sexta-feira, 8 de maio de 2020

Crítica do filme: "Cabra Marcado Para Morrer"


Publicado originalmente no site CINESET, em 18 de novembro de 2016

Cabra Marcado Para Morrer’: o maior filme do cinema brasileiro

Por Diego Bauer * (Classic Movies)

É sempre difícil (pra não dizer improdutivo) entrar naquelas discussões sobre filmes favoritos, ou filmes obrigatórios, ou ainda os melhores filmes de determinado país. Afinal, há muita coisa boa que foi produzida que ainda não conhecemos, ou que ainda não revisitamos, e as inevitáveis injustiças acabam acontecendo.

Mas ainda assim é possível, em um exemplo ou outro, cometer um ato mais ousado e bancar uma afirmativa forte. Um dos – poucos – filmes que provoca em mim essa atitude é a obra-prima Cabra Marcado Para Morrer de Eduardo Coutinho. Sim, esse é um filme obrigatório, na minha opinião o melhor filme brasileiro já produzido, e um dos meus favoritos da vida.

Acredito que é a obra cinematográfica mais consciente e ativa politicamente que já assisti, que não se limita a documentar os fatos (o que já é muito, e fundamental), mas cumpre papel ativo no andamento da história que resolveu contar.

Dividido em duas partes, as gravações deste filme iniciaram-se em 1964. Coutinho, que iniciou a sua carreira no cinema como diretor de ficção, iria realizar um filme, ficcional, sobre a vida do trabalhador rural João Pedro Teixeira, presidente da Liga Camponesa de Sapé, localizada na Paraíba, assassinado em 1962 por dois soldados da polícia militar, e por um assessor de um latifundiário. As filmagens aconteceriam no Engenho Galileia, em Pernambuco, e teriam como atores os próprios camponeses do local, e a esposa de João Pedro, Elizabeth Teixeira, que veio da Paraíba para Pernambuco, para fazer o seu próprio papel no filme. Porém o golpe militar de 1964 fez com que as gravações fossem interrompidas, com apenas 40% do roteiro tendo sido gravado. Galileia foi invadida pelo exército, e os principais líderes camponeses foram presos. Também foram presos alguns membros da equipe do filme, mas estes conseguiram escapar e retornaram ao Rio de Janeiro.


Com a anistia em 1981, Coutinho retorna a Galileia para terminar o seu filme da maneira que fosse possível, mas sem um roteiro prévio, afinal o cineasta não sabia nem o que encontraria no local. Tinha a ideia de retomar o contato com os camponeses através de conversas nas quais eles se recordariam dos acontecimentos passados, incluindo a experiência envolvendo o próprio filme que eles estavam gravando. Chegando ao local, após conversar com alguns daqueles personagens que fizeram parte do seu filme, descobre que Elizabeth encontra-se desaparecida. Coutinho parte então em sua busca, e também dos seus filhos que se perderam pelo caminho tomando rumos diferentes após o início da ditadura militar.

A partir dessa premissa, Cabra Marcado Para Morrer apresenta-se como um experimento fílmico que vai muito além de simples definições como documentário, ficção, ou documentário a partir de uma ficção. Este filme, único no cinema mundial, apresenta de maneira direta as consequências da ditadura no Brasil, de como o tempo modificou aquelas pessoas, além de ser um comentário contundente sobre a barbárie envolvendo a relação dos camponeses que foram perseguidos e mortos por conta das suas ações através dos movimentos sociais, e da sua luta por condições melhores de trabalho, e de direito pelas terras que trabalham. É um retrato implacável do que é, de fato, o Brasil profundo, repleto de injustiça e corrupção.


É muito impactante ver aqueles rostos, aquelas pessoas em condições tão miseráveis, reconhecendo-se, 17 anos mais novas, assistindo ao filme em que atuariam, apresentariam a sua luta, que permanece tão semelhante, e tão árida. Coutinho emprega a regra de não saber de nada, de buscar as respostas sem muitas perguntas prévias. O método praticamente etnográfico vai investigando aos poucos, com paciência, interessado em saber como aquelas figuras sobreviveram àquele período, e de que maneira a sua experiência na participação do filme, em 1964, faz com que elas recordem os acontecimentos do passado.

A partir de um certo ponto, o filme inicia uma nova jornada, ainda mais densa e reveladora, buscando o paradeiro de Elizabeth.

Deixando claro o tempo inteiro para o espectador os mecanismos por detrás do filme, com as imagens da equipe entrevistando as personagens com todo aparato de imagem e som, aquela parafernalha cinematográfica visível praticamente durante toda a projeção, Coutinho entende que o cinema já é parte integrante daquela história, que foi a partir dele que a luta dessas pessoas ficou registrada, e é só a partir dele que é possível investigar, ir atrás do que aconteceu com os sobreviventes daquilo, para levar ao público uma versão mais coerente dos fatos.


Dessa maneira, temos um incrível jogo de metalinguagem ao estarmos assistindo ao filme, dentro dele estão os depoimentos de Elizabeth, refugiada numa pequena cidade no Rio Grande do Norte, e também trechos do filme iniciado em 1964, e as lembranças dos envolvidos nele. As camadas presentes em Cabra Marcado Para Morrer são tão densas, que é necessário revisitar o filme de quando em quando, pois sempre há algo novo para encontrar, um nuance diferente em alguma fala, lembrança.

Embarcando numa jornada final em busca dos filhos de Elizabeth em diferentes lugares pelo Brasil, o filme de Coutinho faz o que parecia ser impossível: expande ainda mais o mosaico da miséria e aridez agora não apenas no nordeste, mas em outras regiões do Brasil. Nos colocando como verdadeiros cúmplices dessa busca, nos vemos descobrindo novos matizes para a história de Elizabeth, e de toda essa geração de camponeses, compreendendo de maneira ampla o que significa toda a discussão que o filme e as personagens propõem, e quais são as consequências reais disso.

São filmes assim, conscientes da função que a arte pode desempenhar na sociedade, que fazem alguma diferença na nossa realidade. Cabra Marcado Para Morrer é tão consciente disso, que o seu resultado alcança algo diferente do que o cinema já viu. Algo que vai além, que não cabe em classificações. Uma obra para sempre.

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Diego Bauer é diretor, ator, roteirista, curador e produtor cultural. É um dos sócios da Artrupe Produções, e atua nas áreas de cinema e teatro. É um dos diretores da série Boto, premiada no Prodav 05/2015. Dirigiu 3 curtas-metragens e um videoclipe. Em 2018 foi curador e produtor do I Festival Olhar do Norte. Atuou em 2 espetáculos de teatro, apresentando-se em Manaus, Itacoatiara, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Escreve sobre cinema no Cine Set desde 2013.

Texto e imagem reproduzidos do site: cineset.com.br

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