Funcionários abraçam edifício sede da Cinemateca
Brasileira
em São Paulo em defesa da instituição
federal de cinema e acervo -
Trabalhadores
da cinemateca (Projeções por @fluxus).
Publicado originalmente no site BRASIL DE FATO, em 15 de
Julho de 2020
Matando a Cultura
O que se perde com o abandono da Cinemateca Brasileira?
Pesquisadora do audiovisual, Eloá Chouzal falou sobre o
acervo de filmes e a posição da instituição no Brasil e no mundo
Por Caroline Oliveira
O maior acervo de imagens em movimento da América do Sul,
localizado em São Paulo, pode desaparecer a qualquer momento. Com 250 mil rolos
de filmes, alguns compostos por nitrato de celulose, que podem entrar em
autocombustão caso não sejam mantidas as condições de refrigeração, a
Cinemateca pode repetir o que ocorreu com o Museu Nacional, que pegou fogo em
2018.
Criada na década de 1940 com o título de quinta maior
cinemateca em restauro do mundo, hoje a instituição vive a decadência por conta
do abandono do governo federal: 150 funcionários em greve por tempo
indeterminado, suspensão de recursos há sete meses, falta de salário, sem
brigada de incêndio e, a partir desta quarta-feira (15), sem equipe de
segurança.
Para quem trabalha há anos na Cinemateca, presenciar essa
situação é “desesperador”. Essa é a palavra usada por Eloá Chouzal,
pesquisadora do audiovisual, integrante da Associação Brasileira de Preservação
Audiovisual e que atua com estudos dentro da Cinemateca há pelos menos três
décadas. “É um absurdo, é desesperador. Eu conheço esse acervo, trabalho lá há
mais de 30 anos como pesquisadora e pensar em um desastre em um acervo desse
tipo é desesperador mesmo”, lamenta Chouzal.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora falou sobre
a importância que alcança níveis internacionais da Cinemateca o que o prédio
que já foi o Antigo Matadouro Municipal de São Paulo guarda de tesouros do
cinema nacional.
Brasil de Fato: Eloá, qual é a importância da Cinemateca
para o Brasil?
Eloá Chouzal: Ela guarda o maior acervo de imagens da
América do Sul e tem que guarda a história do Brasil em imagens, desde que o
filme foi inventado, no final do século 19. Há filmes de desde 1897 com imagens
do Brasil em movimento.
A Cinemateca que eu falo não é um museu só, porque muita
gente acha que é um museu de imagem. Não, a Cinemateca tem três pilares como
missão: O primeiro é preservar, que é a guarda desse acervo. Também tem a
missão de difundir, então lá tem sala de cinema, workshop, mostra, crianças de
escolas da comunidade que vão pela primeira vez assistir um filme numa tela
grande. E o terceiro pilar é o restauro.
Então você tem preservar, difundir e restaurar, que aí no
caso são os técnicos que vão pegar filmes degradados, que às vezes são doados
ou encontrados em arquivos de outros lugares, e que vão passar por um processo
para poderem ser vistos novamente. Um hospital do filme praticamente.
A Cinemateca brasileira já foi, para você ter uma ideia, a
quinta Cinemateca do mundo em restauro, o que é muita coisa. Para ter esse
título, é necessário ter equipamentos de ponta e pessoas especializadas. Hoje a
situação que nós temos é de uma cinemateca cujos funcionários estão fazendo
vaquinha para sobreviver, porque estão sem receber seus salários. Estamos no
fundo de poço. Não é uma metáfora, estamos mesmo. É dramática a situação da
Cinemateca brasileira neste momento.
Agora, você comentou que a Cinemateca chegou a ser a quinta
em restauro no mundo. Como se dá esse reconhecimento internacional?
Ela é o maior acervo de imagens da América do Sul, tem 250
mil rolos de filmes, 40 mil títulos, entre Super 8, curtas, longa metragens.
Partes grandes da história do cinema brasileiro estão ali dentro, a Vera Cruz,
que foi uma produtora na Companhia Vera Cruz, a Atlântida, outra grande
produtora das chanchadas brasileiras, Grande Otelo, Canal 100.
Tem acervos muito importantes ali. Fora filmes, tem
documentos do cinema brasileiro, como o acervo de Glauber Rocha, Jean-Claude
Bernardet, o próprio Paulo Emílio, que são roteiros, cartas entre esses
cineastas, fotos dos filmes, cartazes.
É um acervo grandioso. É importante falar para as pessoas
que um acervo como o da Cinemateca não é "morto", porque, por
exemplo, o meu trabalho como pesquisadora é exatamente entrar num acervo desse
para fazer um novo filme a partir desse material antigo de jornalismo, longa
metragens, filmes de família.
Quando você vai fazer um filme sobre a Tropicália, a Maria
Martins, filmes que têm um histórico para trás, tem que se aproveitar desse
material que foi feito ao longo desses anos todos sobre pessoas, temas, para
poder recontar essas histórias.
O filme vira filme, é ressignificado em outras produções.
Então, por isso que eu acho que a Cinemateca não tem caráter de museu, é um
acervo muito vivo, porque novas gerações estão assistindo a filmes antigos,
filmes novos, esses filmes estão virando outros filmes, viram museu. Eu
trabalhei no Museu da Língua Portuguesa, no Museu Cais do Sertão, lá de Recife,
que é sobre Luiz Gonzaga.
Esses museus foram feitos a partir de filmes da Cinemateca.
Hoje crianças assistem coisas sobre Luiz Gonzaga lá em Recife, o Museu da Gente
Sergipana, porque esses museus interativos usam muitas imagens, e essas imagens
vêm de acervos como a Cinemateca, que é o coração do cinema brasileiro e da
América do Sul, em termos de acervos, .
Esse reconhecimento internacional também se reflete na
comoção causada ao redor do mundo diante da situação da Cinemateca?
Houve mesmo uma comoção em relação à situação da Cinemateca
atual, porque a gente fez um manifesto que foi encabeçado pela Associação
Paulista de Cineastas, lido dia 4 de junho em um ato em frente à Cinemateca, e
70 instituições ao redor do mundo assinaram esse manifesto.
Essas instituições representam outras instituições muito
importantes do mundo inteiro. A FIAF, que é a Federação Internacional de
arquivos de Filmes, que representa 200 cinematecas do mundo, assinou. Então a
FIAF assinar um documento desse está representando 200 outras entidades.
Existe realmente uma preocupação, porque isso não pode
desaparecer. A memória de um país desaparecer, é uma grande tragédia, e a gente
não pode deixar acontecer.
Além dos que comentou, quais outros títulos importantes da
cinematografia brasileira estão na Cinemateca?
Puxa, tem uma infinidade de títulos. O Cangaceiro, por
exemplo está lá, toda a produção da chanchada brasileira está lá, Glauber
Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, títulos ícones no
cinema brasileiro que estão lá dentro. Fora isso, toda a produção do
telejornalismo da televisão Tupi, Atlântida.
Tesouros do cinema brasileiro que você não pode deixar
queimar, porque, por exemplo, se não pagarem a conta, não ter uma brigada de
incêndio, tem filmes de nitrato que podem entrar em autocombustão se não
estiverem em condições adequadas de climatização e umidade.
O risco que a gente está correndo é seríssimo e muito
próximo de acontecer, porque a Cinemateca está na UTI. Os trabalhadores estão
em greve agora por tempo indeterminado. Já é a terceira greve que eles fazem, e
agora é por tempo indeterminado.
As empresas que faziam a manutenção desses depósitos
climatizados, o pessoal de eletricidade, a manutenção da parte elétrica, os
brigadistas, bombeiros, foram embora por falta de pagamento. Então a chance de
ocorrer alguma coisa lá dentro é grande, mesmo assim não tem um bombeiro para
atuar ali na hora.
Agora dia 15 vai embora a empresa de segurança. Então você
tem um parque tecnológico e um acervo que não pode ser avaliado em termos de
custo de valor, porque é um valor imaterial e vai ficar lá 24 mil metros quadrados
sem nenhuma segurança.
É um absurdo, é desesperador. Eu conheço esse acervo,
trabalho lá há mais de 30 anos como pesquisadora e pensar em um desastre em um
acervo desse tipo é desesperador mesmo.
Por último, Eloá, a produção audiovisual é extremamente
importante na construção de uma memória e de uma formação de identidades
brasileiras. Onde se encontram a Cinemateca e o cinema brasileiro?
A arte é um instrumento de reflexão. Tem gente que acha que
arte é curtição, lazer. Mas a arte e cultura são instrumentos de reflexão
histórica, sobre o passado. E não é à toa que esse governo não gosta de cultura
e faz o possível para acabar com tudo que se refere à cultura, história e
memória. Não é à toa que esse governo quer que tudo isso acabe, porque é muito
útil que um povo não tenha educação, que não saiba a sua história, porque pode
ser manipulado a pensar que a terra é plana, não é mesmo? E outros absurdos do
gênero.
Esse descaso do governo federal em relação à Cinemateca é
mais um entre muitos, entre um projeto de governo que tem a cultura como sua
inimiga. E a partir daí ele trabalha nesse sentido, não de que a cultura seja
valorizada, ou algo parecido. Muito pelo contrário, trabalha no sentido de acabar
com isso.
Agora, o nosso papel como cidadão brasileiro e como pessoa
que faz cinema também é se contrapor a esse projeto, é resistir e chamar a
sociedade porque esse é um bem público, e um bem público de todos os tempos, da
nossa geração, das gerações passadas e futuras. E a gente tem o dever de cuidar
disso.
Ali dentro não tem só esse patrimônio dos filmes, tem um
parque tecnológico. Tem muita coisa comprada com o dinheiro do nosso trabalho.
Então é dinheiro público que está ali dentro. Tem telecine, uma sala de cinema
espetacular, é um lugar maravilhoso.
É nosso, e a gente tem que defender isso. O governo cuida,
tem o dever de cuidar, porque é um patrimônio público. Mas quando não tem o
governo que faça o papel dele, a gente tem que chamar esse governo para as suas
responsabilidades, porque é dever dele e é dever da gente cobrar.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
Texto e imagem reproduzidos do site: brasildefato.com.br
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