Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 18/11/2018
‘Coordenadores de intimidade’: os vigilantes do novo sexo de
Hollywood
HBO é pioneira em criar uma nova figura encarregada de
supervisionar as cenas de nudez e sexo em suas filmagens para assegurar a segurança
física e emocional dos atores. Falamos com Amanda Blumenthal, que desempenha
essa tarefa à rede
Por Carlos Megia
“Às vezes era humilhante, me senti como uma prostituta”,
disse a atriz francesa Léa Seydoux ao ser perguntada sobre as cenas íntimas do
polêmico filme Azul É a Cor Mais Quente. “Depois de passar nove horas filmando
cenas de sexo fiquei tremendo, as lágrimas escorriam pelo meu rosto”, afirmou
Siena Miller, protagonista da adaptação ao cinema do romance de Dennis Lehane A
Lei da Noite. “Eu me senti humilhada e, para ser honesta, um pouco estuprada
por Brando e Bertolucci. Pelo menos foi somente uma tomada”, confessou Maria
Schneider em 2007, quatro anos antes de morrer, sobre a que talvez seja a cena
sexual mais controversa da história do cinema, a da manteiga em O Último Tango
em Paris. Depoimentos como esses são tão pungentes como habituais entre a
maioria das atrizes de Hollywood que, durante décadas, viram como sua segurança
e consentimento foram desrespeitados sem nenhum pudor por parte de produtores,
diretores e membros da equipe técnica. Com o surgimento de movimentos ativistas
como o #MeToo e Time’s Up, os estúdios de filmagem de redes como a HBO contam
agora com uma nova figura na equipe: os ‘coordenadores de intimidade’.
Amanda Blumenthal desempenha essa tarefa à rede. Seu
trabalho consiste em cuidar da segurança emocional e física dos atores nos
momentos de gravação mais íntimos. “Converso com eles antes de entrar no
estúdio sobre como se sentem e lhes pergunto se têm alguma dúvida ou
preocupação. Algumas vezes mudam de opinião sobre suas cenas de nudez e o
quanto querem mostrar, de modo que levo essas inquietações ao diretor e a uma
série de departamentos - como o de figurino - para ter a segurança de que têm
tudo o que precisam. Durante a gravação também estou presente”, diz Blumenthal
a S Moda.
Atualmente a ‘especialista da intimidade’ trabalha na
esperadíssima série da HBO Euphoria, produzida pelo rapper Drake e
protagonizada por Zendaya, uma das atrizes jovens mais respeitadas de
Hollywood. A ficção acompanha o dia a dia de um grupo de estudantes de colégio
e suas relações com as drogas, as redes sociais e o sexo, de modo que seu papel
na gravação das cenas mais quentes será fundamental à comodidade de um elenco
quase adolescente. Como ela explica, o trabalho começa várias semanas antes de
entrar no estúdio. “Falo com o diretor sobre como pensam em realizar cada cena
para depois passar individualmente aos atores o que se pedirá a eles. É nesse
momento que lhes pergunto sobre seus limites e sobre o que se sentem
confortáveis fazendo. Se há qualquer discrepância entre o desejo do cineasta e
o consentimento do ator, volto a me reunir com o diretor e tentamos encontrar
uma solução criativa ao problema”.
'Outlander' tem as cenas de sexo mais
aplaudidas da
televisão.
De acordo com publicação da revista Rolling Stone em
outubro, a HBO implementou provisoriamente essa medida a pedido da atriz Emily
Meade, que interpreta uma prostituta transformada em estrela do pornô na série
The Deuce (de David Simon), protagonizada por James Francos e Maggie
Gyllenhaal. A atriz se perguntou por que não existia uma equipe de
especialistas que supervisionasse as cenas íntimas, semelhante à que é
utilizada em cada cena de ação. O teste foi um sucesso e a rede decidiu colocar
esse profissional em todas as suas produções, tanto cinematográficas como
televisivas. Tudo leva a crer que outras redes e produtoras seguirão seus
passos e já existem até organizações sem fins lucrativos como a Intimacy
Directors International, que representa coordenadores de intimidade e
coreógrafos de cenas mais quentes.
Blumenthal, que antes de criar esse recente cargo
profissional desempenhava seu trabalho como coach de sexualidade e relações
sentimentais, considera imprescindível que essa figura passe a ser comum em
qualquer set de filmagem. “Para que os atores possam dar seu total
consentimento a uma cena devem estar completamente informados sobre o que se
espera deles. Há anos não era raro que os diretores pedissem que improvisassem
enquanto a câmera estava filmando, mas esse tipo de situação é perigoso e pode
levar a uma situação de assédio sexual”. Os coordenadores também são os
encarregados de prevenir qualquer ‘liberdade’ do diretor, auxiliando na
coreografia e nos ensaios das cenas íntimas.
Emily Meade em 'The Deuce'.HBO
Os sistemáticos abusos sofridos pelas atrizes de Hollywood
já deveriam ser uma recordação ruim do passado, sem lugar em uma indústria
extremamente profissional. Nem com o método Stanislavski como desculpa. “Os
atores fazem seu melhor trabalho quando se sentem seguros, apoiados e
empoderados. Quando não precisam se preocupar sobre ser assediados sexualmente
e sentir que estão cruzando os limites marcados podem colocar toda a sua
energia no personagem e em entregar uma grande interpretação”, diz. Em plena
era #MeToo um cargo como o seu, além de surgir como imprescindível, também
facilita o trabalho do restante da equipe. “Sempre fui muito bem recebida em
cada set em que estive. Eles me demonstraram uma espécie de alívio porque muita
gente se sente incômoda lidando com temas de sexualidade e nudez, de modo que
minha presença torna sua vida mais fácil. O que mais me dizem é que não podem
acreditar que o trabalho de coordenador de intimidade não tenha sido criado
antes”.
Tal como colocam no Mashable em um artigo chamado A Nova
Cena do Sexo, o movimento #MeToo não significa exclusivamente expulsar alguns
predadores sexuais do panorama de Hollywood e sim de como a meca do cinema deve
mudar suas contribuições a uma cultura sexual tóxica. De modo que o papel dos
coordenadores, além de garantir o bem-estar dos atores, é fundamental à
representação e aos papéis sexuais de homens e mulheres na telona e como os
espectadores veem isso. “Noto que as pessoas têm muito mais precaução e estão
muito mais sensibilizadas quando é preciso rodar uma cena de sexo e com nudez.
Há um nível maior de alerta e de conscientização”, diz Blumenthal. Mesmo que o
caminho a percorrer ainda seja tão longo e complicado, as ficções dão um novo
passo à frente com a existência desse novo cargo que deverá ser fundamental nos
filmes e séries do presente e futuro. Uma figura que impedirá que se repitam as
injustiças e o assédio sexual a que se viram submetidas Léa Seydoux, Siena
Miller, Maria Schneider e tantas outras artistas.
Uma das cenas de 'Me Chame Pelo Seu Nome'.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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