O diretor Federico Fellini, em uma imagem sem data.
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, 17 de janeiro de 2020
A profecia de Fellini completa 100 anos
Itália comemora o centenário do diretor transformada na
prova viva do universo social e estético que seu cinema anunciou. Reconstrução
de uma vida transbordante através das recordações de seus colaboradores
Por Daniel Verdú
O dicionário italiano reconhece a palavra felliniano.
Significa quase tudo o que tem a ver com o Mago de Rimini e seu cinema, não há
dúvida. Mas é também o adjetivo que descreve um universo estético, social e
político que impregna uma nação inteira há seis décadas. A tensão entre o homem
moderno e os rudimentos do passado, os sonhos eróticos, o machismo caricatural
ou uma estranha mistura de crítica e paixão simultânea por uma sociedade do espetáculo
que acabou se tornando uma odiosa indústria publicitária. Federico Fellini
(Rimini, 1920-Roma, 1993) ganhou cinco Oscars, deixou alguns dos filmes mais
insólitos produzidos na Itália e fundou uma nova maneira de contar o mundo a
partir dos sonhos e do lado mais grotesco de suas próprias memórias. Um século
depois de seu nascimento, o big bang estético criado durante os anos em que
viveu em Roma arrebenta as costuras do dicionário.
Uma placa no número 110 da silenciosa Via Margutta, entre a
Piazza de Spagna e a Villa Borghese, lembra o lugar onde Fellini viveu durante
décadas com a esposa Giulietta Masina. A casa foi esvaziada e vendida em 1994,
quando ela morreu, e hoje pertence a outro proprietário. Mas os confins daquele
mundo mais prosaico e rotineiro, feito de passeios, discussões com os suspeitos
habituais, como Ennio Flaiano —escritor, jornalista e roteirista/ventríloquo de
seus melhores filmes— ou longas refeições com Marcello Mastroianni não se
expandiam tanto quanto sua imaginação. Todas as manhãs tomava café no Canova e
aparecia para comer no Dal Toscano, no bairro de Prati, sempre na mesma mesa.
Roma foi o lugar que esculpiu um rapaz que chegou de Rimini
com 18 anos em busca de fortuna como cartunista e desenhista. A cidade da costa
adriática de telhados vermelhos e vendedoras de cigarro voluptuosas era um
enxame de lembranças mágicas e desconexas que conseguiu recopilar em Amarcord
(1973), também em I Vitelloni (Os Boas-vidas, 1953) e em A Estrada da Vida
(1954). A verdadeira pátria de Fellini, no entanto, a que nunca teve
fronteiras, ele soube manter escondida entre as quatro paredes do Estúdio 5 de
Cinecittà, onde construiu a maioria dos seus devaneios.
Essa melancólica Hollywood italiana, no final da Via
Tuscolana, do outro lado de Roma, tenta recuperar o vigor com novas rodagens. A
casa de Fellini, o estúdio que pegou fogo em 2012 e no qual muitos não quiseram
filmar intimidados por velhos fantasmas, esteve ocupada até recentemente pelos
cenários de O Novo Papa, a série sobre o Vaticano de Sorrentino, talvez o maior
herdeiro —imitador, resmungam alguns na Itália— do cineasta de Rimini. Aqui
foram rodados Oito e Meio (1963), A Doce Vida (1960), Noites de Cabíria
(1958)... e também alguns dos últimos filmes, como E La Nave Va (1983) e Ginger
e Fred (1986), no qual começou sua relação com o figurinista Maurizio
Millenotti. “O set de filmagem era a casa dele. Adorava estar lá porque amava a
família do cinema. Adorava estar no meio dos maquinistas, eletricistas,
iluminadores... Tinha uma relação particular e individual com todos. Por aqui
passaram reis, grandes cineastas como Scorsese, políticos de todo tipo... Todos
queriam vê-lo trabalhar em seu espaço. Quando comíamos fora, sempre contava
histórias emocionantes e o ouvíamos como crianças”, lembra o figurinista em uma
conversa por telefone.
A última meia hora de Ginger e Fred acontece em um cenário
com uma orquestra quase sempre presente. Nicola Piovani —que ganhou um Oscar
por A Vida É Bela em 1997— foi o encarregado da trilha sonora e substituiu o
histórico Nino Rota, de quem tinha aprendido e cuja linha nunca quis trair nos
filmes seguintes. “Durante esse filme morei quase três semanas lá. Fellini me
fazia improvisar músicas em um pequeno piano vertical amplificado. Me dava
instruções rápidas de um jeito meio maluco... eu improvisava e a orquestra,
ouvindo, vinha atrás simulando os movimentos mais representativos. Foram dias
inesquecíveis”, lembra Piovani, que depois dessa experiência também escreveu a
partitura de A Voz da Lua (1990).
As escadas de ferro do Estúdio 5 levam a uma espécie da
varanda traseira de onde se pode ver, ao lado de um pedaço da Roma Antiga de
papelão, o estúdio e o cenário do Grande Fratello VIP [versão italiana do Big
Brother]. Uma fronteira entre os sonhos e o grotesco que hoje funciona como
homenagem involuntária ao universo de um artista que viveu seus últimos anos
obcecado pela televisão e pelos efeitos do mundo imaginário da publicidade na
saúde mental dos italianos. “O olhar felliniano é, na verdade, um olhar
premonitório. O impacto de sua obra foi enorme, uma lição incorporada de forma
inconsciente pela cultura italiana. Também na política, especialmente a partir
de Berlusconi. Ele é essa figura típica da Itália que mostra a relação entre a
modernidade e a tradição. Hoje o país se parece muito a como ele o imaginou.
Mas cuidado, sem graça, sem poesia, desprovido de fantasia e dessa nostalgia”,
afirma o escritor e jornalista Filippo Ceccarelli.
No dia em que Fellini morreu, 31 de outubro de 1993,
Berlusconi lançou o logotipo do Forza Italia. Por acaso ou não, o cineasta
passou os últimos anos obcecado por Il Cavaliere e chegou a escrever um roteiro
que nunca foi filmado sobre uma Veneza distópica transformada pelo magnata em
um cenário para filmar anúncios: o Grande Canal passaria a se chamar como
Canale 5 [referência ao nome da emissora de televisão de Berlusconi]. Ao
contrário de outros cineastas de sua geração, como Pier Paolo Pasolini, sempre
manteve um olhar crítico, mas desideologizado e desvinculado, apesar de sua
grande amizade com Giulio Andreotti, em relação às correntes políticas. “Era
amigo de todos e de ninguém. Fazia seus negócios de maneira brilhante e ficava
fora dos assuntos de partidos, não se pronunciava. Podia parecer um diretor
distante das tensões, mas, na realidade, foi quem melhor entendeu todo o
contexto. O problema então não era a ditadura contra a classe operária, ou os
estudantes reivindicando protagonismo... a verdadeira questão era a do
capitalismo em sua extrema realização. Um fenômeno para o qual não era mais
necessário impor as coisas, mas capturar a mente das pessoas com a televisão. E
nessa interpretação Fellini foi muito mais político do que sempre se disse”.
Verdade e memória
A verdade entre o que se contou e a memória de como
realmente foi pertence hoje a muito poucas pessoas. A atriz Sandra Milo
trabalhou com ele em filmes como Oito e Meio ou Julieta dos Espíritos (1965) e
foi sua amante durante 17 anos. Ambos se conheceram rapidamente numa tarde de
verão em um pinheiral de Fregene, às margens do mar romano, quando Fellini
dividia uma mesa com Ennio Flaiano (muito antes de essa relação terminar
violentamente). “Ennio me chamou e me apresentou a ele. Fiquei impressionada,
era muito bonito, tinha um grande magnetismo... aqueles olhos tensos, curiosos,
capazes de te absorver, mas de uma maneira agradável, nada invasivo ou
agressivo. Naquele momento eu me apaixonei por ele, perdidamente,
inevitavelmente e fatalmente”, lembra Milo ao telefone. Só se viram novamente
dois anos depois.
Milo tinha acabado de começar sua carreira. Havia rodado com
Rossellini o filme Vanina Vanini (1961), arrasado pela crítica e condenatório
para ela. Caiu no esquecimento e abandonou o cinema. Mas um dia o cineasta
apareceu na casa dela de manhã, tirou-a da cama, fez um teste e a contratou
para fazer o papel de Carla, a amante de Marcello Mastroianni, reflexo da vida
do próprio Fellini. Tudo se encaixava premonitoriamente mais uma vez. “Hoje muitos
diretores não querem trabalhar comigo para que eu não faça comparações. Mas ele
era uma pessoa muito especial. Tinha uma capacidade incrível de fazer você se
sentir o predileto, uma maneira mágica de entrar dentro de você, entender
exatamente quem você era, encontrar sua parte mais preciosa e trazê-la à
superfície para te tornar consciente de algo que você não sabia que tinha.
Todos nós queríamos trabalhar com ele e que estivesse perto. Ele tinha esse
poder, uma arte sempre a favor do ser humano, nunca contra”.
O relacionamento entre Fellini e Milo só terminou quando ele
propôs abandonar a clandestinidade e ter uma vida juntos quase 20 anos depois
de terem se conhecido naquele pinheiral. Ela recusou. Temia a corrosão da
rotina, as discussões, não saber administrar a normalidade com aquela pessoa
tão extraordinária... nunca mais se viram. Mas o cineasta sempre voltava para
Giulietta Masina. “Era uma mulher maravilhosa, inteligente, curiosa e culta.
Ela sabia que era impossível ter um relacionamento tradicional com Federico.”
Fellini não teve filhos. Ele e Masina perderam o pequeno
Pier Federico 11 dias depois do nascimento. Sua sobrinha Francesca, a única
herdeira de seu legado, ocupou durante anos esse lugar na retaguarda
sentimental do tio. Ela tem seu próprio Amarcord —“eu me lembro” no dialeto
romanholo— sobre aqueles anos em que viu seu tio se tornar uma estrela
internacional. “Voltava a Rimini para ver a mãe, sua irmã Maddalena, eu...
Tenho lembranças muito ligadas à mesa. Giulietta cozinhava em Roma e minha mãe
em Rimini. Começava-se com a piadina, um pouco de parmesão, depois a massa
recheada com caldo. E se terminava com a sopa inglesa, sua sobremesa favorita.
Todo mundo queria saber dele. Eu nunca ousei pedir algo a ele ou questioná-lo.
O que você perguntaria hoje e ele? Talvez se ele não tivesse preferido curtir
mais a família e seus entes queridos, em vez de estar permanentemente criando e
trabalhando. Eu perguntaria se ele se arrepende de não ter curtido mais a mãe,
o irmão Riccardo, a mim... Era o gênio criativo que mudou o cinema, com cinco
Oscars... mas acho que sempre se tem de pagar um preço”. Talvez essa fosse a
parte menos felliniana de sua vida.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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