Bernardo Vorobow em Nova York, em 2008
Foto: Carlos Adriano
Dossiê - BERNARDO VOROBOW
Um cinéfilo amoroso e criador
Por Carlos Adriano
Para uma pessoa extraordinária como ele, o cinema era um
jeito de celebrar a descoberta das maravilhas e suportar a condição misteriosa
da vida
Bernardo Vorobow me ensinou a amar o cinema, a ver cinema e
a fazer cinema, entendendo a conjugação destes três verbos (no mesmo eixo de
uma manivela triádica) sob a égide e a elegia do cinema como arquivo. Não foi a
menor das virtudes deste grande e amoroso curador de programação de cinema
(1946-2009).
Como um cineasta que trabalha com a reapropriação do arquivo
(assim interpreto o gênero chamado “found footage”, cuja estrutura articula
fragmentos de filmes), um programador de cinema também trabalha com a montagem
de história(s) do cinema, ao compor um programa de filmes para ser exibido
sobre uma tela diante da platéia.
Bernardo me ensinou a amar os arquivos do cinema como
memória viva, vivente, comovente, em movimento. Penso nele como um estímulo
formador, crucial e original, para eu ter me dedicado aos filmes de
reapropriação de arquivo desde 1994. Os filmes que fizemos operam sobre pedaços
esquecidos ou desconhecidos da cultura brasileira.
A recuperação e a reinvenção destes artefatos, sua
re/produção mesma, e os filmes afinal feitos só foram possíveis graças a
Bernardo, que sempre atuou como produtor, mas sempre foi muito mais que isso.
Juntos, decidíamos tudo: pesquisa, roteiro, orçamento, elaboração do projeto, filmagem,
montagem, finalização, divulgação e exibição.
A contribuição decisiva e determinante de Bernardo ao meu
nascimento, crescimento e desenvolvimento na “profissão” não foi menos
inestimável justamente por ele ter me contratado para o meu primeiro emprego,
logo que ingressei no curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, em 1986.
Comecei a trabalhar com Bernardo no departamento de difusão
que ele criara anos antes na Cinemateca Brasileira. Entrei como estagiário da
instituição, que então pertencia à Fundação Nacional Pró-Memória. O
departamento era responsável pela programação de mostras, circulação de filmes
do acervo disponíveis para empréstimo e pela divulgação.
Bernardo foi sempre, do começo ao fim, um realizador com
espírito, posição e consciência de cinemateca. Identificado à causa para valer,
de verdade. Em toda sua trajetória, a ideologia da exibição de filmes estava
ajustada a uma ideia de preservação e valorização da memória cinematográfica.
Com muita justiça e propriedade, Carlos Reichenbach cravou em seu blog:
“Bernardo, o senhor Cinemateca”.
Sem a pretensão exaustiva das genealogias, há uma linhagem
de tradição que poderia ser traçada: Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977),
Jacques Ledoux (1921-1988) e Henri Langlois (1914-1977), respectivamente
curadores (e mentores) da Cinemateca Brasileira, da Cinémathèque Royale de Belgique
e da Cinématheque Française.
Não é exagero dizer que sem Langlois (e sem André Bazin), a
Nouvelle Vague simplesmente não existiria. Para a geração de Godard, Rivette,
Rohmer (que influenciaria os cinemas novos de todo mundo, do Brasil ao Japão, da
Alemanha aos Estados Unidos), o ato de fazer filmes era indissociável dos atos
de ver e pensar sobre eles.
Se, para a Nouvelle Vague, fazer crítica já era fazer
filmes, posso dizer que programar filmes também é fazer filmes; é fazer cinema
e fazer história do cinema. Não apenas porque um filme só existe de fato na
tela. Na lata, é rolo morto, sujeito ao mofo. Como dizia Borges, um livro na
estante é só mais um objeto entre outros, mas quando é aberto e encontra o seu
leitor, dá-se daí o fato estético.
A cinefilia é uma condição básica para a crítica de cinema e
para a produção do cinema de autor. Uma programação de filmes permite que o
espectador (o leitor de imagens e sons) tenha contato e conhecimento com a obra
cinematográfica, permite uma reflexão e uma sensação sobre a obra e seu
contexto em cotejo com outras obras, permite enfim a inteligibilidade do
cinema. Um filme aberto e projetado na tela gera o fato estético.
Fazer uma programação (mostra de filmes) envolve diversas e
complexas fases que concentram uma noção de cinema como organismo social e
museu imaginário. Dito assim como vai a seguir, é uma simplificação brutal de
um ofício que (quando exercido seriamente) exige doses generosas de repertório,
sensibilidade e amor ao cinema.
Parte-se de um conceito: um assunto ou tema, que se
desenvolve numa lista de filmes afinados. Procede-se à pesquisa: coleta de
dados técnicos, como duração e sinopse dos filmes escolhidos. E à produção:
localização e prospecção de cópias dos filmes, negociação com distribuidores. E
à divulgação pela imprensa. Até chegar à exibição, com seu aparato e logística,
da cabine de projeção à gerência da sala de exibição.
O programa criativo no começo do cinema
Novos estudos históricos sobre o cinema dos primeiros tempos
(1894-1914) demonstram que o exibidor tinha um papel criativo ao compor o
programa de exibição de filmes, não só pela escolha dos títulos e por sua
ordenação na sessão. A noção de “práticas de tela” (cunhada por Charles Musser)
estende as matrizes dessa atuação criativa a raízes no projecionista de
lanterna mágica e ao narrador que explicava os filmes mudos para a platéia
(chamado de “lecturer” ou “bonimenteur”).
A chamada “nova história” do cinema não só tornou o termo
“cinema primitivo” politica, economica, estetica e historicamente incorreto. A
nova história (que, aliás, já não é mais tão nova assim, pois sua lição já está
em cartaz há 30 anos) também trouxe novos parâmetros para se pensar e conhecer
a própria história do cinema, segundo outra perspectiva, mais complexa, sem
reducionismos ou simplismos genealógicos.
A partir de um criterioso estudo do “cinema das origens” ou
“primeiro cinema” (“early cinema”), foi possível comprovar que a história não
era um produto positivista que explicava como o filme “evoluiu” a partir de
estágios “inferiores” e chegou à culminação do que conhecemos hoje, um
entretenimento industrial tal como codificado nos anos 20 do século passado.
Antes da última década do século 19, a cultura visual das imagens em movimento
sempre foi sofisticada, em termos de sua técnica e de sua sedução. A história
do cinema não seria mais teleologia nem tautologia.
Essa nova história começou em 1978, numa conferência em
Brighton (Inglaterra), durante o congresso da Federação Internacional dos
Arquivos de Filmes, quando um conjunto de obras dos primórdios foi apreciado em
novo contexto. Pesquisadores como André Gaudreault, Charles Musser, Eileen
Bowser, Paul C. Spehr, Rick Altman, Thomas Elsaesser, Tom Gunning, entre
outros, recorreram a fontes primárias (jornais de época, catálogos e manuais de
produção, registros de patente, programas de exibição) para subsidiar a exegese
(e a visão) dos filmes e descobriram um continente perdido.
O cinema das origens prova que o cinema, ao escolher o
caminho rumo à domesticação conservadora, abandonou outros caminhos possíveis,
tão ou talvez mais interessantes. O que se perdeu, ao domar e industrializar a
inocência, foi um cinema que poderia ter sido, mas não foi. Simplificando
bastante a tese, o então primeiro cinema foi um cinema bastante original,com
características próprias e diferentes do cinema que virou narrativo.
Em sua origem, o cinema interpelava diretamente o
espectador, no contexto múltiplo e fascinante da modernidade de 1900 e seus
entretenimentos urbanos, tais como arcadas, feiras, teatros de vaudeville,
nickelodeons. Era um “cinema de atrações” (termo cunhado por Tom Gunning), que
acabou sendo domesticado pelas convenções do expediente narrativo. Como a
beleza convulsiva dos começos, o cinema das origens era selvagem e lúdico.
Nesse sentido, a mediação do exibidor era decisiva, na
medida em que a construção do programa de atrações (filmes variados, esquetes
cômicos, shows de magia, números musicais) atingia o sistema nervoso daquele
espectador que vivenciava os espetáculos da modernidade em seu nascedouro. E
são nos sentidos da mediação construtiva e da descoberta inaugural, mas também
em muitos outros, que articulo a constelação do exibidor dos primeiros tempos à
constelação dos programadores de cinematecas.
A tese de doutorado “O mutoscópio explica a invenção do
pensamento de Santos Dumont: cinema experimental de reapropriação de arquivo em
forma digital”, orientada pelo professor Ismail Xavier (2008, ECA-USP),
permitiu-me desenvolver o programa da nova história no terreno do “found
footage” e esboçar a ideia do alegorista do cinema-tempo como um catador benjaminiano
de filmes-ruínas, ou (talvez melhor) ruínas-filme.
Justamente escrevendo agora, deparo-me com uma dimensão
irremediável de trabalho como vida-ruína, fadados fragmentos de histórias.
Esboçar uma biografia é tarefa cúmplice do fracasso. Palavras não resumem a
vida de um homem, ensinou o prestidigitador Orson Welles. O enigma de uma
palavra ou o enigma de uma imagem são espectros refratários de luz e sombra no
espelho partido das catedrais do tempo.
Duas ou três coisas que sei dela
A expressão em inglês “labor of love”, que rima com “labor
of life”, é quase uma senha poética para o último desejo de cultivo amoroso da
obra de uma vida, fruto da dedicação de tempo e semente de um tributo que possa
suspender a condição do tempo. Mas nunca me será possível demonstrar o
suficiente do tributo nem poderei agradecê-lo o suficiente. Murmúrios sobre
coisas que não sei dela, ela (salve-se quem puder e souber), a sua vida.
Sinto imensa responsabilidade ao escrever este texto, por
tratar de quem sempre incentivou e elogiou minha escrita. Eis um texto em que
grita o silêncio, e faltam as palavras que ele merece, que façam justiça ao
honrar e ao reconhecer (e fazer conhecer) seu legado, inestimável. E sinto
imensa dificuldade de rememorar algo do que ele me contou para transcrever
aqui. Ainda mais no clamor do frio da hora.
Se tive a vantagem de partilhar de sua intimidade, sofro
agora a desvantagem da distância (não do distanciamento, que é elaboração da
consciência crítica; mas da distância mesma, física) instaurada, irrevogável,
com a perda. Nos agradecimentos de minha tese honrei o “trabalho que desenvolvo
com Bernardo Vorobow (uma constelação de ações e documentações a partir da
produção e da exibição de filmes)”.
E concluía: “Merecer sua amizade justifica-me a vida”. Oito
anos antes, em agosto de 2000, Caetano Veloso (justificando alguma premeditada
acusação de sua reiterada narrativa na primeira pessoa) terminava um texto
sobre Pina Bausch (na “Folha de S. Paulo”) com palavras que eu gostaria de
poder dizer para e sobre Bernardo: “A quem me dá a vida não posso oferecer nada
menos do que isto: a minha vida”.
Como escorreguei em digressões que foram do teor da alegoria
ao tom do melodrama, não me esquivarei de uma metáfora sentimental. Creio que,
pelo que Bernardo fez pela difusão da cultura cinematográfica, toda vez que
cinéfilos sensíveis se reunirem ritualmente para uma sessão, a chama luminosa
de Bernardo se acenderá junto com o dispositivo de projeção. Na aorta do
coração, do arco voltaico de “Crepúsculo dos Deuses” (1950, Billy Wilder) ao
carvão (cinzas que queimam) de “Persona” (1966, Ingmar Bergman).
Se hoje temos aí consolidado um circuito cultural de
exibição de filmes (às vezes, em certos casos, não mais tão alternativo, não
mais tão altruísta, e mesmo com contrafações e desmandos que vexariam os
pioneiros), sei que a constituição de tal circuito, que inclui a formação e a
manutenção do repertório de gerações de cinéfilos, só ocorreu com a
participação e a contribuição, seminais, de Bernardo no processo.
E é porque creio que a sala de cinema fica escura para que a
projeção de um filme nos ilumine. Porque sei que, com suas programações de
cinema, Bernardo iluminou inúmeros cinéfilos ao revelar-lhes os encantos de
outros mundos e iluminou inúmeros cineastas e técnicos ao reconhecer-lhes os
serviços prestados.
Haverá ainda uma história a ser escrita. Nem tenho a
pretensão, nem as condições, aqui e agora, de conseguir esgotar uma história
tão plena de riqueza e entusiasmo como a história de Bernardo com, no e pelo
cinema. Nem me preparei para ser seu “biógrafo”. No falho flashback, sem
direito a replay, muitos fotogramas me faltam, como aqueles que poderiam ter
sido e não foram, e aqueles que definitivamente se foram.
Rememoro algumas poucas coisas que ele me contou e outras
poucas que testemunhei, para que casos não caiam no ocaso ou calem mudos no
olvido. É ato de remoer entranhas. Recordar episódios esparsos, espectros do
tempo, sem negar o caráter de cacos quebrados. Que a recuperação, além de testemunho,
seja também flexão de rememorar e recordar, que se conjugam como o saber de
cor. Que é saber do coração.
Esta retroprojeção da
rememória não se faz sem a consciência da alegoria das ruínas. E de que a
estrutura de passagens, guiadas pelo anjo que nos dá as costas, é feita de
lacunas e anacolutos. Dialética da incerteza de que os casos serão
reconstruídos de restos, fragmentos irremediavelmente incompletos que poderiam
reimaginar alguma história perdida. Como a vida. Ida. É o tempo redescoberto.
São os pedaços de material filmado encontrados.
Antes da revolução
Bernardo nasceu na cidade de São Paulo, mas passou parte da
infância e adolescência no interior, na cidade de Sorocaba. Ele gostava de
brincar, com graça mítica, que nascera no Éden, cidadezinha próxima de
Sorocaba. Ali, antes de fazer história em São Paulo, veio a animar sessões de
cineclube e a escrever críticas de cinema.
Como acontece com as narrativas de formação, eventos de
Sorocaba marcariam o porvir do menino e moldariam sinais ou senhas de
referência. Seu pai, Gricha, era médico e fotógrafo amador. Tinha um
laboratório fotográfico no porão de casa, e o filho sempre o ajudava com os
banhos de revelação, fixação e ampliação das imagens de celulóide.
O vírus do arquivo já estava inoculado: ele possuía uma
acalentada coleção de recortes e revistas de cinema. A chama da defesa do
cinema brasileiro já vingava: ele convenceu o gerente que cancelava as sessões
de “A Grande Cidade” (1966, Carlos Diegues) “por falta de público” a fazer uma
sessão para ele, insistente e solitário espectador pagante.
Já em São Paulo, em 1966/1967, enquanto se preparava para o
vestibular, foi diretor cultural do então famoso Cursinho do Grêmio. Sua
programação de filmes já impressionava pela agitação e inquietação. Ali,
começou de modo mais sistemático seus contatos com cineastas, distribuidoras,
serviços culturais de consulados e a cinemateca. Já era engajado politicamente
na militância de esquerda, e viria a ser preso duas vezes.
Como sua professora de francês era amiga do diretor do
filme, Bernardo foi integrar a equipe de produção (sem ser creditado nos
letreiros) de “O Bandido da Luz Vermelha” (1968, Rogério Sganzerla). Em 1968,
publicava no jornal “Última Hora” críticas de cinema que o editor João
Apolinário chamava de “dialéticas” (por interromper a análise com digressões e
contradições). E, como lembra a professora de filosofia Olgária Matos, ele
estava nas barricadas de 68 na rua Maria Antonia.
Seu primeiro curta-metragem 16 mm, “Depois da Lua ou
Obrigado, Chacrinha” (1968) foi interditado pela censura, sob a acusação de
fazer apologia da guerrilha e do amor livre. A proibição causou furor no
Festival de Cinema do “Jornal do Brasil” (o lendário Festival JB), foi parar na
capa do jornal e fez espalhar grafites por paredes e muros do Rio de Janeiro,
pedindo sua liberação.
Tendo ingressado na ECA-USP, acabou trancando a matrícula
por um ano. A família o enviou para trabalhar num kibutz em Israel, de onde foi
“expulso” por defender o direito dos palestinos à água (a construção de uma
barreira no kibutz cortou-lhes o acesso ao rio). Após Israel, deu um giro pela
Europa e passou por Istambul, Londres e Roma.
Em 1969/1970, ele impressionava professores e alunos ao
aparecer nos corredores da ECA com latas de filmes ainda inéditos nos ombros.
Certa vez, levou para ser exibido “Um Anjo Mau” (1971, Roberto Santos), para
surpresa do próprio diretor do filme, então professor na escola. Durante o
curso, além de programar, Bernardo dirigiu três filmes.
De produção independente, o média-metragem 35 mm “O
Discurso” (1972) foi fotografado por Ozualdo Candeias. Críticos que não
suportavam nem os filmes de Candeias nem o próprio creditaram a Bernardo a
criação de um “mito” (ou “monstro”, diziam os detratores do diretor), por ele
ter sido o primeiro a exibir mostras e filmes de Candeias no âmbito dito nobre
de cinematecas (SAC, MIS). A cópia master de “A Margem” (1967), que o preservou
do desaparecimento, foi feita e paga por Bernardo.
Dois outros curtas 16 mm foram produzidos no curso de cinema
da ECA. “Minha Escola” (1973) foi censurado pela reitoria da USP, por conta de
entrevistas explosivas, teve seus negativos confiscados e ficou inacabado.
“Cinema Paulista: Ovo de Codorna” (1974), filme de conclusão de curso, é um
espantoso ensaio sobre a interpenetração de cinema, boêmia, marginalidade e
prostituição naquele perímetro delimitado pelas ruas do Triunfo, Aurora,
Vitória e arredores.
Dizem que foi histórico o seminário que, ainda como aluno do
básico (comunicações), no primeiro ano, ele preparou sobre cinema brasileiro.
Graduou-se na segunda turma de cinema da ECA em 1974. E ali, com uma pioneira
dissertação sobre o cinema da Boca do Lixo, pretendia fazer pós-graduação, mas
foi impedido pelo chefe do setor.
Pesquisadores e acadêmicos reconheciam que Bernardo era um
dos raros a conseguir trânsito fácil entre os dois mundos, o dos “intelectuais
do cinema” e o dos “operários do cinema da Boca”. O pessoal da Boca em geral
via aqueles que se aproximavam de fora com certa desconfiança, e às vezes até
desprezo, mas nutriam afeição e respeito por aquele jovem jocoso, a quem
chamavam de “o poeta da cinemateca”.
Limite
Em meados dos anos 50, após conturbada estréia no cine
Capitólio, na Cinelândia carioca, “Limite” (1931, Mario Peixoto) teve uma
última exibição, na Faculdade Nacional de Filosofia (Rio de Janeiro), onde
Plínio Sussekind Rocha era catedrático. Até 1964, o filme foi recuperado e
guardado por Plínio no armário da apropriada sala de mecânica celeste. A partir
de 1958-1959, Saulo Pereira de Mello incumbiu-se da restauração, finalizada em
1979. Em 1981, a Embrafilme repôs o filme em circulação.
Creio que o primeiro retorno de “Limite” à projeção, antes
da conclusão da restauração e da distribuição da Embrafilme, foi também num
ambiente universitário. Após procurar Plínio no Rio de Janeiro, o então aluno
do curso de cinema da ECA-USP Bernardo foi aconselhado pelo mesmo a falar com
Saulo.
O moço era fascinado por cinema e também por seus mitos. E
“Limite” era “o” mito, invisível, do cinema nacional. No episódio desse
encontro, vislumbro uma sintonia de antecipação à sua futura obra de programar
filmes na Sociedade Amigos da Cinemateca, no Museu de Arte Contemporânea da
USP, no Museu da Imagem e do Som, na Cinemateca Brasileira.
Após algumas tardes tomando chá com Saulo, surgiu a ideia de
se fazer uma exibição da cópia recuperada ainda-em-progresso na aula de Paulo
Emilio Salles Gomes. Em alguma manhã perdida no tempo, ali por volta de 1972 ou
1973, houve a projeção, que alcançou proporções inesperadas e traumáticas.
A sala da ECA ficou lotada, com a presença de cineastas
(inclusive vindos do Rio) e, tragicamente, da imprensa. Para desgosto de Saulo
e constrangimento de Bernardo, o “Jornal da Tarde” estampou no dia seguinte uma
longa matéria repleta de fotos. Até hoje não se sabe quem e como vazou uma
exibição que deveria ser restrita a uma aula.
Por defeito de ofício e por apreço à “montagem de atrações”,
não resisto a ver uma conexão entre a ponta de Edgar Brazil em “Limite”, como
espectador numa sala de cinema, e a ponta de Bernardo em “Lilian M.: Relatório
Confidencial” (1975, Carlos Reichenbach), como espectador filmado na salinha da
SAC –um fotógrafo, outro programador, cada um a seu a modo, visionários,
iluminando nossa visão do cinema.
O dragão da maldade contra o santo guerreiro
Ainda enquanto aluno da ECA, Bernardo foi convidado por Rudá
de Andrade (1931-2009), seu professor e um dos fundadores da Sociedade Amigos
da Cinemateca, para ser diretor técnico e de programação da SAC quando esta
funcionava numa salinha no subsolo do cine Belas Artes (onde seria a sala Mário
de Andrade), de 1969 a 1976. Foi um dos períodos gloriosos da SAC, com número
recorde de sócios (ele também fazia imprensa e passou a acumular a direção
administrativa), numa época histórica e heróica.
Antes da rua Consolação, com outra diretoria, a SAC
funcionou na rua 7 de abril. Por conta do período duro de repressão militar em
que vivia o Brasil, a censura às artes era implacável. Mas Bernardo acabou
criando um sistema que, sem contrariar a ordem dos desmandos do regime,
permitia que seu público pudesse assistir aos filmes banidos. O expediente foi
criado pela rotina renitente e reincidente do programador de cinema e pelo dom
diplomático de seu discurso, sua arte de conversa e convencimento.
Era um filme já conhecido do programador, dos espectadores,
dos censores. O filme era anunciado (às vezes com grande repercussão de
imprensa) e, na hora da sessão, os espectadores compareciam à salinha da SAC, e
os agentes da censura apareciam para apreender a cópia do filme. E não havia
sessão. Na manhã seguinte, Bernardo ia à delegacia de censura e negociava para
liberar e reaver a cópia. E conversava com os censores, argumentando sobre o
direito de se assistir a um filme numa cinemateca.
Em noites seguintes, com outro filme (ou o mesmo) toda essa
mesma situação se repetia. A repetição da cena perdurou por algumas semanas.
Com a frequência assídua do programador da SAC na delegacia e com a educada
resistência do moço que exibia aqueles filmes subversivos, o roteiro deu uma reviravolta
e, na medida impossível daqueles anos de chumbo, acabou em “happy end”, de
inacreditável e curiosa graça. E esta “solução” passou a ser a rotina de
exibição e censura na SAC.
O filme era anunciado (às vezes com grande repercussão de
imprensa) e, na hora da sessão, os espectadores compareciam à salinha da SAC e
os agentes da censura apareciam para apreender a cópia. Mas havia a sessão.
Enquanto o público assistia ao filme, Bernardo e os agentes atravessavam a rua
da Consolação para tomar um café, observando a hora do fim da sessão. Terminada
a projeção, os agentes apreendiam a cópia. Na manhã seguinte, Bernardo ia à
delegacia de censura e pegava a cópia de volta. Em noites seguintes, com outro
filme (ou o mesmo) toda essa mesma situação se repetia.
Tão memoráveis e históricas como as concorridas sessões da
SAC eram os encontros no Ponto 4, boteco pé-sujo em frente do cinema, na
calçada oposta, vizinho ao bar Riviera, outro pólo de encontro frequentado por
Bernardo. Por conta da atuação do programador e da atração que ele exercia na
SAC, o Ponto 4 virou um verdadeiro ponto de encontro para cineastas,
jornalistas, cinéfilos e afins, numa época que a boêmia sem culpa oferecia um
respiro pensante à barra pesada. A órbita desses bares ao redor do cinema e da
SAC virou até reportagem do crítico Rubens Ewald Filho na revista “Filme
Cultura”.
Aproveitando o movimento etílico-intelectual e girando a
câmera como se fosse um brinde, diga-se também que memoráveis e históricas eram
os encontros com Francisco Luiz de Almeida Salles (1912-1996), o Presidente
(assim chamado por ter sido presidente de várias instituições da cultura e do
cinema do país). Bernardo era amigo íntimo e assíduo de Almeida Salles, a quem
acompanhava em cabines de filmes e bares como o clubinho do MAM e o Pep’s, na
galeria Metrópole.
No tempo da carinhosamente por ele apelidada “SACquinha”,
cujas dimensões minúsculas da sala de projeção eram inversamente proporcionais
às gigantescas repercussões de sua programação, Bernardo desencavou tesouros de
cinematecas, garimpou acervos de consulados e embaixadas, explorou acervos de
distribuidoras, exibiu filmes inéditos e pré-estréias, fez sessões seguidas de
conversa entre cineasta e público e atendia aos diretores que pediam sessões
fechadas para convidados.
Naquela época, Bernardo começou uma longa e profícua
colaboração com Cosme Alves Neto (1937-1996), curador da Cinemateca do MAM
(Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro, no intercâmbio de filmes, mostras e
contatos. Ao longo das décadas, juntos estabeleceram um “circuito das
cinematecas”, responsável por circular as mostras estrangeiras que traziam ao
Brasil, exibindo-as em instituições credenciadas.
Por proximidade física (a SAC ficava no subsolo das duas
salas maiores do cine Belas Artes), mas também, e sobretudo, por afinidade
política e cinematográfica, Bernardo trabalhou junto a Dante Ancona Lopez,
pioneiro do circuito exibidor de cinema de arte em São Paulo e proprietário do
Belas Artes. Ele costumava ser convidado por Dante para as cabines em que este
escolhia os filmes que iria lançar.
Bernardo podia fazer propostas e sugestões para as duas
salas do Belas Artes, indicando a Dante filmes para lançar e curtas de
complemento. Foi assim com o curta “Simitério do Adão e Eva” (1975, Carlos Augusto
Calil). E com “Ukrinmakrinkrin: A Música de Marlos Nobre” (1975, Carlos
Frederico), exibido como complemento de “Cantando na Chuva” (1952, Stanley
Donen e Gene Kelly), quando este foi relançado.
Em 21 de abril de 1973, Paulo Emilio publicou no “Jornal da
Tarde” um artigo em que dizia: “Os exibidores se esqueceram desse filme”, e
citava a exibição de “Bang Bang” (1971, Andrea Tonacci) ocorrida na SAC, na
semana anterior. Em junho, o filme seria lançado na sala Villa Lobos do Belas
Artes. Andrea abriu-me seus arquivos, e a evidência da lógica do artigo
bastaria para ver a contribuição de Bernardo no caso, mas há mais.
Nelson Aguilar frequentava o Riviera e “estava a par de tudo
o que acontecia” nas três salas do Belas Artes. Sabendo de uma brecha na grade
de programação, e contando com a ajuda de amigos (Regina e Boris Schnaiderman,
Pola Vartuck, Roman Stulbach), Nelson, como produtor do filme, decidiu falar
com Dante. O curador e professor de história da arte ressalta que Bernardo deu
“a maior força”.
Ainda paralelamente aos trabalhos na SAC e aos estudos na
ECA, Bernardo foi convidado pelo professor Walter Zanini, então diretor do
Museu de Arte Contemporânea da USP, para ser o coordenador de cinema do MAC,
atuando ali de 1972 a 1976. Foi quando começou a se dar a ver pela primeira
vez, ao menos em São Paulo, de forma consistente e orgânica, a produção de
filmes dos artistas plásticos. Exercício experimental da liberdade.
E la nave va
Novas e renovad(or)as ondas de programações arrebentaram no
concreto dos Jardins e arrebataram levas nada vagas de espectadores,
construindo e consolidando, de 1975 a 1985, outro marco incontornável, numa
localização até ali inóspita para tal iniciativa. Bernardo foi convidado por
Rudá de Andrade, fundador e diretor do Museu da Imagem e do Som, para criar,
organizar e dirigir o setor de cinema do MIS, na avenida Europa.
Continuando e expandindo a curadoria de generosidade
cinefílica com que fazia proezas nada prosaicas na SAC, a programação de
Bernardo no MIS faria história. Embora o estatuto mítico reze que a lenda não é
da ordem da realidade, o tempo de SAC e de MIS existiu mesmo de verdade e foi
de fato lendário. Ele era uma espécie de “one man band show”, que se
responsabilizava por todas as fases, nos mínimos detalhes, do processo e
citadas naquele sinóptico esquema das tarefas que envolvem uma programação.
Como fez na SAC, o cinema do MIS era uma sala aberta para os
cineastas. Da mais radical estirpe experimental ao mais simplório gênero de
“pornochanchada”, todo o cinema brasileiro tinha abrigo garantido no abraço
generoso (afetivo, erudito e sem preconceito) de Bernardo. Para ele, o MIS era
entidade de serviço e utilidade pública. Diretores e produtores de todas as
tendências e de todo o país procuravam Bernardo, ou eram por ele procurados,
para cabines, lançamentos, sessões e mostras em São Paulo.
Eu ousaria arriscar e apostar que não houve um diretor ou
diretora de cinema brasileiro sequer, nos anos 70 até meados dos 80, que nunca
tenha exibido seu trabalho (ainda enquanto copião filmado ou pré-montado ou já
como cópia final) nas salas de projeção da SAC e do MIS dirigidas e programadas
por Bernardo.
Como na SAC, no MIS não eram só os produtores que se
beneficiavam de seu trabalho, com os filmes expostos, mas também os
consumidores, que formavam e ampliavam seu repertório por meio das programações
que realizava, graças às suas conexões com produtoras, distribuidoras, acervos
diplomáticos, arquivos estaduais e cinematecas, e também com a imprensa. Uma
lista seria exaustivamente extensa; e injusta por involuntariamente deixar de
citar incontáveis programações notáveis.
Ele fez inúmeras mostras com os consulados da França e do
Canadá. Sob os auspícios do Instituto Goethe, um de seus parceiros constantes,
exibiu filmes da Alemanha Democrática da e Federal, recepcionou Werner Herzog
em sua primeira visita e fez a primeira (e até hoje única) retrospectiva de
Straub-Huillet no país. Outros parceiros frequentes eram os consulados
americano (que lhe deu uma mostra de filmes, fotos e cartazes de John Huston) e
italiano (que lhe trouxe uma retrospectiva de Rossellini).
Somando suas programações na SAC às que fez no MIS e às que
faria na Cinemateca, ele exibiu ciclos de cinematografias até então inéditas no
Brasil, como Albânia, Angola, China, Cuba, Hong Kong, Finlândia, Israel,
México, Moçambique, Nicarágua, Palestina e Taiwan, além de mostrar ciclos de
cinematografias como Dinamarca, Espanha, Holanda, Japão, Polônia, Portugal,
Suécia, Tchecoslováquia, União Soviética. Sem falar nas retrospectivas de
diretores, técnicos, artistas, e ciclos temáticos e conceituais.
Décadas antes de se falar em “nichos” e “segmentação de
mercado”, Bernardo enchia os corredores do MIS com um público idoso, cativado
com séries regulares sobre dança. Atendendo a uma demanda reprimida dos anos
70, exibia os filmes de brasileiros feitos no exílio. Programou um curioso
ciclo com trailers de filmes. Sem ainda conhecê-lo pessoalmente, frequentei,
anônimo e atônito, muitas maratonas estonteantes de cinema nacional no MIS, no
começo dos anos 80.
Eram sessões que varavam tardes e noites e valiam por cursos
intensivos sobre a produção contemporânea e a histórica. Pude testemunhar
momentos inesquecíveis (e aflitos, para quem concorria por um lugar no
auditório), que se repetiam por todos os fins de semana. Sessões lotadas e
disputadas, com muitos jovens deitados por todo o palco, sob a tela de cinema.
Não estou falando de um evento pontual, como viraram festivais no espetáculo
dos calendários; era uma programação normal, regular, do dia a dia.
Há muitas histórias esquecidas, que atestam a repercussão do
setor de cinema dirigido por Bernardo. Um rastro de termômetro, ou sismógrafo:
a célebre entrevista de Cacá Diegues à crítica Pola Vartuck, publicada no
jornal “O Estado de S. Paulo”, em agosto de 1978, que lançou a polêmica das
“patrulhas ideológicas”. Foi feita a propósito de uma sessão de imprensa no MIS
para lançar “Chuvas de Verão”, que a Embrafilme pediu a Bernardo. Após a
cabine, ele levou cineasta e jornalista para conversarem no Pandoro.
Por seus nexos de operação, Bernardo mantinha relações em
diversas esferas, de produtores a exibidores, de diretores a críticos, de
adidos diplomáticos a secretários do governo do Estado e do município.
Participou da fundação do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (1969),
da votação da crítica do festival Sesc desde o início (1974) e de comitês de
produção e seleção de curtas do Concine e da Embrafilme. Fez uma ponta em “A
Casa das Tentações” (1975, Rubem Biáfora), filme do crítico (1922-1996) que
gostava de cozinhar salsichas para ele.
No arco que vai de SAC e MAC a MIS e Cinemateca, por mais de
quatro décadas, Bernardo exerceu um sacerdócio heterodoxo, ao rezar pela
animação fulgorosa sem abjurar do respeito fervoroso, graciosa (e gostosa)
devoção ao cinema. E, sem cometer heresia, pode-se dizer que pontificou não
apenas na curadoria de programação de filmes. Ele foi, diga-se sem favor ou
temor, uma referência forte na (para usar um termo que alcançaria um paroxismo
inimaginável àquela época) consultoria de questões do cinema.
Pelo cúmulo de repertório e contatos acumulados, Bernardo
fornecia graciosamente informações preci(o)sas sobre o tal caminho das pedras.
Muita gente que hoje atua como referência, ou como consultor, informal ou
profissional, bebeu de sua fonte, direta e literalmente, durante conversas
“despretensiosas” em mesa de bar. Creio que alguns não ousariam negar os
ensinamentos generosos de Bernardo, embora outros possam ter se esquecido ou
possam ter feito questão de se esquecer.
Aviso aos navegantes
Em 1981/82, Bernardo foi convidado por Maria Rita Galvão,
professora de história do cinema da ECA e histórica diretora da Cinemateca
Brasileira, para criar o departamento de difusão e divulgação da Cinemateca, o
qual chefiou até 1990. Além de organizar um sistema de difusão das cópias do
acervo e fazer divulgação pela imprensa, ele curava programações, mesmo que a
Cinemateca não tivesse uma sala própria adequada.
Ou que fosse “inapropriada”, porque o que ele tinha para
programar era uma salinha chamada de Studio Conceição, que funcionava no parque
público da Conceição (bairro do Jabaquara), onde era a sede da Cinemateca. Mas
nesse Studio só havia projeção 16 mm. O que não o impediu de realizar ali
mostras memoráveis e concorridas, com filmes do acervo e de fora, como um ciclo
de produções antigas da Fox Films.
Bernardo não se furtava a fazer parcerias com outras
instituições e empresas exibidoras para programar mostras em 35 mm, promovendo
as programações da Cinemateca nas mais diferentes salas da cidade. Paradoxal e
curiosamente, essa dispersão (por várias salas) e essa carência (de sala
própria) geravam um fator positivo, uma sensação de onipresença dinâmica da
Cinemateca dentro do circuito exibidor de São Paulo.
Outra vez, a citação de mostras seria extensa e injusta. Mas
apenas para se ter uma ideia, em menos de dois anos, Bernardo programou um
ciclo de Joris Ivens no cine Paramount, uma mostra de “film noir” no cine
Arouche, um ciclo de Jean-Luc Godard no cine Coral, uma mostra de filmes
poloneses no cine Metrópole e uma retrospectiva de Julio Bressane no Masp.
Poderia citar parcerias posteriores com Adhemar de Oliveira,
pioneiro no circuito do cinema de arte e o principal exibidor em atuação no
país. Na primeira visita de Liv Ullmann a São Paulo, Adhemar abriu a sessão no
Espaço Unibanco de Cinema, creditando a Bernardo a apresentação da mostra em
homenagem à consagrada atriz e diretora então estreante.
Bernardo teve uma participação no processo que levou a
Cinemateca a ter uma sala de exibição própria, justamente por seu longo
trabalho com distribuidoras e exibidoras. Ele conhecia Robert Valancy, dono da
Franco-Brasileira, proprietária do Cine Fiametta, que, em 1989, virou a Sala
Cinemateca, em Pinheiros. Nessa época, o diretor era Carlos Augusto Calil, que
foi conselheiro da Cinemateca e diretor da Embrafilme e é professor na ECA e
secretário de Cultura do município.
Nos anos 90, Bernardo programou muitas mostras memoráveis na
Sala Cinemateca que, não com pouca frequência, eram matérias de capa nos cadernos
culturais dos dois principais jornais de São Paulo e atraíram legiões de
espectadores, como (para ficar só em dois exemplos) uma retrospectiva de
François Truffaut em pleno Carnaval e um ciclo incomum de cinema e pintura.
Também lançou filmes que nenhuma sala do circuito exibidor ousava lançar, como
“Smoking/No smoking” (1993, Alain Resnais).
Para evitar a extensão demasiada deste texto, não caberia
mencionar sua atuação nas salas Cinemateca de Pinheiros e da Vila Clementino,
até porque se espera que, afinal, eventos dos recentes anos 90 e 2000 ainda
estejam frescos na curta e esquecida memória nacional, e seus registros possam
até estar mais acessíveis na internet do que décadas anteriores. Por outro
lado, há testemunhos (alguns tocantes) espalhados na internet em que gerações
de jovens e antigos cinéfilos rendem tributo às programações de Bernardo.
Ele nunca deixou o setor de programação da Cinemateca e nem
deixou de fazer programações ali. Sua última curadoria (em que fez concepção,
produção, programação e divulgação) foi a primeira retrospectiva completa dos
filmes e vídeos de Carlos Nader (abril), quando, para o debate de abertura,
trouxe do Rio de Janeiro o poeta Antonio Cicero e o músico Caetano Veloso. E a
retrospectiva e o seminário sobre Jean Rouch (junho) só aconteceram em São
Paulo e na Cinemateca graças a Bernardo, que, durante uma viagem a Paris,
estabeleceu a parceria com o organizador Mateus Araújo Silva.
Mas talvez caiba uma nota sobre algo que pode não ter
registro. E envolve aquela qualidade de um programador com vocação de
cinemateca. Parte significativa do acervo de filmes da Cinemateca Brasileira
foi formada por Bernardo, com cópias que ele mesmo produziu e com cópias que
ganhou de diretores, produtores e embaixadas (em agradecimento e reconhecimento
por uma cabine, sessão, estréia, mostra). Ele poderia ter feito contratos de
depósito, ao menos para legitimar protocolarmente a sua doação.
Toda a memória do mundo
Bernardo gostou quando lhe contei sobre a constelação que eu
iria projetar na tese de doutorado, aplicando ao meu conceito de “cinema de
reapropriação de arquivo” os conceitos de “meta-história” e “cinema infinito”
do cineasta de vanguarda Hollis Frampton (1936-1984). Posso dizer que Bernardo
seria um perfeito metaprogramador-arquivista dessa coleção de fotogramas que
dão forma e decantam o mundo.
No começo do texto, mencionei de passagem a revelação que
tive quanto à importância decisiva de Bernardo (que me deu meu primeiro emprego
justamente numa cinemateca e cuja presença orientou meu gosto pelo cinema como
arquivo infinito) no caminho que eu viria acabar seguindo na realização de
filmes com e sobre materiais de arquivo.
São iluminações que só costumamos ter quando a escuridão se
abate sobre nós. Em 2009, eu comemoraria 20 anos de resistência na realização
de filmes experimentais e 15 anos de trabalho com filmes de reapropriação de
arquivo. Mas (in)justamente neste ano ocorre a perda irreparável, inaceitável,
inacreditável, insuportável. Se consegui produzir esses 10 filmes nos últimos
20 anos, foi em primeira instância, sobretudo, graças a Bernardo.
Sem menosprezar ou subestimar o apoio inestimável e o
estímulo fundamental dos que me ajudaram a fazer os filmes e a exibi-los, dos que
escreveram e pensaram sobre eles, dos que passaram a cultuá-los. A partir do
segundo filme (o primeiro foi produzido na ECA, mas já lhe faz um agradecimento
especial), todos foram produzidos por ele. Nunca cansei de declarar, ao
apresentar minha obra, que de Bernardo dependiam as condições não apenas para a
existência dos filmes, mas até mesmo para minha própria existência física.
Não me parece um acaso à toa que meu primeiro filme de
“found footage” (o terceiro título de minha filmografia) tenha usado justamente
a primeira imagem registrada na história do cinema brasileiro. “Remanescências”
(1994-1997) opera sobre onze fotogramas de uma suposta filmagem patenteada em
1897 por Cunha Salles.
Em minha tese, expandi a operação do
artista-meta-historiador a um corte no eixo das origens do tópico nacional. E
comentei que não me agradava ver a desqualificação que historiadores impingiam
à figura de Cunha Salles e seu papel fundador de nosso cinema. Transcrevo a
justificativa e aponto uma solução ao problema histórico.
Por ser prestidigitador, médico, bicheiro e exibidor,
pesquisadores não reconhecem ou nem admitem que o fragmento de filme que Cunha
Salles depositou em 27 de novembro de 1897 no Arquivo Nacional (junto ao
processo de patente para todo um sistema-cinema) possa ter sido filmado por
ele, o que o creditaria como autor do primeiro filme nacional.
Se o argumento fosse baseado em exame técnico da película
(formato da perfuração, divisão de quadro), eu até poderia achar aceitável uma
contestação. Mas não porque sua veleidade multidisciplinar atestasse falta de
seriedade ou de credibilidade, como a comprovar uma suposta condição atávica de
eternos condenados macunaímicos.
Ora, prefiro ver que o tal nascimento do cinema brasileiro
seja fundado sob a condição do “found footage”. Se a autoria do filme é
questionável, é inconteste a apropriação que Cunha Salles fez de um filme
(eventualmente produzido algures), pois ao registro do pedido de patente ele
anexou um fragmento de filme.
Ele até pode ter mentido, e o filme não ter sido mesmo feito
por ele –se assim for, eu adoraria que ele tivesse “roubado” o filme de Marey,
“A Onda” (1891), com o qual guarda impressionante semelhança na composição do
píer, dando outra conotação às ondas cuja essência remanesce (e é objeto de um
filme inédito que fiz com Bernardo).
Portanto, a hipótese do meta-historiador-artista seria: o
primeiro filme brasileiro não foi filmado e sim reapropriado, segundo o código
“found footage”, do arquivo inaugural.
Nossos filmes de reapropriação de raros cineartefatos
nacionais incluem: “Militância” (2001-2002), sobre a série para lanterna mágica
feita por Militão entre 1874 e 1887; “Porviroscópio” (2004- 2006), sobre o
único filme de Monteiro Lobato, feito entre 1932 e 1939; “Das Ruínas a Rexistência”
(2004-2007), sobre os filmes inacabados de Décio Pignatari rodados entre 1961 e
1962; “Santoscópio = Dumontagem” (2007-2009), sobre um carretel de mutoscópio
produzido pela Biograph em 1901 com Santos Dumont.
No momento de seu desaparecimento, estávamos começando a
finalizar o corte crucial de um documentário de longa-metragem baseado no tema
da tese. Com a retroprojeção dos paradoxos da ironia, nosso último filme unia
duas paixões de Bernardo: cinema e aviação (seu pai, Gricha, piloto amador,
protegeu-o de seguir esse plano de voo).
Considero “A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha”
(1997-1998) um filme de “found footage”, apesar de não usar imagens de arquivo
em movimento. Podemos tomar o filme em duas secções: a segunda constata a
irreversibilidade do silêncio da morte e tenta acordar um renascimento
alegórico no cemitério; a primeira traz, nos limites da legibilidade, recortes
de jornal, fotografias, discos e documentos corroídos pelo tempo.
Mas se o tema em si foi um achado, a própria pesquisa que
fizemos sobre o moleque do samba, que morreu aos 19 anos e gravou apenas 12
músicas, encerrou uma epopéia de descobertas, em ritmo sincopado e revelatório,
na escavação de ruínas (do encontro de seus álbuns de recortes ao encontro de
traços da família e da localização do túmulo).
Em 2000, fundamos a Associação Cultural Babushka. Por uma
amorosamente forçada licença poética, o nome remete à matrioshka (boneca russa
que contém bonecas sucessivamente menores em seu interior). A ideia era que
nossa associação funcione como um efeito multiplicador interdisciplinar,
originário de desdobramentos artísticos, uma caixa de surpresas para produzir
encantamentos. E não só para produzir filmes.
Priorizando a arte radical e de exceção, inédita e
desconhecida no Brasil, a Babushka fez várias mostras: Peter Kubelka, João
César Monteiro, Yevgeniyi Yufit, filmes russos experimentais e de animação,
Carlos Nader, e (com o É Tudo Verdade, curada com o crítico Amir Labaki)
documentários experimentais brasileiros. Há ainda pelo menos quatro projetos de
mostras engatilhados e prontos para exibição que, para honrar e merecer a obra
de Bernardo, serão realizados.
A última sessão de cinema
Creio que uma das principais condições da (e para a)
cinefilia é a curiosidade. Curiosidade desinteressada, isto é, apaixonada pelo
gosto e o gesto de conhecer e compartir a revelação, sem intenção de recompensa
a não ser aquela da satisfação generosa de que outros possam amar aquilo que
amamos.
Bernardo acalentava uma curiosidade comovente pelas
descobertas das coisas e pela beleza. Embora fosse de uma época de catacumbas
de cinemateca, não era ludista; seu apetite guloso era de fino trato e
requintado paladar, mesmo sabendo apreciar o improvável sabor de acepipes tidos
como chulos ou de difícil digestão.
Nos últimos meses, ele curtia a possibilidade de ter acesso
a filmes remotos no controle do computador. Para ele, que não conseguia conter
o vasto amor pelos filmes, a internet oferecia um mar pronto para aportar ao
comando de um clique. Como sabia demais de cinema, ele evidentemente sabia a
diferença, e o valor da diferença, entre ver um filme em projeção em película
(e em projeção digital) e ver um filme no computador.
Por que se furtar a ver filmes da Turquia ou da Coréia do
Sul disponibilizados com critério no The Auteurs? O fascínio pela facilidade da
internet não significava de maneira alguma comodismo nem abandono do ritual, do
respeito e do prazer da sala de cinema. Todo dia ou toda noite, sagrada e
consagradamente, Bernardo assistia a filmes, no cinema ou no estúdio da
Babushka (onde temos uma rara coleção de DVDs).
Há uma tentação de arriscar um juízo final, ou zeitgeist. A
nostalgia apegada ao tempo, e depois dele apagada (como costumam dizer sobre a
Bossa Nova e um Rio de Janeiro que não existe mais). Sábios e felizes são
aqueles que podem conhecer a terceira margem do rio; os que arranharam dedos
nas grifas da moviola e viram uma cena sumir no cálculo algorítmico do arquivo
digital. Os que puderam provar as delícias do cinema fotoquímico-mecânico sem
rechaçar ou se iludir pelas promessas do cinema digital.
Mesmo com o manancial incomensurável de informações pelo
qual se pode navegar (e naufragar) na internet, creio que não é mais possível
formar programadores, ou curadores de programação, da envergadura e da estirpe
de Bernardo. A abundância de dados não implica necessariamente constituição de
repertório, pois hoje falta a capacidade crítica (juízo de escolha, ponderação
de pensamento) formada com experiência e parâmetros mais exigentes.
Sensibilidade e sabedoria não se ensinam, e custa aprender. Mas hoje falta,
substancialmente, a alma gêmea do repertório: a generosidade.
Ao menos, no mínimo, faltam ainda três condições,
confirmando a descrença. Ver filmes no computador não é como vê-los na tela de
um cinema; faltam a dimensão de alcance e da textura de imagem e som, o ritual
comunal e a cerimônia de ser iniciado a algo secreto e valioso, a compartir.
Trocar fiapos de ideias no twitter não é como conversar na mesa ou balcão de
bar; faltam a temperatura do corpo, o estado de espírito, a decantação do tempo
destilado em filigranas e fotogramas, demasiado humanas. E, sobretudo, falta o
afinal; eram outros tempos os dele, outra situação histórica, outro mundo.
Não ousaria cogitar de fazer uma lista dos filmes favoritos
de Bernardo. Não porque ele não os tivesse. E nem porque ele não tivesse senso
crítico de escolha. Mas, além de eu não ter sua procuração para isso, não
cometeria a insânia de fazê-lo, perda de tempo pela própria dimensão milenar
dessa insânia. Como resumir a paixão de uma vida a um número, a uma cifra?
Seria mais uma questão de decifrar e recifrar, cultivar intacto o enigma e os
mistérios dessa paixão. Botões de rosa não se abrem a qualquer um.
Aliás, cabe aqui uma ressalva: os intertítulos que permeiam
este texto não aludem a filmes preferidos de Bernardo; eu os escolhi, sob minha
conta e risco, segundo a mera tentativa de adequar e confrontar o teor de cada
bloco a um clichê cinematográfico.
Citar sequer um só filme seria uma traição e uma injustiça a
alguém cujo amor generoso pelo cinema nunca escolheu hierarquias nem se
encolheu em segregações, nem professou exclusão. Mas creio que talvez possa
dizer que um dos filmes que ele adorava rever, sempre e incondicionalmente
comovendo-se pela beleza intransitiva de cinema, performance e música, era
“Stop Making Sense” (1984, Jonathan Demme).
Cometo esta inconfidência ao lembrar que ouvimos,
maravilhados, o comentário de Demme na trilha adicional (ah, os bônus extras
dos DVDs), contando a confissão de Bernardo Bertolucci. O xará assistiu à
projeção em Florença, e não só se comoveu com o filme mas sobretudo ficou
encantado (e enciumado) com a reação dos espectadores, que deixaram as
poltronas dançarem sob a tela, aplaudindo cada música como cena.
Justamente o diretor de “Beleza Roubada” (1996) tomou esta
experiência como o ideal de um filme. Creio que tal história diz algo sobre o
espírito de Bernardo e sua relação anímica e sensual com o cinema. E deixo de
promover aqui a conexão com uma sessão que Bernardo programou de “Rocky Horror
Show” (1975, Jim Sharman) à meia-noite, ainda nos anos 70 (Cinema Um?), quando
os espectadores possuídos puseram a sala literalmente abaixo.
Tão cedo, tão tarde, ou não reconciliados
Falei da falta de repertório e de generosidade. É da
dimensão do tempo que se trata. E que falta. Um tempo em que cinema era
correlato de comunhão compartida, corolário de comunicação com o outro,
certificado de pertencimento a uma mesma matéria de memória humana. Cinema como
espaço-tempo de presença e vivência, projeção da experiência.
Um tempo em que assistir a um filme implicava
necessariamente uma conversa sobre o filme. Por isso a mesa de bar era extensão
natural da tela de cinema, não para arrotar teorias (pretensão enciclopédica
juvenil) ou listas (contrassenso do censo infantil), mas para compartir
emoções, reflexões, indagações.
Cinema requer tempo. Para fazer, para assistir, para
refletir. Para entender e para que mereçamos que seja parte de nossas vidas.
Para mim, Bernardo ensinou-me outra forma de ver e viver o tempo (e, por
extensão, o cinema): sem pressa, sem pressão, sem pretensão. Com discernimento,
divertimento e conhecimento (também de causa).
Acho que a triste época em que vivemos hoje é de fim, e de
fins. Fim, porque quase não restam valores. Fins, porque quase não sobra moral.
Também na produção e exibição de cultura. Ainda adianta repisar a desoladora
situação de que trabalhar com cultura virou mais uma profissão na bolsa do
mercado? Que cultura virou arrimo de arrivistas, de gente que ignora a cultura,
mas se agarra à oportunidade do alpinismo social?
Se Brecht baixasse no Brasil, ficaria horrorizado ao ver
como a cultura se transformou em mais um artigo na banca do mercado de vaidades
e ilusões perversas, triunfo da vontade capitalista. Na indigência da terra
devastada, se há alpinistas que sabem bem onde querem chegar, há os
pára-quedistas que não sabem onde cair, mas acham.
Cinema não é mais a devoção de uma vida; é mais uma opção de
carreira. Como enunciar propriamente o diagnóstico? Viver do cinema, de cinema
ou para o cinema? Por outro viés, há a constatação de que o Brasil não cultua o
melhor de sua memória, nem cultiva melhor a sua memória. E é tão ingrato e injusto
a ponto de não só ignorá-la, mas até de apagá-la e sonegá-la. Por mesquinhez,
ressentimento e outros sentimentos menos nobres, certos poderes provisórios
sabotam a história e a memória.
O que seria pior? A má fé que deliberadamente ignora ou a
ignorância que meramente desconhece? Deficiência e carência, voluntárias ou
não, na formação e na informação, assolam o cenário atual de esperanças
arrasadas. Haverá sempre escusas, como as exigências supérfluas e superficiais
do mundo midiático e imediatista ou as demandas constrangidas de prazos e
compromissos afeitos à afoita e defeituosa matriz humana. Mas há uma questão de
direito ao respeito e ao reconhecimento histórico.
Zelar pela obra de alguém é manifestar o testemunho de sua
memória. Há más versões da história, sintomáticas da malversação de informações
que influi na má formação de gerações (e depõe contra a credibilidade de
outras). São lapsos e relapsos, pessoais e institucionais, deliberados ou não.
Numa época degradada e degradável, haveria expediente para atestar culpa no
cartório de protestos contra a omissão e a espoliação da memória? A história se
encarrega de fazer justiça? O tempo é mesmo senhor da razão?
Dá dó constatar casos de malversação do cinema e da memória,
até mesmo em redutos supostamente insuspeitos e inesperados, acometidos por
(des) interesses e descasos. Memória virou negócio, dilapidação e vilipendiação
do patrimônio posto à venda sob o falso anúncio do fácil acesso e da falsa
preservação. Memória virou moeda de troca na moenda inescrupulosa do marketing,
subproduto de propaganda enganosa. O ideal de memória e o apelo à memória foram
corrompidos pela desfaçatez da política, que faz dela álibi para falcatruas.
A memória seria mensal, como indica um governo ao apagar, em
ciclos de folhinha, as imagens gravadas por câmeras de segurança que registram
a circulação em sua sede? Não é só sacrificado o cotidiano terreno, até
ambiciosas conquistas perecem sob o descontrole deletério, como prova a Nasa,
que apagou o vídeo da chegada do homem à Lua. Digitalização implica compressão
da informação no menor espaço possível. Seria a memória digital? Não é à toa
que os sistemas de armazenamento, indexação e acesso de informações conheceram
novos paradigmas com o advento dos computadores.
Mas, como o Brasil é mesmo um país tão rico de complexidades
e cheio de promessas, não chega a ser criminoso nem desprezível o ato
(despeito? desplante?) de um país e de a gente desse país que se dá ao luxo de
ignorar o seu patrimônio e de maltratar sua memória. Seria o machadiano legado
de nossa miséria?
Afinal, ter –no afeto íntimo da amizade, nos quadros
funcionais da profissão, na esfera pública da cultura do país– um arquivo vivo
de saberes deveria ser (para qualquer ente que se entenda como civilizado)
razão de orgulho, pelo privilégio de tê-lo a nos orientar e iluminar, e não
desvario de soberba, com a predileção desta pelo abismo e as trevas.
Imitação da vida
Bernardo sentia certo desconforto quando o chamavam de
“monumento”, frisando a importância de sua atuação histórica em instituições
que foram emblemáticas no tratamento da programação de cinema como forma de
arte. Talvez o aspecto cerimonioso e sisudo do termo o incomodasse, como se o
esplendor e a vivacidade humana fossem incompatíveis com a solenidade da
magnificência e da posteridade.
Mas, revendo e reverenciando seu trajeto e seu trabalho, é
impossível não se render à pertinência do “monumental” atributo histórico,
assim como era impossível deixar de se encantar com seu elã vital e vigoroso.
Programação de vida como forma de cinema. Bernardo levou uma vida que daria um
filme, como se ela mesma já não tivesse sido um.
Como num reflexo condicionado e imediato, ele vivia
articulando os filmes a que assistia em projetos ou exercícios de programação.
Era impressionante ver como cada filme acionava seu repertório filmográfico e
mobilizava suas pupilas degustativas para configurar alguma relação através de
tempos, estilos, histórias.
Era fascinante vê-lo dispor em movimento os filmes juntos,
constelações de programas, sessões imaginárias que poderiam cair na tela. O
gesto, para além do compulsivo vício de ofício, demonstrava a forma como ele
via o cinema: os filmes deveriam conversar entre eles, em diálogo ou confronto,
e dessa conversa o espectador deveria compartir.
E era incrível, inacreditável, a extensão (e a prontidão) de
seu repertório. Ele guardava na memória, naturalmente, sem esforço e sem
forçação, o conhecimento de um dicionário, com nomes de filmes, diretores,
técnicos, elenco, com marcas de cenas e marcos da história. Uma enciclopédia de
cinema dentro da cabeça e na ponta da língua.
Como curador e cinéfilo, ele sentia uma carinhosa atração
por filmes de improvável paradeiro e remota procedência e pelo que chamava de
“pequenas obras-primas do cinema”, aqueles filmes que nos arrebatam sem
estardalhaço, que passam despercebidos se a retina cansada só se impressiona
com o estabelecido, o previsível, a rotina.
Talvez sua inteligência e sensibilidade singulares sequer
foram intuídas. Bernardo compartia sua experiência arrojada e generosa de
cinema sem arrogância, sem empáfia e sem empulhação. Foi alento e exemplo
contra o conformismo e a mediocridade. Foi um dos últimos comunistas. Era um
generoso radical de doçura. Agora, saudades de sua alegria; então, para cometer
outra inconfidência e citar outro filme (2001, Pedro Costa) que ele adorava
rever, sempre e incondicionalmente comovendo-se pela beleza intransitiva de
cinema e humanidade (assim como a gente das Fontaínhas): “Onde Jaz o Teu Sorriso?”.
Ele apreciava sem moderação rotas de risco, assumidas com
desabrida e aberta dose de coragem, no cinema, na vida. Sua morte brutal e
imprevista deixa o traço do desapego com ele mesmo, com sua própria saúde,
contra quem reza pelo prezar o prazer. Desregramento de todos os sentidos?
Tardiamente vim a reparar que, a cada momento, ele exibia um fotograma velado
que poderia me ensinar a ser gente, uma pessoa melhor, num mundo mais humano.
Um consolo (?): orgulho-me de ter merecido a benção de
conhecê-lo na maior e melhor parte de minha vida. É provável que não mereça o
que me deu e acolheu com tanta bondade, e posso até tê-lo decepcionado. No
absurdo e milagre que é a existência humana, cabe a desconfiança: mereceria?
Condenados a vagar pela terra prometida, agora serão sempre anos passados em
Marienbad. Caprichos da contingência.
Para uma pessoa extraordinária como ele, o cinema era um
jeito de celebrar a descoberta das maravilhas e suportar a condição misteriosa
da vida. Mais que mediação, imantação da e pela imagem. O tempo da imagem virá
pela ressurreição. O tempo da ressurreição virá pela imagem. Para sempre no
desamparo da noite infinita em que foi convertida a vida, agora só me resta
honrar e cultuar a memória de Bernardo Vorobow.
Publicado em 9/9/2009
Carlos Adriano - É diretor de cinema e doutor em ciências da comunicação pela
USP, realizador de "Remanescências" (coleção New York Public
Library), "A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha" (melhor curta
documentário Chicago Film Festival) e "Militância", entre outros
filmes. Com Bernardo Vorobow, é autor do livro "Peter Kubelka: A Essência
do Cinema" e organizador de "Julio Bressane: CinePoética".
Texto e imagem reproduzidos do site: revistatropico.com.br
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