Obra monumental, "O Encouraçado Potemkin"
é
clássico do cinema russo
Publicado originalmente no site da REVISTA CONTINENTE, em 1
de maio de 2017
Das Escadarias de Odessa para o Mundo
Por Alysson Oliveira
Conteúdo vinculado ao especial da ed. 197 - maio 2017
Não dá para comprar a revolução. Não dá para fazer a
revolução. Só se pode estar na revolução. Está no seu espírito, ou não
está em lugar nenhum. (Ursula K. LeGuin, escritora de ficção científica
norte-americana).
Poucos cenários são tão emblemáticos quanto a escadaria da
cidade de Odessa, na Ucrânia, em O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein.
Seus degraus são o palco que sedimentou uma imagem icônica do cinema. Não é
apenas a narrativa de tensão de classe explícita que estabeleceu a perenidade
do longa de 1925, mas como seu diretor usava ali uma técnica de montagem que
ele mesmo teorizou. Depois daqueles tiros, aqueles corpos caindo, e todo um
extrato da sociedade lutando contra uma história de opressão e tirania, nunca
mais o cinema, nem o mundo, foi o mesmo.
Embora a Revolução de 1917 e o que veio depois sejam divisores
nas águas do cinema russo, é inegável que já existia um cinema produzido no
país dos czares. Porém, a impressão que se tem hoje é de que o cinema passou a
existir por lá só depois do surgimento da União Soviética, só com Eisenstein e
Dziga Vertov. Como se sabe, uma profunda mudança na base da sociedade –
política, economia – reverberará, é claro, nas outras estruturas, como a
cultura.
Fundados no final da primeira década do século XX, segundo o
historiador do cinema David Parkinson, em seu History of film, os estúdios
russos estavam “sob a censura czarista e tinham produção limitada de
entretenimento medíocre e escapista”. O primeiro filme russo de que se tem
notícia é o curta Stenka Razine, de Vladimir Romashkov, sobre um grupo de foras
da lei vivendo às margens do Rio Volga. Poucos anos depois, o país já contava
com mais de mil salas de exibição, mas a maior parte do que era exibido nas
telas russas era de filmes importados.
Foi nos anos entre a Revolução e a ascensão de Stálin que os
cineastas soviéticos foram capazes de inventar uma nova linguagem que
influencia a arte cinematográfica até hoje. Eisenstein e Vertov perceberam como
ordenar e combinar imagens a fim de transmitir uma ideia, mais do que
simplesmente contar uma história. Assim, perceberam que ritmo de montagem e
música, por exemplo, seriam capazes de transmitir ou evidenciar emoções.
Em 1919, a indústria cinematográfica foi nacionalizada; foi
criada, também, a primeira escola de cinema do mundo, em Moscou, a VGIK, que
começou treinando atores, e existe até hoje. A partir daí, a produção
cinematográfica pôde ser usada como forma de educação e propaganda. O cinema
deixa de lado a ortodoxia católica, que moldava a sociedade russa
pré-revolucionária, para se estabelecer como parte da promessa comunista de um
mundo melhor. As obras dessa época eram claramente propagandísticas, exaltando
a coragem e força do povo soviético.
Ainda assim, a produção cinematográfica foi capaz de levar
questões políticas à estética. “Os cineastas russos participavam de um
movimento político que acreditava na possibilidade de libertar a arte da
condição de separação e isolamento na qual havia colocado a cultura ‘burguesa’
e de fazer dela um dos elementos propulsores da construção de uma nova
sociedade”, conforme aponta o historiador italiano de cinema Antonio Costa, em
seu livro Compreender o cinema.
O cinema czarista russo era bem menos avançado, técnica e
esteticamente, do que aquele praticado no restante da Europa, e a Revolução
acabou, é claro, por abortar qualquer desenvolvimento que poderia vir a ele. O
impacto desse cinema em seu púbico era imenso, uma vez que este era constituído
sobretudo pelo proletariado urbano e rural sem contato com a tecnologia, dentro
de um contexto em que o cinema era um entretenimento produzido para aplacar o
tédio e o cansaço do dia de trabalho.
A guerra civil contrarrevolucionária que se seguiu ao
levante de 1917 foi uma das causas do fracasso da tentativa de nacionalização
do cinema, devido à grande destruição do país e às inúmeras mortes,
especialmente do proletariado urbano, que foi quase destruído como classe. A
partir disso, o governo bolchevique precisou não apenas reconstruir a Rússia,
como também criar uma consciência da classe trabalhadora.
Nesse contexto, o cinema se tornou uma ferramenta de
propaganda capaz de falar às massas com facilidade, embora a ruptura
sócio-histórica tenha também imposto transformações ao cinema na transição do
governo czarista para o soviético. A perda de profissionais e materiais forçou a
nova geração de jovens cineastas praticamente a inaugurar um novo tipo de
cinema, agora, abandonando o passado, e mirando no futuro.
A ausência de diretores veteranos representativos permitiu a
cineastas como Eisenstein, Vertov, Lev Kuleshov e Vsevolod Pudovkin focarem na
montagem. O cinema soviético nasceu da descontinuidade e se fortaleceu em seus
propósitos ideológicos e políticos. Além da produção cinematográfica, cineastas
desse período desenvolveram a teoria, ligada ao marxismo, de que o meio seria
capaz de fomentar não apenas a consciência política necessária às classes
trabalhadoras, como também ser um canal de agitação. O termo usado para
denominar essa junção de agitação e propaganda era, justamente, agitprop .
A MONTAGEM
O conceito de montagem dentro do cinema vem da indústria
moderna, e está ligado à construção de uma peça a partir de outras já prontas.
Dessa forma, a produção cinematográfica passa a ser também indústria, processo
de produção, e o cineasta não é visto mais como um artista, uma categoria
elevada acima do restante da humanidade, mas como um produtor, outro
trabalhador qualquer.
Kuleshov, por exemplo, via cada plano como um tijolo de uma
construção maior. Eisenstein, por outro lado, chamava de “célula da montagem”,
ou seja, muito mais do que apenas um simples elemento, era algo vivo, e a
junção dos planos promoveria um ponto de vista. Sua técnica ficou conhecida,
entre outros nomes, como “montagem dialética”.
Filho de uma família de classe média, e estudante de
engenharia, Eisenstein se envolveu com o Exército Vermelho, na guerra civil, e
acabou abandonando a faculdade em 1920, até entrar para o teatro engajado,
chegando a trabalhar com nomes de peso como Vsevolod Meyerhold, e poucos anos
depois começou sua carreira como teórico do cinema e montador de novas versões
de filmes estrangeiros para serem exibidos na União Soviética.
Nesse trabalho, o diretor pôde ter contato, em primeira mão
e sem qualquer censura, com filmes hollywoodianos clássicos. Acredita-se que
ele esteve presente na reedição de filmes como Intolerância, de D. W. Griffith,
entre outros. Apesar das mudanças devido à censura (uma delas, por exemplo, foi
a remoção por completo do epílogo cristão), o filme teve um impacto enorme não
apenas no cinema soviético, como em toda a sociedade. Conta-se que o próprio
Lênin queria o cineasta americano como chefe da indústria cinematográfica
soviética, e isso não por questões estéticas, mas por perceber que, como o
diretor, ele era capaz de transformar um filme em um artefato de agitação
política. Griffith acabou sendo uma influência assumida para quase todos os
cineastas mais importantes desse período na URSS.
Quando começou a atuar como cineasta, Eisenstein filmou
peças de teatro, mas subvertendo a maneira mais usual, já experimentando na
edição, desconstruindo a trama, e usando artifícios que davam uma comicidade ao
filme, ao que ele chamou de “montagem das atrações”, formulada em parceria com
Sergei Yutkevich – enfim, uma provocação ao cinema tradicional.
Mas foi com a montagem dialética – a qual, grosso modo,
alterna imagens de duas sequências distintas – que Eisenstein se destacou. Um
dos maiores exemplos disso é a famosa cena da Escadaria de Odessa, na quarta
parte de seu O Encouraçado Potemkin. Cria-se, inicialmente, uma dialética entre
as cenas ensolaradas de pessoas acompanhando e saudando embarcações dos mais
diversos tamanhos. Até que essas imagens idílicas são subitamente substituídas
por soldados do czar atirando contra pessoas nos degraus.
A primeira imagem, do rosto de uma mulher que perde o
equilíbrio, já estabelece o novo tom, o do caos. As pessoas desesperadas descem
pela escadaria, enquanto os soldados, enfileirados como uma muralha, seguem
atrás. Os planos abertos ser alternam a outros mais fechados de pessoas caindo,
desesperadas, tentando se salvar. A dialética de vida e morte se intercala com
imagens da população (câmera em movimento tremulante) e de soldados (câmera
sempre firme). Até culminar na mãe exasperada com o filho ferido no colo
caminhando em direção à guarda, pedindo que não atirem. O episódio, no entanto,
terá seu clímax com outra figura materna, que, mortalmente ferida com um tiro,
deixa escapar o carrinho de seu bebê, e este desce penosamente degrau por
degrau, até tombar no final da escadaria, ao mesmo tempo que uma outra mulher é
ferida no rosto.
A escolha da escadaria como cenário, simbolicamente, já vem
carregada de significado. Estabelece entre cada uma das pontas (a de cima e a
de baixo) uma dinâmica de classe social, de tentativa de ascensão frustrada a
balas pelos soldados dos donos do poder. A tensão da alternância das imagens é
a materialização formal da mesma tensão entre os estratos da sociedade,
transmitindo ao público uma sensação de choque, mas, ao mesmo tempo, fascinação
diante do destino trágico de toda uma população. Obviamente, embora isso tudo
esteja distante da montagem das atrações, há um princípio unificador entre os
dois tipos de edição: uma espécie de hipnose. É impossível desconcentrar e
parar de prestar atenção numa cena dessas.
A descontinuidade entre dois planos, algo que no presente
está naturalizado, era inovador, e em O Encouraçado Potemkin nos causa até hoje
estranhamento e desconforto emocional. Eisenstein acreditava que os filmes
deveriam ser construídos por meio de uma série de choques ou conflitos – uma
ideia inspirada na dialética hegeliana. Nessa ideia, o cineasta materializa a
própria Revolução de 1917, com o embate entre dois opostos: os donos do poder e
da propriedade e a classe operária. A síntese seria, ao menos em teoria, a
ascensão de um novo estado dos trabalhadores.
A alternância entre planos abertos e fechados de toda a
sequência, por exemplo, cristaliza na forma o conteúdo sócio-histórico da
dialética da Revolução. Esse é exatamente o tipo de edição que o próprio
Griffith não faria, pois chamaria a atenção para a montagem, distraindo o
espectador de sua imersão no filme – ou seja, quebraria o efeito da mentira
realista do cinema. Eisenstein, por sua vez, não se interessava por essa
ilusão, e trabalhou com uma montagem de conflitos, contrapondo contrários de um
momento a outro.
REFERÊNCIA E LEGADO
As ideias do russo sobre montagem, conflito e desconforto
persistem até hoje. Filmes, até norte-americanos, se inspiram nessa forma para
criar conflito. O exemplo mais claro está em Os intocáveis, de Brian De Palma,
em que o episódio do carrinho de bebê da escadaria de Odessa é copiado plano a
plano. Francis Ford Coppola também se vale de algo bem parecido em seu primeiro
O poderoso chefão, intercalando imagens de um batizado com a de diversos
assassinatos de inimigos da família de mafiosos protagonistas do filme.
O legado do cinema soviético, no entanto, está longe de
perder sua força. “Diretores como Eisenstein ainda terão muito a ‘contar’ não
apenas para nós, mas para as gerações futuras. Ainda que ele tivesse apenas
sistematizado a teoria da montagem, já seria o suficiente! Ocorre que
Eisenstein não é ‘apenas’ um diretor de cinema (não que isso seja pouco). Ele
foi um dos grandes mestres universais da arte, um dos maiores teóricos da arte
(e não apenas do cinema). Sua erudição e capacidade de reflexão e articulação
das ideias de forma profunda e criativa é incomparável dentro de toda a
cinematografia (e não apenas da cinematografia russa). Artistas com essas
características são inigualáveis e suas obras atravessam séculos, a cada vez
que são vistas, lidas e estudadas, mostram novas nuances, ainda que séculos os
separem das novas gerações”, explica Neide Jallageas, editora do site
brasileiro KinoRuss, e doutora pela USP, onde estudou o cinema de Andrei
Tarkovsky.
Texto e imagem do site: revistacontinente.com.br
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