Publicado originalmente no site [obviousmag.org]
A Trincheira dos Cinéfilos
Por Alexandre Coslei
Às margens da Baía de Guanabara, diante de um cenário
cinematográfico, é onde também reina o glorioso templo de devoção ao cinema: a
Cinemateca do MAM.
Cresci na Tijuca, um bairro da zona norte do Rio de Janeiro
rodeado de cinemas por todos os lados. Ser tijucano da geração dos anos 1970
significava cumprir um destino: tornar-se um cinéfilo.
Carioca, América, Tijuca, Bruni-Tijuca, Art-Palácio, Studio
Tijuca, Cooper Tijuca, Olinda, Tijuca-Palace, Cinema 3, Comodoro e por aí
vai... Criança, levado por meu pai, descobri o prazer das salas refrigeradas
assistindo às matinês de Tom e Jerry no Art-Palácio. Nessas salas eu ri,
escondi lágrimas, me entusiasmei, levei sustos, firmei amizades e povoei a
minha solidão com os sonhos que transbordavam das telas. Hoje, a lembrança mais
viva de um tijucano de meia idade é ter vivido numa filial de Hollywood.
Com o passar do tempo, o advento dos shoppings e a evolução
da tecnologia empurraram as grandes salas de rua para o abismo. Aos poucos,
todos os cinemas do bairro arriaram as portas – em sua maioria viraram igrejas.
Minhas referências mais fortes foram varridas da Praça Saenz Peña. No fim, não
sobrou nada. Os cinemas da Tijuca migraram em blocos para dentro dos
claustrofóbicos corredores dos shoppings.
Por sorte, à medida em que eu ia amadurecendo, o mundo se
estendia. Perambulava muito por São Cristóvão, na sede da Editora Ebal, à
procura de exemplares atrasados da melhor revista de cinema da época, a
Cinemin. Nela eu aprendia mais sobre cinema, sobre a crítica de cinema. Foi
através de uma carta que enviei à Cinemin, pedindo mais informações sobre a atriz
Jane Seymour, que recebi uma resposta que revelava o endereço de
correspondência da diva. Datilografei para Londres e me voltou uma foto da
estrela de “Em algum lugar do passado” com um belo autógrafo e dedicatória.
Emoção inesquecível. Graças à Cinemin, também reavistei o camarada Ricardo
Cota, com quem eu havia perdido o contato. Passei a acompanhar religiosamente o
seu trabalho. Além de amigo, me tornei um fã.
O universo continuou se expandindo e pisei pela primeira vez
na Cinemateca do MAM. Se a memória não é traiçoeira, foi quando assisti ao
"Anjo Exterminador", de Buñuel. Havia uma atmosfera mágica no dia em
que desembarquei do metrô, na estação Cinelândia, percorri a Av. Calógeras,
atravessei a passarela da Infante Dom Henrique, descendo aos pés do Museu de
Arte Moderna. Vislumbrei aquele monumento da arquitetura sabendo que estava ali
antes que eu surgisse no planeta. Já havia história num lugar onde eu ensaiava
as primeiras cenas que fariam parte da minha história.
Na Cinemateca, assisti a um dos filmes que mais me comoveu
na minha modesta jornada de cinéfilo, “A pequena loja da Rua Principal”. Um
filme tchecoslovaco ao qual me rendi, que me arrancou um choro engasgado e que
ainda guardo a esperança de rever no mesmo lugar em que me acomodei na primeira
vez. Não sei bem o porquê, mas depois de um período frequentando regularmente a
Cinemateca, fez-se um hiato. Parei de ir.
Em 2015, aconteceu uma daquelas surpresas que despertam as
alegrias do cotidiano. A Cinemateca volta a ilustrar os suplementos de cultura
dos principais jornais, aparece em matérias de programas da TV e sua
programação é anunciada até nas rádios. O templo em devoção ao cinema, que
andava meio desbotado na memória, ressurge com o mesmo esplendor do passado no
qual se fez sua fama. Num momento em que o espaço para a cultura na imprensa
encolhe mais e mais a cada dia, eu testemunhava um milagre midiático. Não foi à
toa. Por trás disso havia um nome, ou melhor, havia a marca da paixão pelo
cinema. Ele, o amigo que iluminou as lendárias páginas da Cinemin: Ricardo
Cota.
De repente, lá estava eu atravessando novamente a Av.
Calógeras, superando a rampa da Av. Infante Dom Henrique com os passos pesados
pela idade, desbravando os irremediáveis canteiros de obras do Centro e
alcançando o monumental MAM. Não podia ser melhor, naquela tão querida sala de
projeção, reencontrei Frank Sinatra. Assisti a uma bela palestra sobre o cantor
dos belos olhos azuis. Em um outro dia, um novo evento, ao qual também
compareci. Então, tive certeza, a Cinemateca nos proporciona o aconchego
daquele cinema que a gente ama, que nos moldou junto com outros tantos
fenômenos culturais. A Cinemateca é um paralelo com os antigos cinemas de rua,
ela integra a nossa alma, é a face companheira que consola a nossa solidão
coletiva. A Cinemateca é um santuário que precisa resistir e resiste.
Com a Cinemateca vieram os amigos, os antigos e os novos.
Vieram os abraços. Veio a reaproximação e a alegria da convivência com os
irmãos de espírito. Enquanto nós estamos ali para viajar nas películas, o Cota
realiza. Está lá, matando o famoso leão do dia, todos os dias. Com ele, a
Cinemateca não apenas resiste, mas ganha força, revitaliza-se, renova-se.
Escolho uma poltrona, sento-me em silêncio, o ambiente
escurece. Glauber me olha da tela e com ele ressurgem os ideais teimosos que
atravessaram intactos as décadas do meu caminho. Se a Cinemateca vive, a minha
juventude persiste.
No regresso, em êxtase, paro num bar. Peço uma dose. Um
brinde: vida longa à Cinemateca do MAM.
Texto e imagens reproduzidos do site: obviousmag.org
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