Texto publicado originalmente no site [rua.ufscar.br], em 26 de julho de 2008
Noite Vazia (Walter Hugo Khouri, 1964)
Os dramas perpétuos - Um passeio pela noite khouriana
Por Tiago Canário*
“Não existe mais vida noturna, meu filho. Estou louca para
que comece de uma vez a abençoada temporada na praia”, lança Doralina Soares,
personagem coadjuvante em seu curto momento de aparição no longa-metragem Noite
Vazia, de Walter Hugo Khouri. O filme, em seus 98 minutos de duração, prova o
contrário. Mais do que mera vida social, festa e diversão, a vida noturna que
pulsa na obra é a vida psicológica, os meandros das mentes dos quatro
personagens que se encontram no apartamento imerso na noite escura de Khouri.”
A partir da seqüência de apresentação dos créditos, já
tomamos consciência do peso do filme que está por vir. Envolvidos pela música
soturna, densa e contida de Rogério Duprat, somos apresentados a uma série de
manequins carcomidos. São rostos e bustos semidestruídos, expostos
parcialmente, acobertados que estão pelas sombras, presentes física ou
psicologicamente por todo o filme. Mas basta atentar um pouco à cena para
perceber que nós não somos os únicos observadores – as faces desfiguradas nos espreitam.
Juntam-se, aqui, as mãos praticamente roídas que se estendem na escuridão, que
se sobrepõem em imagens – mas nunca se tocam. Altamente representativo na obra,
o gesto adianta a distância e o deslocamento dos personagens entre si e da
realidade.
E se a densidade anterior nos causa certo estranhamento,
posta assim como está, a seqüência seguinte, na qual nos é apresentada a
cidade, é igualmente marcante. Filme intimista, Noite Vazia não se prende à
cidade-locação, que, aqui, poderia ser genericamente qualquer uma; o importante
neste centro urbano nos é evidenciado no modo como Khouri o constrói: uma São
Paulo dos anos 60, com aproximadamente cinco milhões de habitantes, em um
recorte urbano. São cenas do trânsito e de prédios que acompanham a escuridão
dos créditos iniciais. Também rodeada pelo peso da música de Duprat, a cidade,
em alguns momentos, apresenta-se como um ideal metropolitano, formada por
prédios altos, letreiros luminosos e um trânsito intermitente; em outros,
torna-se mais clara a sua releitura como um centro disforme, turvo, perdido em
meio às sombras da noite khouriana – seca.
Cabe aqui uma pequena inferência. Apesar das escuras e
difusas ruas da metrópole, as casas, os interiores, são predominantemente
claros. Os ambientes internos são inversamente mais limpos e iluminados – em
determinados momentos, inclusive, uma iluminação excessiva. Nestes, ao tentar
reconstruir uma luz natural, consegue-se mais um deslize técnico, um defeito.
Sobretudo em relação às luzes vindas da rua, que atravessam a janela e se
projetam sobre as paredes do apartamento; a intensidade é tamanha que se torna
inacreditável sua origem, pois a força das cenas externas, sobretudo as
iniciais, crava em nossas mentes a escuridão na qual submerge a cidade. E,
ainda assim, evidenciando a sombra noturna e buscando a luz mais próxima
possível da natural, no momento em que amanhece, a iluminação da locação,
estranhamente, sofre uma alteração quase imperceptível. O ambiente se torna um
pouco mais claro (muito menos do que seria crível em um apartamento normal),
sendo a certeza da mudança noite-dia dada somente com os takes da cidade vista
através da janela.
O ritmo do filme, por sua vez, é um ponto interessante.
Ainda que inquestionavelmente bem construído, constante e fluente, é destoante.
Ou melhor, mal escolhido. A obra procura trabalhar a angústia frente à
realidade e aos dramas psicológicos; tudo sem qualquer perspectiva de solução.
Trata-se, o filme, de um grande ciclo, uma angústia físico-mental de quatro
personagens que permanecem em suas rotinas, testando uma saída que, desde já,
reconhecem falha. É o retrato de uma noite que foi igual à anterior e será
igual à próxima: todos estão conscientes de suas agonias, mas repetem seus
gestos como que para preencher um tempo/vazio impreenchível, como uma grande
encenação em busca de uma solução que já não esperam. Admitido isto, o ritmo
esperado seria arrastado, contido, sofrido como os protagonistas. O que
percebemos, não obstante, é algo mais aliviado, leve em alguns momentos, com
takes não muito longos – o oposto do peso requerido pela obra. O ritmo funciona
bem, mas para outro filme.
Talvez a opção pelo ritmo mais brando seja a aproximação de
um filme mais “palatável”. Contemporâneo às produções do Cinema Novo brasileiro
que ainda se distanciavam visivelmente do consumo cinematográfico geral,
Khouri, é possível, mesclou em sua obra aspectos que a tornassem mais acessível
ao grande público. Ou ao que aguça o imaginário de parte deste: consideramos,
aqui, a cena de lesbianismo entre Regina (Odete Lara) e Mara (Norma Bengell). É
um dos poucos momentos em que o sexo é tão trabalhado e evidenciado – embora
não possamos negar a qualidade com a qual o diretor conduz a seqüência e
constrói o desconforto de Mara e o exibicionismo de Regina. A montagem da obra
é sutil e precisa; transmite o necessário. Sendo assim, Khouri, utilizando
certos pontos com ou sem a intenção de aproximar-se do público, apresenta-os
sempre coesos e bem desenvolvidos. Ele consegue que até mesmo seus aspectos/cenas
desafinados sejam agradáveis.
Aproveitemos também para analisar uma pista deixada pelo
diretor em seu filme. No final da madrugada, perdido em si, Luís (Mário
Benvenutti) se senta para folhear algumas revistas deixadas sobre a mesa da
sala. Em uma destas, o anúncio da viagem do homem à Lua; é perceptível o
recorte da câmera para possibilitar a leitura da frase: “As pesquisas espaciais
são, na realidade, vitais à sobrevivência da espécie humana”. Percebemos aqui a
ironia de Khouri. Inserido em um momento histórico que ainda vivia as corridas
armamentistas e espaciais da Guerra Fria, o diretor pouco se interessa por
discuti-las; apresenta-as como de pirraça – mostra-as justamente para
lembrar-nos de que não falará sobre elas. Khouri não abraça o mundo para
modificá-lo ou contestar a situação em que se encontra; recorta decididamente
os dramas intimistas de uma burguesia metropolitana, retratando-a sem qualquer
perspectiva de melhora. É cinema sem esperanças. Ainda assim, não podemos
ignorar que o destaque dado à frase também possa ser entendido como uma crítica
feita a uma sociedade que ignora a degradação psicológica de seus indivíduos,
mas clama inflamada pela inovação tecnológica.
Produzido em um esquema de cinema independente, Noite Vazia
teve sua produção distante das grandes produtoras, restringindo-se quanto ao
uso de meios técnicos, o que se evidencia no uso da já tratada iluminação ou da
captação do áudio, de difícil compreensão em alguns instantes. Sofreu, ainda,
como qualquer obra afastada das grandes corporações, problemas em sua
distribuição e exibição, o que dificulta o acesso às suas cópias e o mantém
como mais um dos grandes filmes brasileiros não vistos por sua população,
conhecidos apenas por um pequeno grupo cinéfilo. Tal mecanismo de produção
independente, porém, possui suas qualidades, visto que não se prende às regras
comerciais. A obra de Khouri, portanto, encontrou-se livre para se construir a
partir de um esquema de autor, esteticamente livre. Filme singular, afasta-se
até mesmo do já esperado (e cultuado) modelo de cinema independente do período,
o Cinema Novo. Foge, a mais, do esperado diálogo com os problemas nacionais;
revela-se um filme possível em qualquer outro país. Neste estado, distante dos
dois pólos de produção famosos no período, Noite Vazia alcança a liberdade em
sua linguagem de proposta intimista e sem elaborações de acusações ou respostas
em seu discurso.
Mas ainda que juntássemos todos os seus problemas, seu corpo
não seria abalado; permaneceria como uma das memoráveis obras do cinema
brasileiro. E, na verdade, não se precisaria dizer muito do filme; caberia,
enquanto resumo da obra, uma simples frase pronunciada pelo personagem Nelson
(Gabriele Tinti): “o que é diferente sempre tem dono”.
* Tiago Canário é graduando em jornalismo pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA).
Texto reproduzido do site: rua.ufscar.br
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