostoievski; A estratégia da aranha (1970), baseado em Borges e O conformista (1970), baseado em Moravia. Esta prática não se dá apenas com textos literários, mas também com textos originalmente feito para cinema, como La commare secca (1962), baseado em Passolini, como “aqueles que escreveu com outros colaboradores especialmente para seus filmes, Último tango em Paris (1972), 1900 (1976), e o Último imperador (1987). A tensão entre a escrita e a imagem, entre literatura e cinema, é uma tensão aguda nos filmes de Bertolucci, mas certamente presente em todo e qualquer filme”. Andrzej Wajda utilizou o mesmo recurso em Crônica de acontecimentos amorosos (1985). Chamou o autor do romance em que se baseia o filme, Tadeusz Konwicki para atravessar a cena como o autor entre seus personagens. O espectador que perceber o escritor Paul Bowles no fundo da cena, o autor como espelho, a literatura dentro do cinema, compreenderá “de que modo se dá esta tensão entre palavra e imagem no filme”. O que predomina na cena são os atores falando e gesticulando muito, enquanto no fundo observa-se um homem (o próprio autor) que nada diz e nada faz, mas que está ali para expressar “a ação importante de verdade na estrutura do filme”. Os atores falam, comentam, se excedem em palavras, mas a imagem não parece interessada em acompanhar o que eles dizem. “Sai noutra direção, vê outras coisas. Não diz, não narra, não escreve: torna presente”. O espectador pode se surpreender com o longo final do filme sem palavras. Mas, o fato é que as palavras estão lá, mas sem legendas. São conversas em árabe que, obviamente, nada se entende e não precisa para se entender a história que termina. O que importa (para o espectador) é o quadro, a luz, a cor, o rosto, o som. Bertolucci, de certo modo, como Paul Bowles, também se coloca diante do espelho e não apenas neste filme. Quando o protagonista leva a mulher “para ver o ponto em que a gente se sente mais perto do céu que nos protege das coisas que existem lá fora está fazendo do espaço aberto do Saara algo parecido com o apartamento em que os amantes de Último tango em Paris se refugiavam de suas identidades e do resto do mundo; e parecido ainda com os muros da cidade proibida onde o último imperador era isolado do resto do mundo”. O espectador, dentro da sala fechada do cinema, também está protegido das coisas que existem lá fora; “porque vê um personagem que age bem como o espectador está agindo no instante em que vê o filme: um personagem que se despersonaliza para viver uma experiência dos sentidos”. Bertolucci se serve da música utilizada em O céu que nos protege do mesmo modo que se serviu em Último tango em Paris e O último imperador. O modo como usou a fotografia – o tom amarelo-alaranjado intenso, vivo – predomina em outros filmes: O conformista, A estratégia da aranha e La luna, só que nestes utilizou a cor azul. Quem perceber e compreender a presença de Paul Bowles no fundo da cena inicial e final do filme, “estará mais perto dessa coisa que nos filmes de Bertolucci fica por trás da história, como quem não diz nada nem faz nada: a textura da imagem, a natureza da imagem”. Estará mais perto do que importa nestes filmes: as cores bem realçadas, a fala de quando em quando, língua estrangeira como palavras que não se entende. “Existe uma coisa que é só livre associação, como um sonho; que é só a parte sensual da imagem (que é só cinema); que envolve e fecha o espectador num espaço mágico; que é imagem cujo sentimento e entendimento depende necessariamente da condição de espectador de cinema”. 
    
Texto reproduzido do site: tirodeletra.com.br 

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