Publicado originalmente no Blog OTAMBOSI, em 12 de julho de 2020
Ennio Morricone, a música do olhar.
Pelos olhos de Morricone, ouvimos e vemos a nossa própria
emoção.
Artigo de Jeffis Carvalho e Miguel Forlin, via Estado da Arte:
Artigo de Jeffis Carvalho e Miguel Forlin, via Estado da Arte:
Estamos diante dos olhos de Romy Schneider em primeiríssimo
plano no filme A Rebelde (1970), de Alberto Bevilacqua. A câmera explora esse
belo rosto, mas a sua intenção não é a beleza em si — é mesmo o sofrimento ou
as marcas que ele deixou nessa mulher batalhadora e sofrida, diante do corpo
sem vida do marido, que jaz na praça. Pontuando a cena, o que ouvimos é uma
melodia que parece reforçar cada sulco que se vê naquela paisagem que Carl
Theodor Dreyer definiu como o que de mais importante o cinema pode filmar. Que
música é essa que lembra os sinos de uma igreja que aos poucos vai exigindo
mais e mais a nossa cumplicidade com aquele rosto? Podemos tirar o som, a
música e deixar apenas as imagens. Tudo, então, parece perder sentido, razão.
Não porque a cena seja ruim e a música sirva para salvá-la. Ao contrário: a
música, esta música, está em simbiose com as imagens para compor um quadro
único, belo e forte.
Romy Schneider
A obra do maestro e compositor italiano Ennio Morricone,
falecido há uma semana, aos 91 anos, nunca foi o que se chama de score, música
de serviço, que embala sequências de um filme. Ela é parte indissolúvel de toda
produção que pode contar com o seu talento diferenciado. Já se disse que Alfred
Hitchcock pensava cinematograficamente. O mesmo vale para Morricone. O maestro
fazia música de forma cinematográfica. Nada em suas composições é gratuito,
aleatório — talvez porque ele componha com o olhar, e cada nota em sua
partitura seja como um elemento da mise-en-scène, tal como o são os atores, a
cenografia, a luz, os movimentos de câmera. Sua música não é complemento,
adorno ou tábua de salvação: é música cinematográfica.
Morricone compôs para mais de 500 trilhas, em uma carreira
de 60 anos. De todo o seu imenso, intenso e primoroso catálogo, a sua parceria
com o cineasta Sergio Leone (eles foram colegas de ginásio) é a que melhor
exprime a sua música e explica todo o seu trabalho com outros grandes nomes do
cinema, de Sergio Sollima a Brian de Palma, de Bernardo Bertolucci a Roman
Polanski, de John Boorman a Giuseppe Tornatore, de Terence Malick a Dario
Argento, de Elio Petri a Quentin Tarantino.
Como destaca o jornalista João Máximo, em seu livro A Música
do Cinema:
Os grandes compositores do gênero western no cinema
americano, provavelmente partindo da proposta estética de Aaron Copland,
fizeram exatamente o mesmo que os produtores, diretores e roteiristas tinham
feito com os filmes. Isto é, não tentaram reproduzir fielmente a música do
velho Oeste e sim compor suas trilhas sonoras com andamentos, timbres, cores
orquestrais, formas, enfim, que lhes pareciam mais adequadas àquele tipo de
filme. Perfeito. E o que fez Morricone? Deu à sua música o mesmo caráter que
Leone daria aos seus filmes, ambos partindo do zero para gerar o novo western.
Por terem feito isso com competência, é imperioso reconhecer neles outro
mérito: o de usarem seu direito de reinventar o gênero sem copiar ninguém.
A originalidade de Morricone faz dele um inovador na
utilização de instrumentos pouco usuais, sempre como recurso estético que pode
dialogar com a visão do cineasta. Com Leone, o compositor soube como nenhum
outro empregar o recurso musical primordial, a voz humana, valendo-se dela como
o que de fato ela é, um instrumento sonoro. Com isso, deu a Leone uma música
para traduzir a sua ambição estética de conceber o western como uma ópera. Esse
procedimento atinge o sublime em Era uma vez no Oeste, de 1968.
Era uma vez no Oeste.
Compor música cinematograficamente, com o olhar, permite a
Ennio Morricone ser quase sempre um coautor, já que ela é um amálgama para as
intenções dos cineastas com os quais trabalha. Em outras palavras, a sua música
tem uma vida umbilicalmente ligada aos filmes. Como no início do texto, tente
tirar a música de qualquer um desses trabalhos e ele ficará manco, muitas vezes
sem sentido.
Por outro lado, se a música tem essa ligação umbilical, como
é ouvi-la externamente, em um concerto? Sem o filme, ela perde seu sentido, sua
razão de ser e torna-se apenas mais uma composição, uma melodia, uma peça
musical? É nesse momento que a música de Morricone mostra, efetivamente, por
que é cinematográfica. E isso explica o enorme sucesso de suas apresentações
orquestrais ao vivo, a sua grande vendagem de discos e a legião de milhões de
fãs pelo mundo.
Ao pensar a música já como cinema e criá-la totalmente em
sintonia com a mise-en-scène, em parceria com os cineastas, Morricone opera a
façanha de fazer com que cada melodia, cada canto, cada instrumento
diferenciado, cada assobio, traga, a quem os ouve em um concerto, imediatamente
a cena, a sequência, até mesmo um plano. Com o seu olhar musical, Morricone
permite que, ao escutarmos as suas composições, os nossos olhos resgatem os filmes
em todo o seu esplendor, em toda a sua força e beleza.
Esse resgate vai, inclusive, muito além. E aqui está a
absoluta genialidade de Ennio Morricone. Quando ouvimos a sua música
cinematográfica, não resgatamos, em nossa memória, apenas a cena, a sequência e
os planos dos filmes. Com ela vem a própria emoção que sentimos quando os vimos
no cinema.
Pelos olhos de Morricone, ouvimos e vemos a nossa própria
emoção.
Miguel Forlin é crítico de cinema e colaborador de diversas
publicações na área.
Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista, pesquisador de
cinema e consultor de comunicação
Texto e imagens reproduzidos do blog otambosi.blogspot.com
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