sábado, 25 de novembro de 2023

Crítica: NAPOLEÃO (2023), por Fernando Campos

Publicado originalmente no site PLANO CRÍTICO, em 23 de novembro de 2023 

Poder e submissão.

Por Fernando Campos  

“França, exército e Josephine”, foram essas as últimas palavras proferidas por Napoleão Bonaparte antes de morrer. Possivelmente, as únicas três coisas que amou na vida. O diretor Ridley Scott faz questão de trazer essa passagem ao término de Napoleão, sintetizando duas horas e meia de duração em uma única frase. O propósito do cineasta aqui está em promover uma reflexão sobre as motivações da ambição incontrolável do personagem, mais do que varrer todos os acontecimentos da vida dele.

O longa acompanha a ascensão e queda de Napoleão (Joaquim Phoenix), que atingiu o status de imperador  e depois jogado ao exílio. Quem viveu com ele esse arco de glória e fracasso foi a única pessoa capaz de domá-lo, Josephine (Vanessa Kirby), sua esposa. No entanto, a incapacidade da companheira de dar um herdeiro para Bonaparte, algo fundamental na estratégia política do militar, o faz reavaliar o casamento.

A proposta do filme é construir uma espécie de triângulo amoroso entre o casal e a própria França. Vemos o protagonista deixando sua casa para batalhar pelo país, ao mesmo tempo em que o testemunhamos abdicar de compromissos de estado para estar ao lado da esposa. Como parte da estratégia, passagens fundamentais da história de Bonaparte, como a Campanha do Egito, são deixadas de lado para focar nas cartas trocadas entre ele e Josephine. Inclusive, não é coincidência que as cenas ambientadas em Cairo tenham uma passagem tão curta, visto que o protagonista volta para a terra natal justamente atrás da amada. Como é praxe em obras com triângulos, o arco culmina no protagonista precisando decidir qual dos amores vai abraçar e quais as consequências.

O foco do roteiro, escrito por David Scarpa, evoca uma série de ironias em torno de Napoleão. Enquanto age como tirano na França, se mostra submisso com Josephine, que tranquilamente profere frases como: “sem mim você não é nada” ou “depois que provar o que está debaixo da minha  saia não vai querer outra coisa”. Se o imperador era implacável com traidores políticos, perdoava adultério dentro de casa. A graça está em imaginar até que ponto o ambiente interno influenciava o externo e vice-versa.

Existe até um flerte com o erotismo aqui. Vemos como Napoleão era muito mais movido por impulsos irracionais, como querer parecer para a esposa um ser destinado à glória, do que por pragmatismo. Há ainda um jogo de submissão entre os dois que ressalta camadas interessantes de ambos. Imponente no ambiente político, o protagonista ansiava por carinho e acolhimento no relacionamento, com uma opção curiosa de Phoenix em retratá-lo quase que como um jovem carente. Enquanto Josephine vê no marido a única pessoa que não a subestimou na vida e uma oportunidade de experimentar o poder, consciente da noção influencia que exerce sobre ele; com Vanessa Kirby a representando com um olhar elevado e suposta indiferença que ressalta o prazer da mulher de se ver acima dos demais. A cena do coroamento, por exemplo, parece uma espécie de extensão dos fetiches do protagonista, mostrando ele quebrando protocolos para coroá-la. Por falar em fetiche, repare como Napoleão jamais tira seu uniforme, nem mesmo durante o sexo, ressaltando uma figura obcecada por transmitir uma imagem de controle e dominância, especialmente para a mulher.

Mas a ousada proposta é sabotada por uma direção que beira o desastre. Mesmo optando por uma narrativa diferente se tratando de biografias épicas, Scott parece não ter coragem de abraçar por completo a relação insana de Napoleão e Josephine, perdendo tempo e recurso demais com informações e cenas jogadas que não trazem dramaticidade nenhuma ao ciclo dos protagonistas. Nesse caso, a sensação é parecida com a do último trabalho do diretor, Casa Gucci, parecendo uma obra perdida em qual tom adotar. Essa confusão pode ser observada na trilha sonora de Martin Phillips por exemplo. Enquanto as faixas Josephine e Ladies in Waiting transmitem sedução com uma valsa que flerta com o tango, Austerlitz Kyrie parece ter saído diretamente de um filme de Terrence Malick.

Se analisados separadamente, é justo dizer que os elementos técnicos da obra possuem um padrão de qualidade aceitável, ao mesmo tempo em que não acrescentam nada esteticamente ao que o filme propõe. Longe de querer colocar roteiro acima da decupagem, mas quando essas áreas parecem entrar em conflito dentro da mesma obra, há um claro problema de direção. Por exemplo, se o texto volta a atenção para a conturbada relação dos protagonistas, viciados em disputas de poder, a direção de fotografia não possui nenhuma sedução ou provocação. A paleta aqui surge acinzentada e com pouco contraste, trazendo uma estranha sensação de indiferença. Mesmo que o objetivo da fotografia fosse ressaltar o período de violência e miséria na França com tons mórbidos, poderia ao menos inverter a lógica nos momentos íntimos do casal, o que não ocorre.

Já a montagem atrapalha ainda mais ao inserir cenas que parecem estar na película apenas para passar no teste de precisão histórica. Há uma suposta relação conturbada de Napoleão com a mãe que é citada três vezes e simplesmente some da narrativa, mesmo quando a matriarca é inserida em cena. O mesmo ocorre entre ele e o irmão. Sem contar na aproximação de Josephine com o Czar Alexandre, momento vendido como importante e prontamente descartado. Aparentemente, o medo de Scott de não apresentar uma obra historicamente respeitável sabotou uma das propostas mais ousadas da filmografia do cineasta.

Antes mesmo da estreia de Napoleão, Ridley Scott já anunciou um corte do diretor de 4 horas que será exibido no streaming. Talvez, essa nova versão resolva os problemas da película distribuída no circuito comercial. Se tratando de Scott, vale o voto de confiança, visto que o mesmo ocorreu com Blade Runner. Porém, o resultado levado aos cinemas é o de um diretor que, novamente, se atrapalha ao procurar o tom certo para o material que tem em mãos.

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Napoleão (Napoleon) – EUA, Reino Unido e Malta, 2023

Direção: Ridley Scott

Roteiro: David Scarpa

Elenco: Joaquin Phoenix, Vanessa Kirby, Tahar Rahim, John Hollingworth, Youssef Kerkour, Davide Tucci, Edouard Philipponnat, Ludivine Sagnier, Matthew Needham, Erin Ainsworth, Thom Ashley, Anna Mawn, Gavin Spokes, Jonathan Barnwell, Hannah Flynn, Phil Cornwell, Cormac Hyde-Corrin, Cesare Taurasi, Arthur McBain, David Verrey

Duração: 158 min

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 * Fernando Campos - Depois que fui apresentado para a família Corleone não consegui me desapegar da cinefilia. Caso goste de "O Poderoso Chefão" já é um belo início para nos darmos bem. Estudo jornalismo, mas amo mesmo escrever críticas cinematográficas. Vejo no cinema muito mais que uma arte, mas uma forma ensinar, inspirar, e o mais importante, emocionar. Por isso escrevo, para tentar incentivar às pessoas que busquem se aprofundar nesse universo tão rico. Não tenho preconceito com nenhum gênero, só com o Michael Bay mesmo.

Texto reproduzido do site: www planocritico com

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