quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Norma Bengell: musa do cinema brasileiro...


Norma Bengell: musa do cinema brasileiro personificou as transformações da mulher no século 20

Por Rafaella Britto *

Para as novas gerações, o nome de Norma Bengell pouca significa. Quem visse aquela velha senhora, solitária, reclusa, sentada em sua cadeira de rodas diante de sua pequena televisão – um dos poucos objetos a ocuparem o grande espaço vazio de sua casa na zona Sul do Rio de Janeiro –, jamais poderia imaginar tratar-se da musa que outrora encantou o mundo com seu andar debochado, olhar enigmático e sensualidade inerente.

Percorrer a trajetória de Norma Bengell não é tarefa fácil: há que se falar da atriz, fabulosa, rosto-símbolo da glória do cinema mundial; e há que se falar da mulher, cuja vida, despindo-se das trivialidades cotidianas, adquire dimensões trágicas tal e qual o mais impactante dos enredos cinematográficos – do gozo da fama à experiência, em seus anos derradeiros, do abandono e da ruína material; há que se falar da mulher Norma Bengell, romântica, visionária, provocadora.

Tarefa difícil, também, é abarcar em um único artigo sua extensa obra, construída ao longo de cinco décadas. De manequim da Casa Canadá – a luxuosa Maison brasileira que trouxe em seu time de modelos outras futuras atrizes como Ilka Soares e Odete Lara – Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães d’Áurea Bengell iniciou a vida nas noites cariocas como vedete na boate Night and Day, sendo descoberta pelo produtor Carlos Machado. Em 1959 brindou as telas do cinema pela primeira vez: o filme era O Homem de Sputnik, chanchada de Carlos Manga estrelada por Oscarito, na qual a estreante de 23 anos satiriza Brigitte Bardot. O público e o universo cinematográfico renderam-se ao charme e beleza da jovem estrela.

Uma atriz de vanguarda

Norma Bengell estreou no cinema aos 23 anos
na comédia O Homem de Sputnik, com Oscarito 
Foto: Reprodução

Em seguida, Norma atuou em filmes de menor destaque, como Conceição (1960) e Mulheres e Milhões (1961), até estrelar aquele que a consagraria, precoce e definitivamente, como a grande sex symbol e polemista do cinema nacional: Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra. Marco do Cinema Novo, Os Cafajestes traz Norma Bengell no primeiro nu frontal do cinema brasileiro.

O filme percorre os caminhos sem rumo de dois bon-vivants, Vavá (Daniel Filho) e Jandir (Jece Valadão), que pretendem ganhar dinheiro vendendo imagens eróticas de Leda (Bengell). Na famosa sequência, Leda corre pela praia enquanto a câmera gira em torno de seu corpo, captando sua tortura e humilhação, e revelando sua posição de vulnerabilidade diante da força masculina. No segundo momento da obra, porém, os papéis de dominação se invertem, e é a mulher quem, no jogo erótico, revela a fragilidade e a impotência de seus algozes. Indicado ao Urso de Ouro no Festival de Berlim, Os Cafajestes foi perseguido e proibido pelos órgãos de censura do regime militar, e fez de Norma Bengell a inimiga número um das ligas conservadoras. O filme já demonstrava uma característica particular que marcaria a trajetória da atriz: a escolha por papéis de força e protagonismo, na contramão da mulher objetificada e coadjuvante – sendo comparada a atrizes estrangeiras como Jeanne Moreau e Melina Mercouri.

“Apesar de ainda inconsciente, eu não era uma mulher como as outras, moldada para ser objeto,” escreveu em sua autobiografia, lançada postumamente em 2015 pela NVersos Editora.

Norma Bengell e Jece Valadão em 
Os Cajafestes (Ruy Guerra, 1962) 
Foto: O Globo

Tal escolha revelou-se em papéis posteriores como o da prostituta Marli na obra-prima de Anselmo Duarte, O Pagador de Promessas (1962), filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes que abriu-lhe as portas para uma bem-sucedida carreira no cinema mundial. Na Europa, Norma Bengell viveu o auge do estrelato em filmes como Mafioso (1962), de Alberto Lattuada – nome subestimado do neorrealismo; e o clássico da ficção científica Planet of the Vampires (1965), do mestre do horror italiano Mario Bava, obra responsável por influenciar Ridley Scott e seu famoso Alien. Foi dirigida por Sergio Corbucci no spaghetti western Os Cruéis (1967), com Joseph Cotten; por Fabrizio Taglioni (La ballata dei mariti, 1963) e Giuliano Montaldo (Uma bela grinta, 1965).

“Eu me considero, sem nenhum esnobismo, uma atriz de vanguarda,” disse.

Com Geraldo Del Rey em O Pagador de Promessas
(Anselmo Duarte, 1962), filme vencedor da Palma de
 Ouro que levou Norma Bengell à carreira internacional 
Foto: Reprodução

As mulheres em Normal Bengell

A mulher Norma Bengell – autêntica, transgressora, libertária – jamais limitou-se às convenções. Suas escolhas e atitudes refletiram as mudanças no comportamento sexual feminino durante a segunda metade do século 20: já nos primeiros anos da década de 1960, a atriz escandalizou a Igreja Católica ao defender publicamente a utilização da pílula anticoncepcional e afirmava ter realizado, ao longo de sua vida, dezesseis abortos.

“Na verdade foi um só, mas eu falo dezesseis pra provocar”, confessou em entrevista a Antônio Abujamra.

Despudorada e sem papas na língua, para ela, “o artista tem que se expor, e por isso ele escolheu uma profissão acima do bem e do mal.”

Em 1977, Norma, que era também cantora, lançou seu quarto álbum de estúdio, intitulado Norma Canta Mulheres, no qual interpretava canções compostas exclusivamente por mulheres.

“Os homens falam uma linguagem muito diferente da nossa,” disse ela. “Se os homens são reprimidos e oprimidos, as mulheres também são, só que em dobro. Isso leva a uma forma de expressão diferente, e no momento em que as mulheres assumirem isso, pode até surgir uma nova cultura.”

Bengell recusou a proposta de casamento de Alain Delon (segundo ela, ele a teria violentado após o término do relacionamento) para viver ao lado de sua grande paixão: o ator italiano Gabriele Tinti, com quem contracenou em Noite Vazia (1964), charmoso drama existencial de Walter Hugo Khouri, com Odete Lara e Mário Benvenutti. A união, entretanto, durou pouco, e a separação foi a razão pela qual Norma deixou a Itália para retornar ao Brasil.

“A Itália era muito pequena para nós dois.”

De sua lista de amantes, fazem parte o diretor Anselmo Duarte e o rock star Mick Jagger – seu parceiro de cena em Running Out of Luck (1987), filme pouco conhecido gravado durante uma das passagens do Rolling Stone pelo Rio de Janeiro.

Com seu primeiro e único marido, o ator italiano 
Gabriele Tinti,  no filme Noite Vazia (Walter Hugo Khouri, 1964) 
 Foto: Reprodução

É na década de 1970 que Norma Bengell estabelece-se como atriz de potencial dramático em A Casa Assassinada (1971), de Paulo César Saraceni. Nesta adaptação da obra literária homônima de Lúcio Cardoso, Bengell é Nina, mulher que desperta os desejos sexuais reprimidos de uma tradicional família aristocrática em ruína financeira e moral. Trancafiado em um dos quartos da residência da família, vive o cunhado homossexual Timóteo (o ator Carlos Kroeber em uma das mais estupendas interpretações do cinema brasileiro). Repudiados, como pragas do Egito, Nina e Timóteo encontram, um no outro, a salvação. O filme deu a Norma o Troféu APCA de Melhor Atriz em 1971. No mesmo ano, a atriz, que oferecia ajuda a militantes e perseguidos políticos, foi presa e interrogada pelo DOI-CODI. Acusada de “subversão da classe teatral,” exilou-se na França, onde realizou filmes de vanguarda como Les Soleils de I’lle de Pâques (1972), de Pierre Kast.

Em 1978 estrelou Mar de Rosas, “comédia maluca” de tom feminista dirigida por Ana Carolina, na qual interpreta uma mãe decadente e esposa cansada do patriarcado. Em 1980 realizou A Idade da Terra, delírio cinematográfico de Glauber Rocha.

Nesta mesma época, aventurou-se em seu mais ambicioso projeto: estar atrás das câmeras. A ideia era trazer à luz a história de Pagu, poetisa, musa do modernismo e a primeira mulher presa por razões políticas no Brasil. O processo de produção, contudo, foi problemático, e Norma atribuía a dificuldade de verbas ao machismo dos burocratas da Embrafilme. Eternamente Pagu, estrelado por Carla Camurati, Ester Góes e Antônio Fagundes, primeiro longa de Norma Bengell como diretora, foi lançado em 1987.

Seu segundo longa-metragem, O Guarani (1996), adaptação da obra de José de Alencar, representa o declínio de sua carreira: segundo denúncia publicada pela revista Veja, Norma Bengell teria adquirido um imóvel milionário com dinheiro captado pelo Ministério da Cultura para a realização da obra. Falsamente acusada de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e apropriação indébita, aos 78 anos, Norma Bengell encerrou seus dias paralítica – após sofrer duas quedas em sua residência –, desempregada e endividada, lutando, diariamente, contra o medo da maior das mortes: o esquecimento.

Em um de seus últimos papéis, na peça 
O Relato Íntimo de Madame Shakespeare, 2007 
Foto: Reprodução

Em entrevista à Globo concedida na década de 1980, a atriz comentou acerca das dificuldades em ser artista no Brasil:

“A cada dia batalho para não morrer. Quando digo morrer, é um assassinato cultural.”

Sua tragédia revela a cultura do desprezo à memória enraizada nas sociedades contemporâneas, bem como a perversidade do sistema midiático, onde a mulher possui valor somente durante os anos de juventude, enquanto serve aos propósitos sexistas de vigor e erotismo. Norma, que não se casou ou teve filhos, foi vitimada por um câncer de pulmão, em outubro de 2013. Sua autobiografia póstuma, Norma Bengell, revela, sem filtros, a personalidade intensa que consagrou-a como uma das mais fascinantes figuras do cinema brasileiro.

“O que eu quero é não morrer muda,” escreveu.

Já é tempo que nos inclinarmos para ouvi-la…

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Referências:

Bengell, Norma: Norma Bengell. NVersos Editora. São Paulo, 2014.

Reis, Aloysio: Norma Canta Mulheres. Jornal de Música. Novembro, 1975. Editora Imprima. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2017.

Entrevista de Norma Bengell a Antônio Abujamra. Disponível aqui. Acesso em 26 de outubro de 2017.

Norma Bengell no Arquivo N. Disponível aqui. Acesso em 23 de outubro de 2017.

Ormond, Andrea. A Casa Assassinada. Estranho Encontro. 11 de junho de 2008. Disponível aqui. Acesso em 20 de outubro de 2017.

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* Rafaella Britto é professora, escritora e crítica de cinema com sede em São Paulo. Ela é co-fundadora e editora da Cine Suffragette, uma publicação multilingue em linha sobre a representação das mulheres no cinema. Ela também é editora do Império Retrô, um blog de jornalismo independente dedicado a explorar o diálogo entre arte e moda e tem colaborado com várias publicações on-line. Ela é apaixonada pela música, línguas, literatura e cinema de todo o mundo.

Texto e imagens reproduzidos do site: theworldofapu.com

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