Glauber dirigindo o filme: "Terra em Transe" (1967)
Publicado originalmente no site da revista CULT, em 12 de março de 2003
Epitáfio do populismo
Por Alexandre Agabiti Fernandez
Deus e o diabo na terra do sol (1964) cantava as esperanças
de transformação social que marcaram o clima político na fase imediatamente
anterior ao golpe militar, sintetizada na metáfora “o sertão vai virar mar e o
mar virar sertão”, cristalizada na corrida de Manuel e Rosa em direção ao mar.
Outro bordão emblemático deste momento é a frase do líder comunista Luís Carlos
Prestes: “nós estamos no governo mas ainda não estamos no poder”. Produzido
entre 1966 e 1967, Terra em transe reflete outro estado de ânimo ao discutir a
desilusão e a perplexidade da esquerda diante do fracasso de suas utopias.
Marco do cinema político, o filme fustiga os equívocos e ambiguidades do
populismo e das forças políticas que o sustentaram.
Não há nada mais estranho ao discurso de Terra em transe do
que a linearidade e a lógica do senso comum. Para expressar toda a intensidade
da catástrofe, Glauber Rocha preferiu uma opção bem mais arriscada, fazendo da
metáfora do transe o traço fundamental da narrativa. O transe contamina os personagens,
as campanhas políticas, o golpe de Estado e até as orgias – como se fosse um
rito coletivo –, além de dar seus contornos à própria maneira de narrar. Cheia
de fragmentações, avanços e retrocessos, bruscas mudanças de tom, repetições
obsessivas, numa atmosfera de agitação permanente, atravessada por discursos
exaltados, debates inflamados e outras formas de arroubo verbal, a narrativa
avança sob o signo da convulsão. O filme se organiza em torno de um flash back
deflagrado pelo atormentado fluxo de consciência de um personagem agonizante, o
poeta e jornalista Paulo Martins, uma das instâncias narradoras do filme. Além
de apontar para o estado de possessão relacionado às religiões
afro-brasileiras, o transe também conota um estado de letargia, uma passividade
próxima da hipnose. No contexto do filme, o transe sugere a paradoxal
coexistência entre histeria e apatia, violência e ternura, delírio épico e
calma lírica, rajadas de metralhadora e música de Villa-Lobos, designando a
crise que sacode todas as esferas da vida de Eldorado, país hipotético,
representação alegórica do Brasil e da própria América Latina.
Paulo é o personagem com maior densidade do filme, o único
dotado de subjetividade. Os outros são construções que condensam atributos de
grupos sociais, figuras-síntese político-culturais. Diaz, que Paulo designa
como sendo seu “deus da juventude”, ancora-se em lemas caros à TFP e ao
integralismo. Aparecendo freqüentemente só, em espaços amplos e vazios, como na
encenação paródica da Primeira Missa, o “pai da pátria” se identifica com o
ascetismo, as origens européias da América Latina, a tradição cristã, a
verticalidade autoritária, remetendo, no processo político brasileiro, a Carlos
Lacerda.
O governador Vieira encarna o populismo, a horizontalidade
reformista, o paternalismo, aproximando-se das esquerdas: é resultado de uma
colagem de características de figuras que vão do Getúlio Vargas da
carta-testamento ao Jânio Quadros das folclóricas campanhas eleitorais,
identificando-se mais diretamente com João Goulart. Fuentes – um grande
empresário do setor de comunicações – representa a burguesia nacionalista de
Eldorado. Seu conglomerado remete ao Jornal do Brasil e aos Diários Associados,
de Assis Chateaubriand, e prefigura o que seria a Rede Globo. Apesar de frágil
e ingênuo, Fuentes é descrito como uma figura ética e moralmente corrompida. A
Explint, representante do capital internacional é apenas uma sigla sombria, um
espectro poderoso e temido, capaz de sustentar e depor governos.
O povo atua apenas como massa de manobra. Atraído pela mise
en scène populista, participa do ritual carnavalesco capitaneado por Vieira,
porém acaba descartado quando toma a palavra. Ao mesmo tempo é rechaçado por
Paulo, que o designa como “ignorante e analfabeto”, enquanto Sara está presa ao
idealismo de uma concepção romântica de povo.
Os principais personagens femininos seguem o modelo
moralista cristão da santa e da puta. Sara é a militante de esquerda
arquetípica, determinada e disciplinada em sua devoção ao partido. Maternal em
relação a Paulo, socorre o poeta em seus momentos de desespero, tentando
trazê-lo de volta à realidade. É a mulher engajada, preocupada com a miséria
social. Sílvia está no pólo oposto. É a cortesã que circula nas esferas da alta
burguesia, do palácio de Diaz – quando é cedida por este a Paulo – à mórbida
orgia comandada por Fuentes. É a mulher objeto, incapaz de pronunciar uma só
palavra em todo o filme.
Assim como oscila entre essas duas mulheres, Paulo hesitar
entre Vieira e Diaz. Nos filmes do cinema novo, a oscilação dos personagens tem
um caráter que cada vez mais sintetiza uma contradição política: incapazes de
perceber o que se passa ao seu redor, balançam entre dois pólos opostos,
situação necessariamente angustiante. Paulo Martins é certamente o mais
instável deles; sua trajetória é um percurso de oscilações, podendo ser
reconstituída através delas. Tais movimentos pendulares decorrem de uma
contradição entre arte e política, contemplação e ação, termos de uma oposição
que ele não consegue resolver. Síntese do intelectual brasileiro militante dos
anos 60, que aderiu ao populismo e foi derrotado com ele em 64, Paulo tem
fascinação pela figura carismática do líder, objeto de sua busca ao longo de
toda a narrativa.
O poeta vive um processo de identificação e posterior
desilusão com o autoritário Diaz e com o demagogo Vieira. Num segundo momento,
sua confusão é tal que, para poder voltar a apoiar Vieira se vê obrigado um
segundo e mais contundente rompimento com Diaz. Este segundo rompimento se dá
em duas etapas, evidenciando ainda mais as dificuldades do poeta para tomar
posição: depois de desmoralizar o político num documentário de TV, a “Biografia
de um aventureiro” – mostrando as sucessivas traições de Diaz, que também podem
ser vistas como uma referência ao próprio Paulo – o poeta recua e vai ver o
líder “carregado de remorsos”, para só então romper de vez numa cena de
eloqüência operística. Apesar disso, sua volta a Vieira está carregada de
pessimismo e suas atitudes só reafirmam os dilemas insolúveis do populismo,
espremido entre as promessas eleitorais e os compromissos assumidos com a
oligarquia.
A poesia também é um dos campos de batalha das oscilações do
personagem. Seus poemas, declamados ou ditos em voz off, pontuam a narrativa,
expressando os estados de alma do personagem. Paulo abraça a poesia engajada
socialmente quando adere a Vieira. Ao romper com ele, seus versos só expressam
a náusea de viver e Paulo proclama a inutilidade da poesia. Nela, convivem o
idealismo e o ceticismo do personagem, traço que o aproxima de Hamlet, assim
como a proximidade que ambos têm com o poder, com os círculos da política de
cúpula.
Como Paulo não consegue se manter num quadro de tensões que
se exacerbam, seu percurso só pode terminar com a morte, assim como se rompe o
precário equilíbrio de forças políticas, que se exterioriza com o golpe de
Diaz. Movido pela fé (no líder, na poesia, na ação política), Paulo só morre
quando a fé deixa de ter sentido para ele. Só depois de desencantar-se com Diaz
e Vieira Paulo está “preparado” para a morte, quando percebe “a impotência da
fé, a ingenuidade da fé”.
Incapaz de desenvolver uma competência capaz de lhe permitir
pensar e superar suas contradições, num movimento que iria da fé à consciência,
Paulo morre e aí a consciência emerge simbolicamente. Essa consciência está na
alusão à guerrilha que o poeta faz em sua agonia apoteótica, brandindo uma
metralhadora com uma solenidade de ritual. O momento da morte ganha uma
transcendência simbólica, a morte é tomada de um modo religioso, não como o fim
da vida, mas como o começo de uma nova existência: ao morrer, o poeta toma consciência
de suas ilusões, supera abruptamente as contradições de toda uma vida. O
estatuto simbólico deste momento está reforçado pela repetição da seqüência da
morte, que abre e encerra o filme, assim como pelo fato de ela terminar num
espaço indeterminado, em dunas que parecem nuvens, numa atmosfera rarefeita, em
que o poeta parece falar de um lugar situado além da vida, além de suas
ilusões. Aqui, todo o discurso de Paulo celebra o sacrifício de sangue, a
disponibilidade para a morte, tomados como origem, marco zero de uma
possibilidade de transformação social.
Se a longa seqüência da morte oferece elementos capazes de
sustentar o sacrifício da própria vida como o único gesto “positivo” do
personagem, ela também permite uma outra leitura. Enquanto agoniza, bradando
contra a situação política que o vitimou, Paulo imagina a cerimônia de
investidura de Diaz, que desfila em imagens mostradas numa veloz sucessão de
flashes. Ato pomposo, a cerimônia é uma coroação, em que Diaz é considerado
como um monarca pela imaginação delirante do poeta. Símbolos do absolutismo,
coroa, manto e cetro lá estão, representando o poder do líder golpista. Paulo
se imagina invadindo a cerimônia ferido, rastejando, de metralhadora em punho.
Apesar de estar armado e de lançar imprecações, o que permitiria supor que
pretende atirar em Diaz, Paulo não ousa fazê-lo nem na imaginação: é um
desconhecido que dispara, enquanto o poeta vira o rosto. Em seguida, Paulo
agarra a coroa, que lhe escapa das mãos. Estas cenas – apresentadas em flashes
cuja extrema rapidez dificulta a percepção por parte do espectador – aparecem
em montagem paralela com os momentos da agonia do poeta no carro e na estrada,
funcionando como imagens subliminares, desvendando o inconfessável: Paulo
aproveita a “morte” de Diaz para se aproximar do poder, do poder absoluto. Sua
fantasia cria um vazio de poder para que ele possa enfim abraçá-lo. Eis seu
mais profundo desejo: ter o poder nas mãos. Paulo acaba se revelando “uma cópia
suja de Diaz”, para retomar as palavras de Álvaro, um de seus amigos.
Quem é Paulo, afinal: um arauto da guerrilha ou um
oportunista cabotino? A questão não tem resposta, pois o filme não opera por
oposições maniqueístas, mas por acumulação de elementos contraditórios. Muito
mais importante do que uma ou outra alternativa é perceber as inconsistências e
oscilações do personagem, a lógica autoritária que molda sua práxis, o elitismo
que mostra no seu reiterado desprezo pelo povo e na sua concepção da política
como atividade palaciana. As duas leituras conflitantes reiteram a crítica ao
intelectual engajado brasileiro, que também compreende uma dimensão
autocrítica. Terra em transe expõe até as últimas conseqüências as contradições
do intelectual, questionando os dogmas de uma cultura política dominante na
esquerda, de uma tradição de militância em que os intelectuais se viam como
plenipotenciários portadores da verdade.
O filme estourou como uma bomba no Brasil de 1967. Ao se
referir ao golpe de abril com uma veemência nunca vista, o filme acabou prefigurando
a atmosfera tenebrosa que se instalou a partir do fechamento do regime em 1968,
cuja expressão maior foi o Ato Institucional nº 5, promulgado em dezembro.
Golpe dentro do golpe, o AI-5 permitiu o fechamento do Congresso Nacional e outorgou poderes autocráticos ao presidente
da República. A repressão se intensificou, com a instalação do terrorismo de
Estado e seu cortejo de prisões, torturas, cassações, censura e assassinatos.
Simultaneamente, os mecanismos de dominação ideológica do Estado se refinaram.
O país mergulhou num longo período de obscurantismo, a hegemonia cultural de
esquerda – que não havia sido comprometida com o golpe de 64 – se esvaeceu.
Reflexão feita no calor da hora, Terra em transe provocou
muita polêmica na época. Alguns intelectuais rotularam o filme como “fascista”,
caso de Fernando Gabeira, enquanto outros reagiram favoravelmente, como o
psicanalista Hélio Pellegrino, que considerou Terra em transe “a melhor coisa
que se fez em cinema, pelo menos no nosso terceiro mundo”. O filme também
deixou marcas na produção cultural. O diretor de teatro José Celso Martinez
Corrêa reconheceu a grande influência de Terra em transe na montagem de O rei
da vela (1967), de Oswald de Andrade – um acontecimento cultural na época –,
que Caetano Veloso também apontou, ao lado do filme de Glauber, como referência
deflagradora do tropicalismo. No campo do cinema, filmes como Cara a cara
(1967), de Julio Bressane; Blá blá blá (1968), de Andréa Tonacci; e O bandido
da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, dialogam profundamente com Terra
em transe. Nestas obras, os três jovens diretores começaram a construir uma
cinematografia experimental – aproveitando a brecha aberta pelo filme de
Glauber, radicalizando no deslocamento do eixo ideológico dos debates e
rompendo com o cinema novo – mais tarde conhecida como cinema marginal.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br
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