Publicado originalmente no site CINESET, em 18 de novembro de 2016
‘Cabra Marcado Para Morrer’: o maior filme do cinema brasileiro
‘Cabra Marcado Para Morrer’: o maior filme do cinema brasileiro
Por Diego Bauer * (Classic Movies)
É sempre difícil (pra não dizer improdutivo) entrar naquelas
discussões sobre filmes favoritos, ou filmes obrigatórios, ou ainda os melhores
filmes de determinado país. Afinal, há muita coisa boa que foi produzida que
ainda não conhecemos, ou que ainda não revisitamos, e as inevitáveis injustiças
acabam acontecendo.
Mas ainda assim é possível, em um exemplo ou outro, cometer
um ato mais ousado e bancar uma afirmativa forte. Um dos – poucos – filmes que
provoca em mim essa atitude é a obra-prima Cabra Marcado Para Morrer de Eduardo
Coutinho. Sim, esse é um filme obrigatório, na minha opinião o melhor filme
brasileiro já produzido, e um dos meus favoritos da vida.
Acredito que é a obra cinematográfica mais consciente e
ativa politicamente que já assisti, que não se limita a documentar os fatos (o
que já é muito, e fundamental), mas cumpre papel ativo no andamento da história
que resolveu contar.
Dividido em duas partes, as gravações deste filme
iniciaram-se em 1964. Coutinho, que iniciou a sua carreira no cinema como
diretor de ficção, iria realizar um filme, ficcional, sobre a vida do
trabalhador rural João Pedro Teixeira, presidente da Liga Camponesa de Sapé,
localizada na Paraíba, assassinado em 1962 por dois soldados da polícia
militar, e por um assessor de um latifundiário. As filmagens aconteceriam no Engenho
Galileia, em Pernambuco, e teriam como atores os próprios camponeses do local,
e a esposa de João Pedro, Elizabeth Teixeira, que veio da Paraíba para
Pernambuco, para fazer o seu próprio papel no filme. Porém o golpe militar de
1964 fez com que as gravações fossem interrompidas, com apenas 40% do roteiro
tendo sido gravado. Galileia foi invadida pelo exército, e os principais
líderes camponeses foram presos. Também foram presos alguns membros da equipe
do filme, mas estes conseguiram escapar e retornaram ao Rio de Janeiro.
Com a anistia em 1981, Coutinho retorna a Galileia para
terminar o seu filme da maneira que fosse possível, mas sem um roteiro prévio,
afinal o cineasta não sabia nem o que encontraria no local. Tinha a ideia de
retomar o contato com os camponeses através de conversas nas quais eles se
recordariam dos acontecimentos passados, incluindo a experiência envolvendo o
próprio filme que eles estavam gravando. Chegando ao local, após conversar com
alguns daqueles personagens que fizeram parte do seu filme, descobre que
Elizabeth encontra-se desaparecida. Coutinho parte então em sua busca, e também
dos seus filhos que se perderam pelo caminho tomando rumos diferentes após o
início da ditadura militar.
A partir dessa premissa, Cabra Marcado Para Morrer
apresenta-se como um experimento fílmico que vai muito além de simples
definições como documentário, ficção, ou documentário a partir de uma ficção.
Este filme, único no cinema mundial, apresenta de maneira direta as
consequências da ditadura no Brasil, de como o tempo modificou aquelas pessoas,
além de ser um comentário contundente sobre a barbárie envolvendo a relação dos
camponeses que foram perseguidos e mortos por conta das suas ações através dos
movimentos sociais, e da sua luta por condições melhores de trabalho, e de
direito pelas terras que trabalham. É um retrato implacável do que é, de fato,
o Brasil profundo, repleto de injustiça e corrupção.
É muito impactante ver aqueles rostos, aquelas pessoas em
condições tão miseráveis, reconhecendo-se, 17 anos mais novas, assistindo ao
filme em que atuariam, apresentariam a sua luta, que permanece tão semelhante,
e tão árida. Coutinho emprega a regra de não saber de nada, de buscar as
respostas sem muitas perguntas prévias. O método praticamente etnográfico vai
investigando aos poucos, com paciência, interessado em saber como aquelas
figuras sobreviveram àquele período, e de que maneira a sua experiência na
participação do filme, em 1964, faz com que elas recordem os acontecimentos do
passado.
A partir de um certo ponto, o filme inicia uma nova jornada,
ainda mais densa e reveladora, buscando o paradeiro de Elizabeth.
Deixando claro o tempo inteiro para o espectador os
mecanismos por detrás do filme, com as imagens da equipe entrevistando as
personagens com todo aparato de imagem e som, aquela parafernalha
cinematográfica visível praticamente durante toda a projeção, Coutinho entende
que o cinema já é parte integrante daquela história, que foi a partir dele que
a luta dessas pessoas ficou registrada, e é só a partir dele que é possível
investigar, ir atrás do que aconteceu com os sobreviventes daquilo, para levar
ao público uma versão mais coerente dos fatos.
Dessa maneira, temos um incrível jogo de metalinguagem ao
estarmos assistindo ao filme, dentro dele estão os depoimentos de Elizabeth,
refugiada numa pequena cidade no Rio Grande do Norte, e também trechos do filme
iniciado em 1964, e as lembranças dos envolvidos nele. As camadas presentes em
Cabra Marcado Para Morrer são tão densas, que é necessário revisitar o filme de
quando em quando, pois sempre há algo novo para encontrar, um nuance diferente
em alguma fala, lembrança.
Embarcando numa jornada final em busca dos filhos de
Elizabeth em diferentes lugares pelo Brasil, o filme de Coutinho faz o que
parecia ser impossível: expande ainda mais o mosaico da miséria e aridez agora
não apenas no nordeste, mas em outras regiões do Brasil. Nos colocando como
verdadeiros cúmplices dessa busca, nos vemos descobrindo novos matizes para a
história de Elizabeth, e de toda essa geração de camponeses, compreendendo de
maneira ampla o que significa toda a discussão que o filme e as personagens
propõem, e quais são as consequências reais disso.
São filmes assim, conscientes da função que a arte pode
desempenhar na sociedade, que fazem alguma diferença na nossa realidade. Cabra
Marcado Para Morrer é tão consciente disso, que o seu resultado alcança algo
diferente do que o cinema já viu. Algo que vai além, que não cabe em
classificações. Uma obra para sempre.
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Diego Bauer é diretor, ator, roteirista, curador e produtor cultural. É um dos sócios da Artrupe Produções, e atua nas áreas de cinema e teatro. É um dos diretores da série Boto, premiada no Prodav 05/2015. Dirigiu 3 curtas-metragens e um videoclipe. Em 2018 foi curador e produtor do I Festival Olhar do Norte. Atuou em 2 espetáculos de teatro, apresentando-se em Manaus, Itacoatiara, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Escreve sobre cinema no Cine Set desde 2013.
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Diego Bauer é diretor, ator, roteirista, curador e produtor cultural. É um dos sócios da Artrupe Produções, e atua nas áreas de cinema e teatro. É um dos diretores da série Boto, premiada no Prodav 05/2015. Dirigiu 3 curtas-metragens e um videoclipe. Em 2018 foi curador e produtor do I Festival Olhar do Norte. Atuou em 2 espetáculos de teatro, apresentando-se em Manaus, Itacoatiara, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Escreve sobre cinema no Cine Set desde 2013.
Texto e imagem reproduzidos do site: cineset.com.br
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