Foto reproduzida do site leopardofilmes.com e postada
pelo blog para ilustrar o presente artigo.
Texto publicado no site da revista ISTOÉ, em 20 de fevereiro
de 2020
O sutil veneno de Luis Buñuel
Estadão Conteúdo
Tido como pai do surrealismo no cinema, Luis Buñuel
(1900-1983) é muito mais do que isso. Aos 120 anos do nascimento do mestre
espanhol, nascido em 22 de fevereiro, o Petra Belas Artes começa hoje uma
mostra com oito dos seus filmes. A panorâmica inclui do primeiro (e polêmico)
Um Cão Andaluz (1929) ao último dos seus filmes, Esse Obscuro Objeto do Desejo
(1977).
Um Cão Andaluz, com roteiro em parceria com Salvador Dalí, é
fundamental no entendimento da poética de Buñuel. Ao escrever o roteiro, os
dois tinham a preocupação de descartar qualquer imagem que pudesse produzir
sentido imediato. A ideia era buscar, pelo choque de imagens inusitadas, acesso
direto ao inconsciente do espectador, àquela região mental que rege as pulsões,
indiferentes à lógica consciente ou à moral burguesa. O filme estreou sob vaias
e provocou escândalo em Paris, onde então moravam os dois autores.
Depois da primeira fase francesa, na qual conviveu com André
Breton e outros papas do surrealismo, Buñuel mudou-se para o México. Lá rodou
uma série de filmes comerciais, alguns deles muito interessantes. Respeitava a
fórmula do melodrama, porém “contrabandeava” elementos surrealistas que punham
as obras em outro patamar, tirando-as da rotina.
Lá mesmo, no México, filma Os Esquecidos (1950), uma de suas
obras-primas e raro exemplar de realismo crítico. Os personagens são meninos de
rua da Cidade do México, retratados de maneira crua e sem qualquer laivo de
piedade cristã (o universo ético de Buñuel era de outra ordem).
Também da fase mexicana é O Anjo Exterminador (1962), um dos
exemplares típicos da estética buñuelesca. O filme gera interpretações
divergentes até hoje. Em cena, um grupo de grã-finos, reunidos para uma festa.
Por algum estranho motivo, não conseguem deixar o recinto e experimentam a
convivência forçada. Cômico e angustiante ao mesmo tempo, descasca a fina
película de civilidade que oculta instintos primitivos. Voltaria mais tarde ao
tema.
Na Espanha, Buñuel realiza aquele que talvez seja seu maior
filme – Viridiana (1963). A protagonista (Silvia Pinal) sai do convento para
visitar um tio moribundo. Depois que este tenta seduzi-la, e morre em seguida,
Viridiana decide não voltar ao convento. Fica na casa e a transforma em abrigo
de mendigos. A paródia da Santa Ceia é um dos pontos altos dessa visão ácida da
religião e crítica à hipocrisia da caridade cristã. Há um dado interessante. O
desfecho foi vetado pela censura de Franco e Buñuel o reescreveu de maneira
mais alusiva. Sempre que se referia ao filme, agradecia à censura espanhola por
ter lhe proporcionado um final melhor. A ironia é também um dom surreal.
De volta à França, e sempre apostando no caráter estimulante
da estranheza, Buñuel faz um dos seus filmes mais conhecidos e discutidos. A
Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967) traz a deslumbrante Catherine Deneuve como
a burguesa casada que se prostitui em determinadas tardes parisienses. Vida
real, mundo de fantasia, impulsos sexuais imperativos – tudo está aí, neste
filme baseado em romance de Joseph Kessel.
Todo o resto da carreira de Buñuel transcorreu na França. Em
1972 lança O Discreto Charme da Burguesia. Um grupo de alta sociedade se reúne
com frequência, mas nunca consegue terminar suas refeições. Também as relações
sexuais jamais chegam ao fim, enquanto grupos terroristas atormentam os
personagens. Cômico e brilhante.
Em O Fantasma da Liberdade (1974), com roteiro escrito por
Jean-Claude Carrière, uma série de esquetes com valor de nonsense põe em
ridículo os valores da família, da religião e da pátria. (Imaginem Buñuel no
Brasil atual.)
Sua obra final, baseada em livro de Pierre Louys, é
magnífica. Esse Obscuro Objeto do Desejo fala da obsessão de um idoso (Fernando
Rey) por uma encantadora jovem, que jamais cede aos seus desejos. O detalhe
genial é a moça ser interpretada por duas atrizes, Carole Bouquet e Angela
Molina, com temperamentos muito diferentes e mesmo poder de sedução.
O caráter anárquico e incontrolável do desejo humano aparece
no primeiro e no último filme de Buñuel. Permeia toda sua filmografia, mesmo
nos títulos em aparência mais inocentes. O velho bruxo deposita suas gotas de
veneno onde menos se espera. Buñuel foi simplesmente um dos maiores cineastas
de todos os tempos. Radical, político e irônico, é antídoto certeiro para a
caretice moral que tenta se impor em nosso triste tempo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Texto reproduzido do site: istoe.com.br
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