quinta-feira, 30 de abril de 2020

40 anos sem o gênio de Hitckcock


Publicado originalmente no BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 30 de abril de 2020

40 anos sem o gênio de Hitckcock

Hitchcock, morto há 40 anos, teria sido o retratista perfeito desta barbaridade que todos nós estamos sofrendo. Ninguém plasmou em imagens melhor do que ele o horror individual ou coletivo, a angústia, o perigo abstrato ou real. 

Por Carlos Boyero, via El País

Contam-me que faz 40 anos que morreu um sujeito que foi gordo e bochechudo durante toda sua existência, e a quem me lembro de ver eternamente enfiado em ternos escuros e gravatas. A questão dos quilos excessivos não é meramente pitoresca. Imagino que Hitchcock adoraria ter tido o aspecto e o charme de Cary Grant, o maravilhoso ator que dirigiu em muitas e memoráveis ocasiões, mas, na falta desses dotes físicos, teve que se conformar em ser Alfred Hitchcock, uma das coisas mais revolucionárias e geniais que ocorreram na história do cinema.

Ele tampouco se propôs, desde jovem, a ser um dos deuses do Olimpo. Limitava-se, como John Ford, a ser o mais inteligente e profissional da classe, a fazer seu difícil trabalho melhor que ninguém, a aperfeiçoar a arte de contar histórias com uma câmera até limites sublimes, ao desejo permanente de lotar as salas onde seus filmes fossem projetados, a que os espectadores permanecessem envolvidos, temerosos e emocionados com o que ele narrava na tela, a que o sucesso de cada uma de suas criaturas fosse a norma, e não a exceção, a que o público, em épocas nas quais o cinema de autor ainda não estava na moda, pagasse o ingresso ao ver a assinatura de um sujeito chamado Hitchcock.

Não dispondo de Internet, esse substituto monumental de algo tão valioso como a memória, só posso recorrer a esta para recordar títulos, momentos, sequências, tramas, medos e poemas inventados por este insuperável criador de imagens, um supremo estilista com tantas coisas para expressar, um conhecedor tão profundo como temível da natureza humana, de suas luzes, mas acima de tudo de suas sombras.

E acredito que não me trai a memória ao recordar que o menino Hitchcock entendeu o que era o terror quando seu rigoroso pai, um comerciante, o fez passar a noite numa delegacia de polícia para que soubesse o que são o medo e o respeito à autoridade. Também que só teve uma mulher, a roteirista Alma Reville, a quem pediu em casamento quando ela estava vomitando até a alma pela amurada de um navio, em meio a uma feroz tempestade no Atlântico.

Também conta um de seus biógrafos que em sua agonia aquele homem obeso repetiu mais de uma vez a palavra “solidão”. E que, se sempre gostou do álcool, em seus últimos anos este foi seu companheiro mais habitual. E, claro, que ficava louco por senhoras loiras, belas, sofisticadas e elegantes. Que, logicamente, estavam envolvidas com outros, não com a foca bochechuda. Com alguma, como Grace Kelly, estabeleceu uma cumplicidade que incluía o voyeurismo.

Já com Tippi Hedren, que não entrava na dele, comportou-se como um intolerável sádico, prescindindo dos efeitos especiais na sequência de Os Pássaros em que Hedren é atacada em massa pelas aves apocalípticas. Em seu afã de realismo ou por ciúme, transformou o ataque dos pássaros em algo real. E é provável que seu cinema seja tão perturbador e extraordinário porque sua mente sempre foi retorcida, porque não foi uma pessoa feliz apesar de tocar o céu com sua arte, de conseguir uma grande fortuna, de ser o diretor de cinema mais reconhecido e admirado.

Hitchcock teria sido o retratista perfeito desta barbaridade que todos nós estamos sofrendo, o que de mais selvagem, incrível e desumano ocorreu à humanidade desde a Segunda Guerra Mundial. Ninguém plasmou em imagens melhor do que ele o horror individual ou coletivo, a angústia, o perigo abstrato ou real, a pegajosa sensação do medo, a incerteza, os fantasmas engendrados pela maldade ou pela solidão, o monstro nos espreitando ao virar a esquina, na porta ao lado ou a centímetros do seu corpo.

O nome de Hitchcock nunca aparecia nos roteiros. Tanto fazia quem os escrevesse. Sua personalidade marcava todas as histórias que filmava, do começo ao fim. E ninguém teve um imaginário visual como o seu, pela capacidade dessas imagens de se incrustarem nas sensações do espectador. Se o cinema tivesse continuado mudo, Hitchcock mesmo continuaria a nos intrigar, a nos apavorar, a nos comover.

E às vezes, como é lógico, o resultado não esteve à altura das expectativas. Em sua filmografia há filmes menores, mas nunca ruins. Se não tivesse deixado a Inglaterra, seu cinema continuaria sendo muito bom, mas Hollywood lhe ofereceu os melhores recursos para que este se tornasse uma obra de arte. Conta o excelente roteirista e divertidíssimo e malicioso escritor William Goldman que o cinema de Hitchcock foi grande até que Truffaut e outros cultivados espíritos o convenceram da enorme relevância e coerência da sua obra, de possuir um universo à altura dos artistas mais intocáveis. Hitchcock inicialmente mostrou certo ceticismo com tão justificada adulação, mas, como era humano, começou a adorar que os mais inteligentes o considerassem o rei. Segundo o perverso Goldman, a partir daí Hitchcock fez filmes pensando na opinião dos críticos. Não é verdade, mas tem sua graça.

E agora que todo mundo está tão machucado que precisa ver comédias e filmes relaxantes, fico sabendo de que um filme grotesco, claustrofóbico, doentio e experimental no pior sentido, intitulado O Poço, do qual só aguento os 15 primeiros minutos e que se passa numa prisão vertical, está arrasando entre os interesses do público da Netflix. Que desperdício recorrer aos sucedâneos quando se pode desfrutar do genuíno, ou seja, de Hitchcock, através das plataformas digitais.

Ele não só teria feito algo apaixonante numa prisão vertical como também, estou seguro, seria o único diretor capaz de fazer algo hipnótico que se desenvolvesse num elevador. Conseguiu-o em Um Barco e Nove Destinos, rodado em um bote no meio do mar. Se em tão pouco espaço era capaz de criar tamanha tensão, imaginem dispondo de grandes cenários. Como esses milharais pelos quais corre Cary Grant, perseguido por um aviãozinho de fumigação agrícola em Intriga Internacional. Os passeios por San Francisco por onde James Stewart, em estado insone e completamente desnorteado, vaga em Um Corpo que Cai, recordando obsessivamente a misteriosa e falecida mulher por quem se apaixonou, um poema necrófilo que poderia ter sido escrito por Edgar Allan Poe. O gélido e calculista Cary Grant de Interlúdio, usando como chamariz e espiã a mulher que ama e que o ama, armando para que se case com outro, progressivamente envenenada. Tudo para caçar uma organização de nazistas. Ou Rebecca, a Mulher Inesquecível, que começa com aquela frase mitológica: “Ontem sonhei que voltava a Manderley”. Estranhos que se encontram em um trem e se fazem a macabra proposta de matar a ex-mulher de um deles em troca de que este assassine ao pai do outro [em Pacto Sinistro]. O rosto de uma mulher fugitiva e encurralada em Psicose, que vai dirigindo no meio da chuva e à noite, a caminho do hotel onde o monstro Norman Bates a espera, tão edipiano como enlouquecido.

A pandemia que sofremos poderia estar ilustrada na imagem final dessa obra-prima chamada Os Pássaros. A família, acompanhada de Tippi Hedren, deixa a casa onde foi encurralada pelas aves. Está amanhecendo, seus passos são quase em câmera lenta, e os pássaros assassinos milagrosamente se limitam a observá-los e os deixam passar. Os pesadelos que Hitchcock filmava deixam rastro para sempre.

O mais gratificante deles é que você sabe que há um final, que assim que o filme acabar você vai se reencontrar com a realidade, que se sentirá aliviado quando as luzes da sala se acenderem e você e constatar que não lhe aconteceu nada de mau, que seu corpo continua intacto, que o horror só existia na tela.

Texto e imagem reproduzido do blog otambosi.blogspot.com

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