Publicado originalmente no site CINEMA ESCRITO, em 23 de março de 2014
Carta (de amor) a Fernando Spencer
Adeus, não; obrigado, Fernando Spencer
Por Luiz Joaquim
Quis a circunstância profissional que este que escreve
estivesse há milhares de quilômetros do Recife neste 17 de março que tirou de
nossa companhia Fernando Spencer. Mesmo estando a par da fragilizada situação
de sua saúde, que o levara ao hospital dias antes, foi difícil continuar o café
da manhã na última segunda-feira após a notícia de seu falecimento nos alcançar
pelo telefone.
A tristeza desequilibrante se deu talvez pela desconfiança
de que Spencer fosse daquelas pessoas que, de um modo torto e desafiador da
natureza de tudo que é vivo, simplesmente não morresse.
Assim como este que escreve, é tranquilamente aceitável
afirmar que não há nenhum profissional sério que dedique sua labuta ao
pensamento cinematográfico no Recife (ou sobre o Recife) que não deva algo, ou
muito, a Fernando Spencer. Sim. Dever.
Apesar das mais obvias e citadas de suas contribuições ao
cinema pernambucano, no caso, o resgate e a extensão na longevidade da história
do Ciclo do Recife – por meio de sua aproximação a Jota Soares (1906-1998) e
Ary Severo (1903-1994) –, Spencer nos deu muito mais que isso.
Tendo sido um cinéfilo, jornalista, radialista, critico,
pesquisador, curador, conservador e realizador por mais de cinco décadas, nosso
Cineasta das Três Bitolas era o que podemos chamar de um homem de cinema
completo.
Para cada um destes papeis que exerceu, talvez centenas de
milhares de pernambucanos nos últimos 50 anos foram de alguma maneira
influenciados por aquilo nascido da história de amor de Spencer com o cinema.
Fosse pelas criticas e reportagens publicadas no Diário de
Pernambuco, fosse pelas entrevistas levadas ao ar no programa radiofônico
“Filmelândia” da Rádio Clube e Tamandaré, e no televisivo “Falando de Cinema”,
na extinta TV Tupi, ou pelas sessões de arte no Cine Coliseu (com a programação
burilada pela parceria com Celso Marconi e Ivan Soares), ou, como se não
bastasse, pelos filmes que construiu, o ferrenho fã de Chaplin e Fellini
basicamente manteve a ideia de Pernambuco como um Estado pensante e praticante
de um cinema crítico por todos estes anos.
Sempre lembrado em sua filmografia pela simpatia à cultura
popular pernambucana, Spencer nos anos 1970 e 1980 amplificou ao Brasil, e
também pelos festivais internacionais, aquilo que já sabíamos sobre o Frevo,
sobre Capiba, sobre o Mestre Vitalino, e sobre Dona Santa do Maracatu, entre outras
figuras caras ao nosso Estado.
Engana-se quem pensa que o cineasta não se dedicava também
ao drama do homem comum. É preciso embrenhar-se pelas dezenas de filmes que
realizou – com boa parte no acervo da cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco
(cujo esforço pessoal de jornalista, foi essencial para sua criação nos anos
1980) – para alcançar o prazer de descobrir o Spencer cronista urbano, como no
filme “RH Positivo” (1978), ou o do Spencer existencial, como em “Labirinto“
(1973), estrelado por Jota Soares.
Contemporâneo de uma época em que não bastava o talento para
alcançar o sucesso no País e no mundo, sem as vantagens (e desvantagens) da
comunicação simultânea de hoje, Spencer talvez hoje pudesse ter chegado a um
maior reconhecimento não só no Estado, mas no resto do Brasil.
Certa vez, já octogenário nos segredou num dos preferidos
recintos de sua residência em Casa Forte – um quarto abarrotado de filmes em
película, livros, jornais, revistas, trilhas sonoras em vinil e CD, fitas
cassetes e VHS – como havia sido respeitado e bem tratado na Espanha, para onde
foi em visita ao filho lá residente, o técnico em efeitos especiais Ricardo
Spencer.
Na ocasião, Fernando participara de um debate sobre sua obra
naquele País e, de volta ao Brasil, questionava-se, não sem um certo espanto e
desolamento, como era possível lá do outro lado do Atlântico ter toda uma
juventude verdadeiramente interessada em conhecer seus filmes enquanto aqui
essa memória, e não só pelos seus filmes, parecia ter pouca relevância.
Foi por sempre pensar na propagação e manutenção do cinema
para o presente e para o futuro como uma necessária peça a uma mais humana
formação de seu espectador, que o diretor tornou-se não só respeitado, mas
querido. De maneira curiosa foi, talvez, por sua gigantesca generosidade e
quase infantil paixão pelo cinema que não tenha alcançado outros desafios que
sempre inquietavam sua mente.
Como um adolescente que descobre a potencialidade de uma
câmera pela primeira vez e quer com ela criar um mundo melhor, Spencer sempre
nos contagiava ao contar os novos projetos que gostaria de compartilhar numa
tela de cinema. Como o seu plano de filmar a história real da visita feita por
Orlando Silva (1915-1978) no final dos anos 1930 a casa de uma fã moribunda, no
Recife. Era uma garotinha muito pobre que viria a morrer de tuberculose dias
após a surpresa feita pelo Cantor das Multidões.
Conhecer Spencer, particularmente, foi um privilégio. Ele,
por meio de seus textos nos anos 1980, foi o primeiro a nos estimular a pensar
o cinema como algo mais do que uma brincadeira distrativa. A nos fazer esperar
pela edição de um jornal trazendo criticas e notícias de filmes com a ansiedade
de quem espera a chegada de um amigo querido. Esse amigo era Spencer e suas
palavras.
Certa vez, já profissional, lembro ainda da excitação ao
descobrir que o cineasta iria gravar aquele que, sem sabermos, viria a ser seu
último filme: “Nossos Ursos Camaradas” (2008). Era a chance de acompanhá-lo de
perto, num set de filmagens, e uma vez lá, descobrirmos o tamanho da alegria
daquele menino, então com 81 anos, diante de seu irremediável pacto de amor com
cinema.
Pacto que firmou ainda criancinha, quando projetava na
parede de casa, através de uma lâmpada cheia de água como lente de aumento, a
imagem dos fotogramas que colhia do chão da cabine de projeção no cinema de seu
bairro.
Por este seu pacto, somos melhores. A Fernando José Spencer
Hartmann, agradeceremos sempre.
Texto e imagem reproduzidos do site: cinemaescrito.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário